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Cômodo: o imaginário de um imperador malévolo


Ao estudar a Antiguidade, principalmente a Roma Antiga, nos deslumbramos com os grandes acontecimentos e os grandes nomes: de Júlio César a Marco Aurélio, foram vários os governantes que tiveram destaque em suas épocas e cujos feitos ressoam até os dias atuais.

O fato de ser lembrado para sempre na história dos imperadores romanos pode trazer consigo certas nuances. Foram estes que se estabeleceram com a nomeação de “bons imperadores”: Nerva, Adriano, Antonino Pio, Trajano e Marco Aurélio, homens de bom governo, que conseguiram levar Roma à prosperidade em virtude de serem sábios pensadores, estratégicos guerreiros e majestosos políticos. Em contrapartida, a história também faz questão de lembrar aqueles que tinham caráter “desviado”: Calígula, Cláudio, Nero, Domiciano e Cômodo foram os “maus imperadores” que o Estado romano teve a infeliz chance de abraçar como um dos seus. Considerados loucos, maníacos, predadores sexuais, perturbados e sanguinários, estes dos piores homens a pisarem na Terra carregam em suas biografias nada além de defeitos e caráter duvidoso – ou pelo menos carregavam, até o século XIX. A partir do século XX, a historiografia buscou desmistificar esse imaginário que os rodeou por tanto tempo. Hoje, buscaremos entender melhor a figura de Cômodo, o Imperador Gladiador.

Retratada na obra vencedora do Oscar de melhor filme em 2001, Gladiador (2000), do diretor Ridley Scott, a figura de Cômodo, interpretado por Joaquin Phoenix, veio permear mais uma vez a nossa imaginação de “mau imperador”. Representado no filme, o filho de Marco Aurélio é um homem vil, egoísta, vingativo, sanguinário, que não mede consequências para chegar aonde quer: matar seu próprio pai ou tramar contra o povo não foram tarefas difíceis. No entanto, o que podemos esperar do real Cômodo? Seria ele realmente este perfil odioso e nada além? 


Buscando desmistificar tais abordagens, podemos pontuar que Marco Aurélio, com seu governo que durou de 161 a 180, é representado como o “último bom imperador”, cujas ações e comportamento serviram de modelo e inspiração para comparações com os futuros governantes. Depois dele, o Império Romano teria mergulhado em um período de conturbação, com imperadores tiranos, como o próprio Cômodo. O modelo dos Júlio-Cláudios (27 – 68 d.C.) e dos Antoninos (138 – 192 d.C.) servia como espelho para o “bem” e “mal”, e a fonte na qual a biografia de Cômodo (apresentada na História Augusta, de autor desconhecido) se sustenta tem origem no Senado, o que põe em jogo a veracidade dos conhecimentos a respeito de sua figura, uma vez que este mantinha diversos confrontos com os senadores. Desse modo, há uma ideologia explícita que põe Cômodo como mais cruel que Domiciano e mais corrompido que Nero, e que tenta a todo custo prová-lo como um dos governantes mais traiçoeiros, devassos e que menosprezam a tradição romana. Assim, temos um personagem da história que teve seus feitos reduzidos a tipificações, sem uma devida busca pela veracidade da sua vida.

Ainda de acordo com a História Augusta, Cômodo foi o primeiro imperador “nascido roxo”, ou seja, o herdeiro natural de um imperador no poder. Aos 5 anos de idade, foi declarado César, o que fez com que estivesse em posse dos melhores tutores desde a infância, além das instruções advindas de seu pai, Marco Aurélio. Cômodo, porém, desprezava a educação das disciplinas importantes (literatura grega, latim e retórica), pois era um garoto “vil, vergonhoso, cruel, corrompido, lascivo e pervertido”. Em contraponto, o jovem César era agraciado com o dom para as artes, sabendo “modelar cálices, dançar, cantar, assobiar e exibir na perfeição a arte do bufão e do gladiador”. Estas virtudes, no entanto, não correspondiam com as necessárias para ser um (bom) imperador.

