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Lolita não é Dolores Haze

Alerta de gatilho: este texto aborda temas como abuso sexual infantil e estupro, que podem ser delicados para alguns leitores.

No início de 2012, Lana del Rey lançou seu aclamado álbum Born to Die, composto por músicas como “Lolita” e “Off to the Races”, cujo refrão repete a frase de abertura do clássico e polêmico livro publicado em 1955 por Vladimir Nabokov. Junto a isso, o Tumblr, rede social popular entre adolescentes, era na época inundado por fotos de Dominique Swain, a Lolita do filme de 1997, com sua coroa de tranças e conjuntinhos de ombros nus, e imagens de Sue Lyon, a Lolita de Stanley Kubrick, olhando por cima de seus óculos de coração. Tudo isso me levou a ler o polêmico livro quando eu tinha a mesma idade da protagonista que dá nome à obra.

Apesar de muitas pessoas, sem dúvida, identificarem esses acontecimentos como os que também as levaram a ler o romance na época, não é possível olhar para a década de 2010 e apontar uma ressurgência desse clássico, causada por uma cantora ou rede social. Isso porque Lolita, desde seu lançamento, nunca deixou de ser referenciado na cultura popular. Vemos desde Marilyn Monroe cantarolando “Meu nome é Lolita” na introdução de seu cover de “My Heart Belongs to Daddy” até uma das mais célebres minisséries brasileiras dos últimos tempos, Verdades Secretas, cujo roteiro apresenta a mesma “dinâmica familiar” do livro de Nabokov – sem falar na lista imensa de músicas que trazem o nome Lolita em seus títulos, lista essa que conta com bandas como The Veronicas e Kid Abelha.

Todas essas referências têm algo em comum: elas fazem alusão à imagem de uma adolescente tão sexual e intelectualmente madura que é capaz de manipular homens com o dobro (ou mais) de sua idade. Mas será que é mesmo sobre isso que o livro trata?  Em The Lolita Podcast, um podcast da iHeart Radio que se dedica a aprofundar as discussões acerca do livro durante dez episódios, Jamie Loftus, a apresentadora, procura iniciar a conversa fazendo uma distinção bem importante: Dolores Haze e Lolita não são a mesma personagem. Dolores era uma menina de doze anos que teve um destino trágico, enquanto Lolita seria uma personagem existente apenas através dos olhos de um narrador pedófilo. 

Vladimir Nabokov

Essa diferenciação não é, no entanto, tão evidente, visto que até os dias atuais perdura a ideia da criança sedutora. A confusão em relação à existência dessa personagem pode ter tido seu começo graças à adaptação de Stanley Kubrick – uma das grandes responsáveis pela imortalização da obra –, que escolhe nomear a personagem principal como Lolita, ou mesmo no próprio livro, em que o nome Lolita é o mais repetido ao longo da obra. Mas é preciso sempre manter em mente de quem é a voz que constantemente chama pela menina Dolores.

Dolores e o narrador não confiável

O romance de Nabokov é inteiramente narrado em primeira pessoa, na visão do protagonista Humbert Humbert, que conta o seu ponto de vista da história vivida entre ele e Dolores Haze durante os anos de 1947 a 1949. Os caminhos dos personagens se cruzam quando Humbert, um professor divorciado de quase quarenta anos, se muda para a fictícia cidade de Ramsdale, EUA, e acaba se hospedando na casa da viúva Charlotte Haze e sua filha Dolores, que tinha, então, doze anos.

Durante todo o livro, o narrador se refere aos leitores como membros de um júri, como se desse seu testemunho diante de um tribunal. Isso se confirma no prefácio presente na maior parte das edições de Lolita, no qual Dr. John Ray, um PhD responsável pela primeira edição do manuscrito, conta que o homem por trás do pseudônimo Humbert Humbert morreu na cadeia, em decorrência de problemas cardíacos. Ou seja, sabemos que trata-se de um texto escrito por um criminoso condenado, mas não sabemos ao certo por quais crimes. Humbert Humbert,  portanto, não tem interesse apenas em contar sua história despretensiosamente, mas em se defender de crimes cometidos. No entanto, seja por “escorregadas” do narrador ou por uma tentativa do próprio autor (Nabokov) de implantar dicas, Humbert sempre acaba mostrando a realidade em relances.

