No século IX, a Igreja Católica era cruel: a Inquisição ainda estava longe de começar, mas as autoridades já davam seus primeiros passos rumo à intolerância, misoginia e atrocidades. Foi nesse período que surgiu uma das figuras mais debatidas da história clerical: Joana, a Papisa. A história conta que Joana era uma mulher com sede de saber, que buscava o conhecimento e o estudo, porém isso era negado a todas as mulheres naquela época. Ela, então, disfarçou-se de homem e entrou para a vida sacerdotal para poder ter acesso a livros, estudos e mestres, coisa que só um homem poderia na época. A partir disso, ela acabou se destacando por sua inteligência e perspicácia e se tornou Papa – a primeira e única Papisa da Igreja Católica.
A história parece absurda demais pra ser verdade, é claro. Porém há quem estude evidências e aponte que, de fato, Joana existiu e comandou a Igreja por cerca de três anos. Mas mesmo que essa história fosse apenas uma lenda, a de Juana Inés (Arantza Ruiz/Arcelia Ramírez), a protagonista da série homônima, não o é.
Juana Inés era uma menina adolescente do século XVII, quando foi mandada à corte da Vice-Rainha da Nova Espanha (México) para ser dama de companhia. Mas para ela isso não era o bastante: ainda criança, descobriu a biblioteca de seu avô e aprendeu a ler e a escrever sozinha, tornando-se poeta e estudiosa da literatura disponível na época, ou seja, de teologia e filosofia. Porém assim como a Papisa, Juana não era permitida a ler ou a escrever porque a Igreja, fortíssima naquela época, comandava também o governo e fazia as leis, proibindo mulheres de ter acesso a quaisquer estudos com o pretexto de que o homem é à imagem e semelhança de Deus e a mulher é apenas um gênero defeituoso, criado somente para servir e procriar.
As opções para as mulheres na época eram casar ou virar freira. Mais ainda: o que é preciso entender sobre aquela época é que o ideal para uma mulher era ser freira, aspirante a santa, pois isso lhe colocava acima das demais e lhe conferia autoridade na sociedade. Além disso, freiras também dispunham de maior liberdade do que as mulheres comuns. Juana, mesmo detestando a vida religiosa e não tendo vocação alguma para tal, decidiu que no convento ela teria mais liberdade para estudar e escrever do que dentro de um casamento. Juana Inés então virou freira e continuou escrevendo seus poemas e acumulando livros, chegando ao impressionante número de 4000 exemplares em sua biblioteca pessoal.
Claro que a Igreja não estava nada contente com isso e a reprimia a todo o instante, já que a Inquisição estava a todo o vapor na época, mas Juana não se importava e apenas afirmava que se Deus não quisesse que ela escrevesse, não teria lhe dado o dom. Contudo mesmo com toda sua resistência, ela teve seus livros e escritos tirados dela por seu confessor, o padre Nuñez, que conseguiu lhe atingir no final de sua vida, com a Inquisição, lhe acusando de pecados inexistentes, que para uma mulher eram a morte, mas para um homem eram a glória.
“Meu único pecado foi ser mulher em um mundo de homens.”
A série, produzida pelo canal mexicano Once, retrata muito bem a dificuldade de ser mulher num mundo de homens, num mundo dominado por padres e onde a mulher só tem espaço para servir e servir calada. Trancafiada num convento, não somente por escolha própria, mas por falta de opção, Juana escreveu coisas incríveis, como o poema “Homens Néscios”, no qual claramente chama os homens de estúpidos e os critica duramente por sua conduta hipócrita, e a “Carta Magna da Liberdade Intelectual da Mulher Americana”, em que defende com fervor o direito da mulher a se expressar, a estudar, a ter sua opinião e inteligência respeitadas. Com tais escritos, Juana Inés pode ser considerada como uma verdadeira precursora do feminismo na América.
