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Hilda & Lygia: uma amizade literária


Você acredita em almas gêmeas? Existem várias formas de definir o que são almas gêmeas, não só de um jeito romântico. Uma amizade, por exemplo, pode ser tão intensa que as pessoas envolvidas acreditam se conhecerem de outras vidas.

Lygia, a lua


Lygia Fagundes Telles é conhecida como a maior escritora brasileira viva. Ela é romancista, contista e advogada, e suas obras retratam o ser humano com suas diversas camadas e suas dimensões em face à morte, ao medo e ao amor, dentre outros assuntos.

A estreia literária de Lygia se deu com o livro de contos Porão e Sobrado (1938), e logo seguiu com Praia Viva (1944). Seu terceiro livro de contos, O Cacto Vermelho, recebeu o Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras. Em 1954, com o lançamento de seu primeiro romance, intitulado Ciranda de Pedra, Lygia conquistou o público nacional e se tornou conhecida. Além da escrita, ela trabalhou como Procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo até sua aposentadoria, e foi presidente da Cinemateca Brasileira.


Na década de 1970, Lygia se consagrou com a publicação de seus romances e livros de contos mais conhecidos e premiados: Antes do Baile Verde, As Meninas, e Seminário dos Ratos. Em 1982, a escritora passou a integrar a Academia Paulista de Letras, e em 1985, se uniu à Academia Brasileira de Letras, tomando posse em 1987. Ela teve suas obras traduzidas para diversas línguas e conseguiu reconhecimento internacional. É inegável sua contribuição para a riqueza da literatura brasileira.

Hilda, o Sol


Hilda Hilst foi uma dramaturga, cronista, ficcionista e poeta brasileira, autora de mais de vinte livros de poesia, onze de prosa, oito peças de teatro e inúmeras crônicas. Era conhecia por escrever um pouco de tudo, e é reconhecida como uma das maiores escritoras em língua portuguesa do século XX. Suas obras são um retrato de sua liberdade criativa, e abordam temas como misticismo, insanidade e principalmente o mundo sexual, especialmente feminino.

Seu primeiro livro, Presságio, cativou Jorge de Lima e Cecília Meireles. Hilda se dedicou à escrita por mais de cinquenta anos, e recebeu diversos prêmios por suas obras, além de tê-las traduzidas para diversas línguas. Em entrevista ao Cadernos de Literatura Brasileira, ela afirmou que sempre buscou retratar a relação conturbada entre Deus e o homem.


Hilda infelizmente nos deixou em 2004. Hoje, a Casa do Sol, onde morou por grande parte de sua vida, é a sede do Instituto Hilda Hilst – IHH.

"Ela nos deixou um trabalho maravilhoso, uma poesia maravilhosa. Ela era espiritualista como eu. Num dia, no ano passado, ela me ligou às 23h, e disse: 'Lygia, a alma é imortal', e eu respondi: 'Eu sei, Hilda'. E ela me mandou um beijo e desligou.”

O começo


Era 1949. Hilda compareceu a um chá em homagem a Lygia, que estava lançando um livro. Lygia acompanhava Cecília Meireles, que usava um “turbante negro, no estilo indiano”. A jovem Hilda, loira e confiante, abordou a jovem Lygia: “Sou Hilda Hilst, poeta. Vim saudá-la em nome da nossa Academia do Largo de São Francisco” (brincadeira com a faculdade de Direito, que coincidentemente as duas frequentavam na mesma instituição). Lygia a abraçou e exclamou: “Minha futura colega!”. Com um sorriso de Hilda, Lygia a associou a um delicado e poético ramo tremente de avenca, “aquela planta cultivada pelas freiras”.

Essa é a descrição daquela noite, de acordo com Lygia em seu livro Durante aquele Estranho Chá: Perdidos e Achados. Lygia achou Hilda quase arrogante. Lygia, no mesmo ano em que se conheceram, leu o poema Canção do Mundo, de Hilda, e disse: “Hilda Hilst é um dos jovens e talentosos elementos da novíssima geração intelectual que borbulha freneticamente em São Paulo”.  A repercussão do poema foi o que levou Hilda a publicar seu primeiro livro, Presságio, no ano seguinte. Ninguém imaginaria que as duas davam início a uma amizade que duraria meio século, e só terminaria no ano da morte de Hilda.

“A Lygia tem sido minha amiga a vida toda. Ela me liga todos os dias.”

A amizade


As duas se chamavam de “irmãs sisters”, bem antes de algo do tipo virar meme na internet. Elas apoiavam os trabalhos uma da outra, por mais que a mídia fizesse de tudo para criar uma rivalidade entre ambas. Depois de algum tempo, acabaram cansando de conversar sobre literatura. Já eram família.