Como explicação para sua atração por meninas jovens, o narrador conta que viveu seu grande amor na infância, com uma menina que acabou falecendo de febre tifóide e que, por isso, sua referência de paixão estaria sempre ligada à imagem da pré-adolescência. Entretanto, ele diz que essa menina chamava-se Annabel Lee, o mesmo nome da personagem do famoso poema homônimo de Edgar Allan Poe cujos estudos indicam fazer referência à sua esposa, Virginia Eliza Clemm Poe, com quem, além de possuir laços familiares antes do casamento, se casou aos 27 anos, enquanto ela contava apenas 13. Outras referências a figuras ligadas à pedofilia são mencionadas ao longo de todo o texto, como a obra Alice no País das Maravilhas, cujo autor tirava fotos de crianças nuas, além de se aproximar muito delas, em especial da menina Alice, que teria sido a musa inspiradora de seus maiores sucessos.

Além disso, o maior argumento para suas ações seria o fato de Dolores Haze fazer parte de uma classe de meninas que ele chama “ninfetas”, classe esta que recebe uma definição logo no início do romance:

“Entre os nove e os catorze anos de idade, ocorrem donzelas que, a certos viajantes enfeitiçados, duas ou muitas vezes mais velhos do que elas, revelam sua verdadeira natureza que não é humana, mas nínfica (isto é, demoníaca).”

Portanto, Humbert teria agido (de acordo com essa retórica, claro) movido por forças maiores que as dele, completamente sem poder nessa relação. Além disso, ele seria o único a conseguir perceber a verdadeira natureza demoníaca de Dolores.

Lolita (1962)

Assim como sua filiação a outros homens pedófilos da literatura, sua argumentação está cheia de furos, espaços por onde conseguimos ver Dolores escondida atrás dessa cortina de “Lolita” por ele inventada. Na primeira noite que a estuprou, Humbert afirma que a menina teria lhe contado sobre a perda de sua virgindade no acampamento naquele verão, o que, para ele, demonstraria maturidade sexual suficiente para consentir uma relação sexual. Entretanto, na manhã seguinte, Dolores passa o dia se queixando de dores e, quando questionada por Humbert, diz que era virgem até o momento que foi estuprada por ele – fala que ela repetirá mais uma vez no livro. Outra visão fugaz que temos da real Dolores (uma das cenas mais duras do livro) é quando a protagonista descobre a morte da mãe e fica desolada e, por isso, decide dormir em um quarto separado. No entanto, no meio da noite, retorna ao quarto de Humbert porque, nas próprias palavras de H.H.: “ela não tinha absolutamente mais lugar algum aonde ir”.

A morte da mãe de Dolores também é uma questão que envolve a não confiabilidade desse narrador. Durante o livro, temos acesso aos pensamentos de Humbert, que constantemente tenta pensar em uma saída para aquele que ele considera o maior obstáculo para a relação dos dois: Charlotte. Em diversos momentos, ele imagina como seria se a mãe Haze caísse morta, de repente. Em alguns momentos, como na cena do lago, ele chega a arquitetar um assassinato que não deixaria rastros. Entretanto, de acordo com sua versão dos fatos, Charlotte morre atropelada, justamente no momento em que acabara de descobrir o diário que Humbert mantinha, no qual contava os pormenores de sua relação com Dolores – uma morte nada suspeita.

“How did they ever make a movie of Lolita?”

“How did they ever make a movie of Lolita?”, o que em português pode ser traduzido para algo como “Como é que resolveram adaptar Lolita para o cinema?”, é a pergunta que serviu como publicidade do célebre filme de 1962, dirigido por Stanley Kubrick. Ela pode ser interpretada de diversas maneiras, colocando em evidência diferentes questões, as mais imediatas sendo: como, em plena vigência de um código de normas morais para o cinema (conhecido como Código Hays), fizeram um filme cujo roteiro seria inspirado em um livro tão polêmico quanto Lolita? Ou ainda, como escalar uma atriz para o papel de Dolores?

