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Modernidade em Preto e Branco: os primórdios do Modernismo


O livro Modernidade em Preto e Branco: Arte e imagem, raça e identidade no Brasil, 1890-1945, lançado pela Companhia das Letras, foi escrito escritor e historiador de arte Rafael Cardoso em 2022.

Em sua introdução, o autor começa o movimento de desconstruir o que aprendemos na escola sobre um Modernismo único que começou na Semana de 22, liderado por nomes Di Cavalcanti e Anita Malfatti, falando da existência de algo plural, que veio de diversos lugares. Além disso, Rafael também fala como o anseio e a citação de “ser moderno” data pelo menos 20 anos antes de 1922, em uma tentativa de tentar entender a modernização, a modernidade e o modernismo. Enquanto isso, o Modernismo de 22 se vê atrelado ao erudito, quando na concepção da pesquisa do autor ele vem muito antes em periódicos literários bastante difundidos como Kosmos, Fon Fon! e O Malho.

O pesquisador se detém especialmente no Rio de Janeiro como esse lugar onde erudito e cultura popular se cruzam, onde o território está em uma constante movimentação, e que no final do século XIX e começo do século XX estava em revolução com o surgimento e aumento das favelas, movimentos higienistas e preconceitos difundidos a torto e a direito.

O Rio civilizava-se: contextos e contradições


No ano de 2022, quando se fala de Rio de Janeiro para um pessoa de fora, as associações mais básicas eram samba, a praia de Copabana e Ipanema, mulheres bonitas e, talvez um pouco menos, os morros. Essa construção de imagem vem de um processo centenário que costura a imprensa, sejam periódicos ou caricaturas, e a própria política pública de gentrificação de espaços. Política essa que perdura até hoje, vale acrescentar.

Uma volta no passado nos permite visualizar um Rio de Janeiro um pouco diferente, vindo de um período especialmente caótico politicamente. A cidade era conhecida como “túmulo para estrangeiros”, devido ao alto índice de disseminação de doenças como tuberculose, varíola, tifo, entre outras. Em paralelo, houve um aumento significativo da população de pessoas que saíram da situação de escravidão (após uma abolição desestruturada) para a cidade e também na vinda de imigrantes europeus. Com um salto de 500 para 800 mil habitantes entre a década de 1890-1900, a cidade não tinha e muito menos queria, em vários casos, investir em estrutura de vida. A “solução” encontrada veio de um encontro entre teorias de degeneração racial bastante difundidas no mundo, o movimento higienista, e uma política pública que não fazia a mínima questão de incluir a população pobre e não-branca: o fechamento de cortiços (moradias populares da época) e o despejo das pessoas em condição de rua.

A partir desses movimentos surgem os primeiros assentamentos informais, que posteriormente ficaram conhecidos como favelas, nos morros da Providência e Santo Antônio. E esse é o começo de um longo processo ainda existente de gentrificação de espaços, e o que acontece é justamente a tentativa de apagamento desses espaços, uma ruptura da cidade. Essa ruptura permite que, mais ainda, o racismo prevaleça e o termo "favela" se associe à depravação, malandragem e crime.

Nessa caricatura sem autoria publicada em O Malho em 8 de junho de 1907,vemos as diversas características semióticas do que se pensava sobre a favella (a grafia com dois ls era usada na época). É nesse mesmo ano que os moradores recebem uma ordem de despejo para saírem de suas casas, sem nenhum plano de moradia oferecido pelo governo, fato que é comentado e criticado em uma crônica desse impresso.


“Outro caso que reclama esse cumprimento é o do despejo de habitantes do morro da Favella. Foi concedida a dilatação de prazo por 40 dias, graças a intervenções piedosas e razoaveis. Mas essa providencia de pouco valerá, si o poder competente não providenciar sobre o alojamento d’essa gente que não pode alugar palacios, nem talvez, os sete palmos de terra da residencia final.”

Apesar de após 1907 ter ocorrido uma pequena comoção sobre esse espaço relegado à margem pela política pública, havia a associação bastante problemática com crimes e podridão da alma. O autor do livro comenta que, por outro lado, a associação com a negritude só viria mais forte a partir de 1920, como por exemplo em um artigo ilustrado por Di Cavalcanti para o Correio da Manhã em 1923.