A imagem de “último bom imperador” que envolve a figura de Marco Aurélio foi fortemente idealizada pelos autores da antiguidade. Este, que foi o imperador-filósofo, cujas atitudes serviram de modelo para os governantes posteriores, serviu também como comparação para o futuro governo de seu filho. As boas relações de Aurélio com as elites e o Senado, no entanto, lhe garantiram essa boa reputação historiográfica, ao passo que, com Cômodo, acontecia o oposto: nos textos senatoriais, os problemas do Império Romano teriam começado a surgir após a morte de Aurélio, durante o reinado de seu sucessor.


Assim, Cômodo governa como imperador de Roma de 180 até 192 e é conhecido até hoje como um tirano cruel e sanguinário, um predador sexual, um louco, posto por Suetônio (escritor romano de Vida dos Doze Césares) na lista dos “maus imperadores”, ao lado de figuras como Calígula e Nero. Para Herodiano, servidor do Império e autor de História de Roma, isso aconteceu porque o imperador era muito jovem quando assumiu o poder; já para Dion Cássio, senador e historiador romano contemporâneo de Cômodo, o problema do imperador foi ter se deixado corromper pelas más companhias. 

Após governar durante três anos ao lado de seu pai (177 – 180 d.C.), em 180 d.C., após a morte de Marco Aurélio, a primeira decisão de Cômodo enquanto imperador solo foi fazer um tratado de paz com os Marcomanos, rivais guerreiros, manter o rio Danúbio como fronteira do Império Romano, e retornar à Roma. Essa escolha foi vista como uma ruptura com a política expansionista de Aurélio, sendo considerada, portanto, o primeiro momento de reviravolta na história de Roma. Acredita-se que o medo de que Peste Antonina (peste que ocorreu entre os anos 165 e 182 d.C. e que matou Marco Aurélio) fosse contagiosa tenha sido um dos principais motivos que fizeram com que o recém-imperador tenha decidido por acabar com as guerras ao norte. 

Tal tratado mostrou-se, no entanto, bastante honroso: o exército de Roma aumentou de tamanho, uma vez que os prisioneiros de guerra, desertores, e aqueles que foram recrutados forçadamente agregaram em torno de 10.000 homens para o império. Este garantia, ainda, o recebimento anual de um tributo de certo valor estipulado, e proibia que os Marcomanos dessem suporte aos inimigos de Roma.

Porém por ser visto por muitos como inadequado para seu cargo, logo tramou-se um atentado contra sua vida. A principal responsável foi Lucila, sua irmã. Não se sabe ao certo as motivações do complô: Herodiano acredita que estivesse relacionado ao fato de Crispina, esposa de Cômodo, ter mais privilégios e ser superior à própria irmã do César. Assim, Lucila, juntamente com seu amante, Marcus Quadratus, teria convencido Claudio Pompeiano, seu marido e membro do Senado, a atacar e matar Cômodo. Já Dion Cássio aponta que a conspiração era uma forma de Lucila se livrar tanto do irmão quanto do marido. Apesar dessas discordâncias, os textos antigos trazem exatamente o mesmo desenrolar da história: Pompeiano, prestes a apunhalar o imperador com uma espada, recuou e disse que a arma era presente do Senado. Descoberto o plano, Quadratus foi executado, e Lucila foi exilada para a ilha de Capri, onde veio a ser executada.


Se observamos bem, Lucila, considerada uma mulher poderosa, é tratada como uma vilã em ambos os relatos, enquanto que o Senado aparece de forma bastante inocente, o que era muito atrativo para os senadores, uma vez que dá ênfase à inocência destes e ao mau comportamento de Cômodo.

Após esse primeiro atentado, Cômodo remontou o corpo de seus funcionários: dispensou alguns anciãos amigos de seu pai, diminuiu o poder de outros mudando seus cargos, e não nomeou para governar as províncias aqueles que já eram esperados pelo Senado, causando, mais uma vez, repúdio entre os senadores. Além dessas mudanças, Cômodo aparentemente não consultava o Senado com a mesma frequência que seu pai, e interrompeu a prática de convidar magistrados e os principais integrantes para os banquetes no palácio, dando preferência àqueles de sua escolha ao invés dos que mereciam estar perto dele, segundo a tradição.