As soluções para esses problemas foram, para Kubrick, retirar todas as cenas que seriam consideradas escandalosas demais para as telas. Por mais que o livro não possua tantas descrições sexuais, não há dúvida que os constantes comentários de Humbert Humbert seriam o suficiente para causar mal-estar. Por isso, tudo que os cinemas viram em 1962 não passava de um romance que nasceu de uma “situação incomum”, repleto de cenas cômicas. Além disso, a atriz escalada, a até então desconhecida Sue Lyon, já contava com quinze anos no início da gravação do filme que, se fosse fiel ao livro, começaria mostrando a personagem aos doze anos. Entretanto, no roteiro, sua idade foi aumentada para 14 anos, mas visualmente foi feito um esforço para que Dolores Haze sempre parecesse ainda mais velha – a própria escolha de Lyon é um reflexo disso, já que suas curvas mais desenvolvidas teriam sido um fator decisivo para sua escalação.

Lolita (1962)

As escolhas estéticas do filme o deixaram não apenas mais palatável para o público, mas também o transformaram em sinônimo simbólico do livro. Hoje em dia, é impossível pensar em Lolita sem a imagem de garrafas de Coca-Cola e óculos em formato de coração – esse último não aparecendo nem no livro e nem mesmo no filme, apenas em suas imagens promocionais. Entretanto, por ter um roteiro bastante distante da narrativa de Nabokov, não é canonicamente entendido como uma adaptação fiel. O mesmo não ocorre com o filme de 1997.

O filme dirigido por Adrian Lyne é tido como a adaptação cinematográfica mais fiel ao clássico literário, já que inclui toda a história anterior de Humbert, uma atriz cuja imagem condiz com a idade da personagem e até mesmo diálogos e falas que podem ser encontrados quase na íntegra no texto original. No entanto, a própria natureza do cinema torna difícil a adaptação de algo que define o livro: o narrador não confiável. Uma narração em primeira pessoa apresenta os fatos ocorridos a partir da visão daquele que os conta. Um filme – como é o caso do Lolita de 1997 –, mesmo que conte com uma voz de fundo narrando, mostra a história sob uma perspectiva de terceira pessoa, uma vez que a câmera se comporta não como os olhos de Humbert, mas sim como os nossos olhos enquanto telespectadores. Isso gera uma confirmação visual da existência de uma Lolita como a narrada por Humbert: a criança sensual e, claro, culpada.

Lolita (1997)

Será, então, que Lolita é um livro que, por sua particularidade de construção, não deve ser levado às telas? Bem, há filmes que conseguem saídas formais para o impasse câmera vs ponto de vista de um personagem. Em Cisne Negro, filme de 2010 dirigido por Darren Aronofsky, acompanhamos a jornada da bailarina Nina, que se prepara para sua estreia como protagonista no clássico ballet de Tchaikovsky, O Lago dos Cisnes. É justamente por meio da intercalação de cenas que se contradizem que compreendemos que Nina está passando por alucinações, efeito de sua busca incansável pela perfeição. Outro exemplo de narrador não confiável no cinema pode ser observado em Forrest Gump, em que todo o charme do filme consiste na dissonância entre as imagens vistas pelo público e a narração inocente do protagonista Forrest.

Hoje, com as discussões de não culpabilização da vítima de abuso sexual ainda em seus primeiros passos, uma nova versão de Lolita seria interessante. Uma, entretanto, que esteja empenhada em trazer para as telas a história de Dolores Haze, uma menina que foi sequestrada e regularmente estuprada por seu padrasto. Uma versão em que possamos ouvir sua voz.



Arte em destaque: Mia Sodré

Giulia Benincasa
Nasceu em 1999, é carioca e formada em Letras na UFRJ. Ama livros, filmes, praia, música, circo, macarrão e rolês que acabam cedo. Escreve poemas que podem ser encontrados pela Internet e também em seu livro, Ecolalia, que saiu em 2021 pela editora Urutau.

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