E vale dizer que no meio desses conflitos todos, havia a tentativa cada vez mais forte de pintar o Rio como lugar da Belle Époque, com uma arquitetura afrancesada e de pessoas vestidas com roupas da moda de Paris, movimento conhecido como Reforma Pereira Passos. A cidade também era esse local de paisagens exuberantes e bairros bastante presentes em cartõe- portais. No artigo Ordenando o Paraíso: a Paisagem da Cidade do Rio de Janeiro nos Cartões-Postais (1900-1930), a autora comenta que “Atrelado a isso para a construção da nação brasileira, a natureza teve um papel importante à medida que o governo, juntamente com a literatura romântica, promoveu a exaltação de uma natureza nacional, onde é possível evocar uma nação através de sua paisagem, ou seja, a ideia da terra como pátria”.

Carnaval


[...]
Que saudades ao nos lembrarmos das promessas
que fizemos constantemente na capela
Pra que Deus nunca deixe de olhar
por nós da malandragem e pelo morro da Favela
Vê agora a ingratidão da humanidade
O poder da flor sumítica, amarela
quem sem brilho vive pela cidade
impondo o desabrigo ao nosso povo da Favela

(A Favela vai abaixo, Sinhô)

No Carnaval de 1928, os Tenentes do Diabo, uma das três Grandes Sociedades do Carnaval, incluiu em seu desfile essa música de Sinhô, na época bastante conhecido como Rei do Samba. O samba, até um pouco antes desse tempo, foi bastante discriminado e rejeitado por ser considerado “vadiagem”. Os sambistas Donga e João da Baiana contam em entrevistas que já foram presos diversas por estarem tocando.

"Pandeiro era proibido. O samba era proibido e o pandeiro. Então, a polícia perseguia a gente. E eu tocava pandeiro na Penha, na época da [Festa da] Penha. A polícia me tomava o pandeiro.”

(João da Baiana em depoimento concedido ao MIS RJ, em 24/08/1966)

João da Baiana

A construção imagética do “vadio” também não deixava mentir as intenções de cindir a sociedade entre trabalhadores e marginais, assalariados e outros. Mas de certa forma, essas divisões que pretendiam separar as sociedades se juntavam momentaneamente quando o assunto era Carnaval. Desde sua origem, que passa pelos entrudos, a festividade passava a imagem de ser esse espaço onde todos podem se divertir e tudo pode acontecer. Essa é a aura transmitida em diversos contos da década de 1920, como O bebê da Tarlatana Azul, de João do Rio. O bebê é um conto bem insólito, sobre um caso de Carnaval em que um homem de classe mais rica dá uns amassos em uma pessoa (cujo gênero fica ambíguo na escrita do autor). O conto dá a entender em seu início que o protagonista tem um affair com outro homem, prática que não era exatamente bem vista pela sociedade.

Vale ressaltar que o Carnaval carioca sofreu uma transformação em seus modos de fruição, passando dos entrudos, cujo ponto focal era o povo, até que, a partir de 1855, virou sinônimo das Grandes Sociedades carnavalescas, diversos blocos, ranchos e clubes para comemorar a festividade.

No Carnaval das Grandes Sociedades há também a complexidade de que muitos cenógrafos que imaginavam os desfiles e pensavam nos carros eram também pertencentes ao meio artístico da boemia que almejava uma arte moderna, que fugisse das convenções, como o ilustrador e caricaturista conhecido como K.Lixto. E esse moderno, segundo Cardoso, é um moderno diferente do Modernismo com M maiúsculo de 22, por propor aos poucos inovações estéticas nas artes gráficas e plásticas, a partir de pessoas que vieram do povo, aqui entendido como da cultura popular.

De maneira geral, a criticicidade sobre a Semana não faz com que ela não seja importante, nem afirma que não houve conquistas a partir dela. Todavia a principal sustentação no livro é como a Semana de 22 acabou por apagar diversos movimentos que já vinham fazendo isso e colocá-los como um “pré-Modernismo” ou “o moderno antes do Modernismo”.

Modernidade em Preto e Branco faz um estudo bastante aprofundado de diversos atravessamentos que estão presentes nesses 55 anos de abrangência histórica; as notas de rodapé que mostram as fontes usadas são interessantes para esse além-livro do leitor, além de abrir muitas abas de assunto para pesquisa. O trabalho de curadoria de imagem também é impecável, especialmente quando podemos vê-las em cores.


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Referências 

  • Os Tenentes do Diabo: carnaval, lazer e identidades entre os setores médios urbanos do Rio de Janeiro (1889-1932) (Carlos Frederico da Silva Reis)
  • O samba e a cultura da classe trabalhadora carioca (1900-1930) (Juliana Lessa Vieira)
  • O Rio Civilliza-Se: Memórias das Sociedades Carnavalescas, Uma Perspectiva Brasileira (Lucas Cardoso Alvares)

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