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Esperança, isolamento e a passagem do tempo nas obras de Dino Buzzati e Thomas Mann


O que define o tempo? Seriam os marcos das estações do ano, os minutos de um relógio ou o lento arrastar da rotina? Talvez a resposta seja mais complexa do que imaginamos. Seres humanos, por natureza, possuem a necessidade de contabilizar a passagem do tempo. Não se trata apenas de uma medida útil para a organização diária, mas para o próprio senso de existência linear. Sem o tempo a noção do "eu" se perde num emaranhado de repetições costumeiras. Sem o tempo não há um passado do qual se possa depreender memórias, nem um futuro sobre o qual se possa sonhar. Resta apenas um presente constante e monótono.

Essa relação complexa entre a humanidade e o tempo nunca foi tão evidente quanto nos anos de pandemia. Com a ausência de uma rotina e o consequente isolamento, o tempo converteu-se num conceito distante, por vezes especulativo. Três anos mesclaram-se numa amálgama de meses e horas vividos na constante ansiedade do isolamento. O tempo, para muitos, parou. Perdeu-se na vivência repetida de um sem-número de dias e converteu-se numa ideia distante, pertencente a uma vida pregressa e impertinente. Já não sabemos mais o que é viver como antes, pois o antes nos parece uma ideia fantasiosa.

A explicação por trás desse fenômeno está no conceito de espaço-tempo. O espaço exerce uma função essencial na concepção humana de tempo. É, em muitos termos, seu delimitador e constituidor. No ambiente de trabalho, por exemplo, mede-se o tempo pelos parâmetros de metas, projetos ou turnos. Nas escolas mede-se o tempo pela grade de aulas. Numa caminhada mede-se o tempo pela quantidade de músicas. Ou seja, é na relação entre o espaço e o tempo que reside a noção de temporalidade do indivíduo. O tempo para um estudante não possui o mesmo valor do tempo para um trabalhador, pois ambos estão sujeitos aos efeitos do espaço-tempo.

Essa relação ambígua entre tempo e espaço é minuciosamente explorada em duas grandes obras da literatura europeia: A Montanha Mágica, de Thomas Mann, e O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati. Ambos os livros refletem o complexo comportamento da psiquê humana diante do isolamento geográfico e da eventual ruptura do espaço-tempo.

O tempo na montanha mágica 

Publicado pela primeira vez em 1924, A Montanha Mágica foi finalizada por Thomas Mann após os eventos da Primeira Guerra Mundial. Inicialmente concebida no período no qual o autor acompanhou sua esposa a um sanatório em Davos, na Suíça, a obra eventualmente transformou-se numa profunda análise sobre o estado da Europa nos anos que precederam a guerra. Seu personagem principal é Hans Castorp, "um jovem singelo, ainda que simpático", que parte em direção ao Sanatório Internacional Berghof para visitar seu primo, Joachim Ziemssen. 

Localizado numa região inóspita dos Alpes, o Sanatório Internacional Berghof configura-se como um verdadeiro inferno gelado. Trata-se de um lugar isolado, onde o tempo da superfície, suas regras e morais, parecem ser distorcidos. O espaço dita um ritmo próprio, uma rotina de medicações, exames, atividades e refeições que aos poucos diluem quaisquer noções de temporalidade dos pacientes, ao mesmo tempo em que incitam seus instintos mais viscerais.

Nas primeiras páginas do livro, Hans Castorp revela sua intenção de permanecer apenas três semanas no sanatório, devendo logo retornar à sua vida na superfície. Porém o jovem é confrontado pelo seu primo, Joachim Ziemssen, cuja noção de tempo e espaço foi dilatada e permanentemente alterada pela rotina vagarosa do sanatório.

“— Pois é, o tempo… — Disse Joachim, olhando para frente e meneando a cabeça repetidas vezes, sem se preocupar com o sincero agastamento do primo. — Aqui não fazem muita cerimônia com o tempo da gente. Três semanas são para eles como um dia, você vai ver. Tudo isso se aprende — ele disse. E acrescentou: — Aqui todas as concepções se transformam.”

