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The Witcher e as mulheres nas escolhas masculinas

The Witcher é uma história originada na obra literária de Andrzej Sapkowski, tendo sua narrativa expandida para o formato de jogo e série da Netflix com mesmo título. Em um misto dos gêneros de aventura e fantasia, que costumam andar lado a lado, o enredo gira em torno de Geralt, um bruxo criado para ser caçador de monstros. O trabalho de um bruxo, portanto, é caçar criaturas e monstros que, de alguma forma, causam incômodo aos humanos e perturbam a ordem normativa do mundo. Com um número reduzido de monstros no mundo, Geralt consegue trabalhos esporádicos em troca de recompensas que permitem a ele sobreviver. Entre uma caçada e outra, novos personagens surgem e um novo conto é narrado. 

No conto chamado O Mal Menor, da primeira obra da saga do bruxo, O Último Desejo, Geralt chega em uma cidade e é contratado por um mago, Stregobor, para assassinar um monstro que o persegue e quer se vingar dele. O monstro, na verdade, é uma mulher chamada Renfri, nascida uma Princesa, mas que pela sua data de nascimento, logo após o eclipse do Sol Negro que profetizava uma maldição para as meninas nascidas na época, foi perseguida pela própria madrastra e por Stregobor, que a auxiliou. Esse conto foi adaptado como o primeiro episódio da primeira temporada da série The Witcher, da Netfllix. Na versão de Stregobor, ela é uma mulher enlouquecida que quer matá-lo sem grande motivo, perseguindo-o de cidade em cidade apenas para perturbá-lo. O que sabemos, no entanto, é que Stregobor levou Renfri a ter uma vida de abusos e violência e seu discurso sobre ela, de ser amaldiçoada, serve apenas para isentá-lo de todo o mal que causou a ela. 

Como uma vítima da Maldição do Sol Negro, foi temida e julgada sem espaço para dúvidas, especialmente sob a certeza do mago de que ela se tornaria um monstro. Nisso, ele e a madrasta de Renfri contrataram um caçador para levá-la a uma floresta, matá-la e trazer de volta seu coração e seu fígado. A história é conhecida por ser uma versão sombria de Branca de Neve, e como tal, o Caçador não matou Renfri por pena, mas a estuprou. Ela então o matou e fugiu, passando a viver de roubos e prostituição para sobreviver. Um tempo depois, ela resolve se vingar de Stregobor, e ele a aprisiona em uma mina, mas Renfri é salva por um príncipe. Porém, em uma vida acostumada à violência e ao terror, Renfri torna-se uma assassina e caçadora ao invés de ficar no principado ou buscar outras formas de sobreviver. Ela, então, querendo dar um fim naquele que a colocou em uma vida sangrenta e violenta, se coloca em uma jornada para encontrar Stregobor. 

Quando o encontra, Geralt a encontra. E sob as ordens do contrato com o mago, decide assassiná-la sob o pretexto de que é um monstro, como Stregobor se refere a ela. Os dois se conhecem e Geralt toma conhecimento da história de Renfri e simpatiza, mas mais para a frente, em um último ato para concretizar sua missão, ela ameaça matar a todos os habitantes da cidade até que Stregobor a enfrente. Logo mais na história, descobrimos que era um blefe, mas na tentativa de refrear as ações da mulher, Geralt prefere atacá-la e matar seus guerreiros a buscar uma solução para sua angústia. 

Geralt diz que entre o mal maior ou menor, prefere não ter de escolher. Contudo, entende-se que uma não-escolha é uma escolha, a de ficar do lado do mais fácil, que costuma ser o do opressor. O Mal Menor, portanto, é a escolha mais fácil, a que vai gerar menos atrito e conflito: culpar a mulher – ao invés de ouvir a verdade e fazer com que o homem que a violentou pague por seus crimes. A única maldição que assolava Renfri não era a do Sol Negro, mas a de ter sido vítima de um homem e do descaso de outro, Geralt. 

No entanto, se tratando de um mundo machista que reproduz nossa sociedade patriarcal, Geralt faz, sim, uma escolha. E ela não é novidade: acaba com uma mulher morta e seu opressor vivo, porque ela não foi escutada. Como ela mesma diz: “é porque sou uma mulher e nasci durante aquele dia”. Não é preciso ser considerada um monstro para ser morta dessa forma, como estamos cansadas de saber, tanto em histórias de fantasia quanto em atrocidades na nossa sociedade. Pode-se relacionar essa questão específica com os dados de feminicídio em nosso mundo, em que muitas mulheres pedem ajuda e não são ouvidas, resultando em suas mortes por parte de seus opressores¹. 

Ao invés de se colocar em conflito com outro homem, Geralt optou por reproduzir uma das violências masculinas que permeiam o(s) mundo(s). Escolhas como as de Geralt não quebram a ordem, elas a mantém, porque exigem menor esforço.

Renfri foi uma vítima da crueldade dos homens, e ela achava que ao se vingar de Stregobor, teria sua dignidade de volta. O que Geralt, em seu papel masculino, não quis assimilar, é que não se deve confundir a reação do oprimido com a opressão do opressor. Renfri tinha raiva, sim, mas a raiva, quando expressada pelas mulheres, é considerada patológica, um sintoma de loucura e histeria, ao invés de um sentimento natural para um ser humano. Jane Ussher também afirma que mulheres são consideradas loucas, ou desacreditadas, apenas por serem mulheres e muitas vezes, por rejeitarem os papeis atribuídos às mulheres e posições de submissão².

Renfri não era só temida por supostamente ser amaldiçoada. Ela era temida porque era uma mulher poderosa, forte e lutadora. Ninguém a vencia na espada, ela não agia de forma delicada, se vestia com trajes considerados masculinos e se defendia ferozmente: características que não são vistas como femininas na sociedade. Homens temem mulheres poderosas, como Stregobor demonstrou ao se esconder aterrorizado em uma torre para que Renfri não o alcançasse. Renfri não se submeteu ao medo e à ignorância de Stregobor, e isso é considerado mais perigoso do que uma maldição. Renfri não buscava realmente vingança, buscava justiça. 

É quando a ficção reflete a realidade. Nós sabemos quem era o verdadeiro monstro da história. E não era Renfri. 

Referências 

  • The Madness of Women (Jane M. Ussher) [1]
  • Casos de feminicídio subiram 21% no Brasil em 2021 (Lupa Feminista) [2] 



Camila Ferrari
Pesquisadora e apreciadora de tons sóbrios. Com um pé na realidade e outro em algum mundo fantástico, é através da leitura e da escrita que define as bordas de si mesma. Sente o aroma de café de longe e é habilidosa em deixar livros espalhados pela casa.

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