É desejável dizer que as coisas mudaram de lá para cá. E, de fato, houve mudanças suficientes para que possamos hoje ter um site apenas de mulheres que escrevem sobre clássicos, uma área tão masculina dentro do meio acadêmico. Mas nem todas as mudanças necessárias ocorreram: a sociedade ainda trata mulheres como seres inferiores.
Na Igreja Católica as mulheres ainda não têm vez: os poderes estão nas mãos dos homens, que decidem o que vale ou não para seus fiéis. E até hoje não houve (outra) Papisa, apenas Papas, que chegam ao poder pelos votos de outros homens. A instituição também ainda é contra os métodos contraceptivos, e possuiu, até 1966, sua lista de livros proibidos (o Index Librorum Prohibitorum). Embora exista maior liberdade religiosa hoje, há várias mulheres de fé cristã que ainda precisam lidar com o jugo das restrições colocadas sob seu gênero dentro das comunidades que frequentam, sustentadas por séculos de tradição patriarcal.
Saindo do campo da religião cristã, temos o educacional, que mostra, em pesquisa, que apesar de serem em maior número como estudantes, mulheres ainda estão em minoria como docentes. Isso certamente não ocorre por elas não estarem interessadas em ensinar. Os dados indicam que a maior parte do corpo docente da educação básica é composto por mulheres; já no ensino superior, a maioria ainda é de homens. Isso nos leva a alguns questionamentos, dentre eles o de que uma mulher só é autorizada a ensinar quando cumpre o papel maternal daquela que alfabetiza, daquela que ajuda a criança a dar seus primeiros passos, daquela que é próxima à mãe. Mas não quando ela leciona disciplinas em cursos como Direito, Medicina, Jornalismo etc., tidos como "sérios" e "adultos" dentro do meio acadêmico.
Falando em cursos universitários, em 2017, a livraria Saraiva fez uma promoção para o Dia Internacional da Mulher: todas as mulheres teriam 50% de desconto nos livros comprados. Exceto pelo fato de que os livros em questão seriam apenas os que se encaixassem em categorias consideradas femininas, românticas, literatura de mulher: nada de didáticos ou nas áreas de Contabilidade, Ciências Biológicas, Exatas, Idiomas, Direito, Engenharia, Medicina, Tecnologia ou Informática. Porque tais áreas não entrariam no chamado "interesse feminino".
É impossível olhar para esses dados e eventos tão recentes e não pensar em 1660, no México, quando Juana Inés mostrou para todos que se não lhe dessem o direito a estudar com um mestre a ensinando, ela seria autodidata e aprenderia em livros que esconderia das vistas de todos. Não pensar em quando Juana decidiu, assim como a Papisa - lendária ou não -, se disfarçar de homem para poder entrar numa universidade. A coisa não aconteceu da forma como ela planejou e ela acabou sendo freira, porém seu amor pelo conhecimento não foi calado.
Juana Inés e a Papisa Joana - e tantas outras mulheres que optaram por uma vida sacerdotal para ter mais liberdades do que aquelas dadas dentro do casamento - podem ter em comum apenas o nome, a carreira religiosa e a sede pelo saber; pode até ser que a história da Papisa seja uma lenda, mas o que realmente as une é o fato de ambas terem sido temidas pelos homens de sua época, temidas pela Igreja, temidas por uma sociedade que não aceitava – não aceita – que mulheres sejam inteligentes, talentosas e donas de suas vidas. A série que conta sua história é incrível, as atuações são maravilhosas, o figurino é muito bom. Mas a importância dela não é essa. A importância reside em nos fazer conhecer uma mulher fascinante que só não se destacou mais, e infelizmente permanece desconhecida de muitos atualmente, por uma questão de gênero e ódio a mulheres. Fica aqui, portanto, a recomendação para conhecer Juana Inés através dos 9 episódios que compõem essa série maravilhosa e mergulhar na vida de uma das precursoras da luta da liberdade da mulher na América.
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