Embora relutante em permanecer no Sanatório Internacional Berghof, Hans Castorp aos poucos é afetado pelo isolamento. Tal qual o mito de Sísifo, ao mergulhar em si mesmo ele permanece no mesmo lugar. Julgando-se doente, fica no sanatório, sentindo-se incapaz de retornar à vida normal. No entanto, embora Hans Castorp não perceba, sua doença não é do corpo, mas da alma. O mundo externo, antes tão tentador, aos poucos se converte num local inóspito, desconectado de sua realidade. Mesmo diante da visita de seu tio, James Tienappel, o rapaz não anseia pelo retorno, pois sua nova realidade já não comporta o tempo da superfície. 

O tempo no deserto 

Um processo semelhante ocorre no livro O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati. Inspirado no período em que o autor trabalhou no jornal italiano Corriere della Sera, a obra narra a história do jovem oficial Giovanni Drogo, que é destacado para o posto de tenente no longínquo Forte Bastiani. Tal qual Hans Castorp em sua jornada até o Sanatório Internacional Berghof, Giovanni Drogo é guiado por um insider, o Capitão Ortiz. 

“— E não se fica entediado, senhor capitão? — perguntou Giovanni, com um tom confidencial, rindo, como a dizer que ele não ligaria para isso. 

— A gente se habitua — respondeu Ortiz, e acrescentou, com uma repreensão subentendida: — Estou lá há quase 18 anos. Pensando melhor, 18 anos completos.

— Dezoito anos? — disse Giovanni, impressionado.

— Dezoito — respondeu o capitão.”

Localizado numa região desértica e isolada, o forte possui seu próprio ritmo, em grande parte ditado pelas cerimônias militares. O tempo em si mesmo é visto através das pedras do Forte Bastiani e pelas variações praticamente nulas da paisagem árida que o cerca. Os soldados que lá servem aguardam pela suposta invasão dos Tártaros, evento que lhes daria a honra de combaterem o inimigo na fronteira e serem laureados ao final do conflito. 

Retendo um grande apego pela cidade, Giovanni Drogo se propõe a passar pouco tempo no forte. Porém assim como Hans Castorp, sua noção de tempo e espaço aos poucos acomoda-se à rotina monótona do espaço em que vive. Com a promessa da invasão dos Tártaros (e de toda a glória envolvida), o jovem tenente apega-se ao deserto e ao forte, tornando-se parte do ritmo de cerimônias de troca de guarda, formalidades e refeições compartilhadas. 

Esse deslocamento é evidenciado no eventual retorno de Giovanni Drogo à cidade. Ao visitar sua família e seus velhos amigos, o tenente se encontra deslocado. A ausência da rotina construída no Forte Bastiani parece aliená-lo do resto da população, especialmente no que diz respeito ao tempo. Giovanni Drogo já não contabiliza os anos, senão um longo período de espera pela invasão dos Tártaros. Não há mais nada. Não há mais pai, mãe, noiva ou amigos. O Forte Bastiani é a sua identidade, e sem ele, Giovanni Drogo já não é mais nada. 

Em ambas as obras, tanto Hans Castorp quanto Giovanni Drogo deixam seu isolamento por conta de forças externas. Hans Castorp abandona o Sanatório Internacional Berghof para servir na Primeira Guerra Mundial, tornando-se parte da massa descaracterizada de soldados que correm pelos campos da Europa. Já Giovanni Drogo encontra a morte em sua última jornada ao mundo exterior, testemunhando a invasão dos Tártaros enquanto agoniza longe da batalha. Para os dois protagonistas, os anos passados em isolamento pouco lhes serviram. Foram anos de introspecção, esperança e atemporalidade. Eis a pedra de Sísifo. 

Se há algo que A Montanha Mágica e O Deserto dos Tártaros nos mostram é que espaços inóspitos e isolados tendem a revelar os medos, ansiedades e complexidades humanas. No isolamento, o tempo, como unidade linear socialmente concebida, é desconstruído. Dessa dissolução nascem as esperanças, as crenças e a constante espera por algo mais. E do que se trata o algo mais? A invasão dos Tártaros, talvez, ou quem sabe o fim de uma pandemia.

A nós resta a grande pergunta: quando chegar a hora, seremos capazes de deixar nosso Forte Bastiani? Ou terá nossa noção de espaço-tempo se alterado permanentemente?

Referências 

Comentários

  1. Parabéns! Gosto muito de te ver a frente de algum projeto e esse conteúdo está muito bom, sua escrita é boa, vc é inteligente e sensível.👏👏

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