Hilda disse: “Eu falo tudo claro. A Lygia se encobre. Quando ela está comigo, por exemplo, a Lygia sozinha, ela é ela. Mas ela tem um certo respeito pelo outro. Eu não tenho o menor respeito. Isto não é um defeito da Lygia, é um defeito meu”. Por mais que ambas tivessem cursado Direito e se dedicassem à escrita, a diferença de personalidade entre as duas era nítida. Hilda não tinha papas na língua, e Lygia era uma pessoa mais discreta. Mas havia uma semelhança: as duas escritoras foram ousadas na escrita, retratando muitas vezes tabus que não eram adequados à sociedade da época.


“Eu me acho uma escritora maravilhosa. Uma prosadora, poeta e dramaturga de primeira qualidade. Eu gosto de saber que me propus e fiz esta tarefa na Terra. O fato de eles [os leitores] não lerem… pior pra eles. Antes eu me chateava mais. Mas já desisti de sobreviver apenas com literatura. Vou ter outras fontes de recursos… [rindo] Posso abrir um bordel geriátrico. Imaginem eu de caixa, com mitaine – aquelas meias-luvas, de renda, sem dedos. Adoro essa imagem. Podia até convidar minhas amigas escritoras: Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon… Mas é claro que elas não vão topar…”

(Hilda em entrevista)

Foram amigas de diversos contemporâneos, como Clarice Lispector. “[...] as três seriam o orgulho de qualquer literatura, e não só da brasileira. Três beldades, um trio que marcou a época”, diz Walnice Nogueira Galvão, professora da FFLCH-USP. Hilda até tinha um pouquinho de ciúme de Lygia com Clarice. Também foram citadas como trio com a poeta Lupe Cotrim Garaude, elogiadas pelas palavras e também pela beleza. Elas eram consideradas, de fato, lindas: Hilda foi musa de poemas de Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes, por exemplo.

“Hilda Hilst amando e escrevendo, quando ela se apaixonava a gente já sabia que logo viria um novo livro celebrando esse amor.”

(Lygia)

Em 1966, Hilda resolveu se dedicar totalmente à escrita e se mudou para a Casa do Sol. Lygia, diferentemente de outras amizades de Hilda, sempre visitava a amiga, que morava muito longe da cidade. Existe uma foto famosa das duas no lar de Hilda, usando vestidos combinando e sorrindo. Na Casa do Sol, duas mangueiras quase idênticas foram plantadas para homenagear as amigas. Os dias lá eram alegres quando Lygia estava por perto; as duas tomavam chá, passeavam pelo jardim e falavam groselhas. Depois da morte de Hilda, Lygia ajudou no tombamento do local, e recebeu de presente um colar que Hilda costumava usar.

“Tantos acontecimentos na Casa do Sol sob o vasto céu de estrelas. Discos voadores! Não sei mais quem viu em certa noite uma frota desses discos. Vozes de antigos mortos sendo captadas meio confusamente no rádio ou na frase musical de algumas fitas, ouvi nitidamente alguém me chamando, me chamando... Reconheci a voz e desatei a chorar. Novos planos. Novos sonhos. O projeto de formarmos uma espécie de comunidade quando chegasse o tempo da madureza, eu disse madureza? 'Velhice!', atalhou a Hilda.”

(Lygia)


Lygia dizia que ficava nua diante de Hilda, e Hilda respondia que ela também ficava; elas conversavam todos os dias, mesmo separadas fisicamente. As duas tiveram uma relação muito única, na qual eram totalmente verdadeiras uma com a outra. Tinham apenas dois dias de diferença de aniversário. Palavras de Hilda: 

“A gente tem uma amizade, sei lá, pode ser até de outras vidas, embora sejamos muito diferentes. Aí, por exemplo, eu bebo muito, ela não bebe nada. Ela diz: ‘Eu vou beber um vinhozinho’. Mas eu já estou bebendo uma garrafa e vários uísques.”

As duas tinham uma paixão em comum: cachorros. E amavam ficar divagando sobre a velhice, com o sonho de criar uma sociedade alternativa que viveriam com os amigos, um lugar para rir e tricotar ao redor da lareira. A sociedade não saiu do papel, mas seria linda de se ver.

Hilda dizia que queria morrer segurando as mãos de Lygia.

“A lareira acesa. E os amigos reunidos nas conversas amenas enquanto estaríamos calmamente bordando nossas almofadas naqueles antigos bastidores, num clima assim dos clássicos dos museus. E agora penso que o importante na amizade talvez seja apenas isso, um tem que achar graça no outro porque nessa bem-humorada ironia está o próprio sal da vida.”

(Lygia)

Ambas se tornaram importantíssimas escritoras brasileiras, que revolucionaram a literatura nacional no século XX. E sua amizade, de verdadeiras almas gêmeas, fez do mundo um lugar mais iluminado.

Nota: Lygia morreu dia 3 de abril de 2022, pouco antes da conclusão desse artigo. Obrigada por tudo, Lygia e Hilda.

Referências



Arte em destaque: Caroline Cecin

Comentários

  1. Gente que postagem maravilhosa, encantada com a leitura que me proporcionou!

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  2. Eu amei, meu Deus!!!!

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