No que diz respeito aos jogos gladiatórios, outra faceta marcante do governo de Cômodo, estes eram espetáculos de violência institucionalizados pela sociedade romana. No entanto, não era de bom tom que um imperador, em seu alto cargo de prestígio, cedesse aos vícios, uma vez que era esperada uma conduta equilibrada. Assim, a atuação de Cômodo como gladiador no Coliseu foi bastante criticada, sendo considerada a atuação mais extravagante do César. Atribuem-se a Cômodo cerca de 365 vitórias como gladiador, somente durante o governo de seu pai. 

Além de lutar como gladiador, era responsável pela morte de milhares de animais selvagens dentro da arena, como elefantes, hipopótamos, rinocerontes, camelos, tigres e ursos. No entanto, para não pôr sua vida em risco, este atirava suas flechas em cima de um terraço que circulava o anfiteatro.


Os propósitos de Cômodo ao se apresentar na arena eram de fazer-se popular como soberano e redefinir sua posição na hierarquia social, pois dessa forma mostrava proximidade com o povo por não desprezar a cultura. Assim, apesar de seus gostos aumentarem ainda mais a insatisfação do Senado e afirmarem sua inexperiência, este acabava por conquistar a admiração da plebe. Além do mais, era uma forma de demonstrar simbolicamente que era capaz de vencer a morte, já que, na arena, ele demonstrava sua habilidade militar e sua posição no mundo.

Ademais, como seu governo foi característico pelos tratados de paz no lugar das guerras, o comandante precisava mostrar seu valor como guerreiro de alguma forma. Desse modo, a arena tornava-se o lugar perfeito para exibição de suas habilidades militares, ainda que em um contexto diferenciado: matar animais ou lutar como gladiador seria outro meio de se portar como o líder de tropas que era esperado que Cômodo fosse.

Também podemos relacionar a figura do Cômodo gladiador com a de Hércules, uma vez que este teria sido chamado de Hércules Romano, por ter matado tantos animais. Na mitologia, o filho de Zeus é uma divindade que representa a conquista da imortalidade através de grandes feitos. Assim, Cômodo buscava recriar no anfiteatro os passos de seu ídolo, uma vez que, do mesmo modo que Hércules trouxe ordem e prosperidade ao derrotar monstros, esse teria o dever de proteger seus súditos. Ademais, Hércules, assim como Cômodo, governou a terra por direito de nascimento, libertando o mundo de monstros e proporcionado paz e fartura para o povo. Dessa forma, a figura do semideus associada a si afirmaria sua capacidade como imperador. Apenas nos últimos três anos de seu governo que a associação com Hércules tornou-se extravagante, chegando ao ponto dele a possuir uma pele de leão e uma clave, e de usá-los constantemente.


Cômodo foi assassinado em mais uma conspiração envolvendo senadores: o primeiro plano foi pôr veneno em seus alimentos, que não funcionou por este ter vomitado parte da comida ingerida. Assim, um atleta chamado Narciso teria sido enviado a mando de sua concubina Márcia para estrangular o imperador, motivada pela descoberta de uma lista de pessoas que Cômodo planejava matar (pessoas essas que teriam discordado da sua ideia de iniciar o ano consular vestido de gladiador), na qual se encontrava o nome da própria Márcia. Desse modo, no ano de 192 d.C., o reinado do filho de Marco Aurélio chegava ao fim, após 12 anos no poder de Roma.

Assim, apesar das inúmeras controvérsias envolvendo o caráter do imperador, é inegável que seus 12 anos de governo trouxeram paz para o povo de Roma, especialmente no que se diz respeito ao fim da praga e das guerras de expansão iniciadas ainda no governo de seu pai.

Referências


Ana Júlia Neves
Pernambucana nascida em 2003, amante dos clássicos da literatura, de todas as vertentes do rock e do cinema como um todo – pura cultura pop. Estudante de História pela Federal da Paraíba, vivendo sua fase "Rory Gilmore em Yale". Obcecada por um artista diferente a cada semana.

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