últimos artigos

A literatura clássica como escapismo em As Peças Infernais


Livros são instrumentos mágicos para nossa imaginação. A capacidade de conhecer mil pessoas, lugares e histórias traz uma sensação de conforto tão grande que não demora muito para alguém se apaixonar por páginas, já que não somos só tocados por essas palavras e personagens, como também somos, por eles, transformados.

Que atire a primeira pedra quem nunca correu, ou quis correr, para uma música, filme ou livro em um momento de nervosismo ou tristeza, buscando aquele conforto e fuga que somente a arte consegue nos trazer em meio às dificuldades do cotidiano. É um alívio encontrar uma história que contenha tudo que estamos sentindo, especialmente quando achávamos não haver ninguém passando pelo mesmo. Após dois anos em isolamento social, pode-se acreditar que a força da arte como meio de salvação tenha se tornado ainda mais fácil de se compreender. Apesar da história a seguir não envolver esse tipo de isolamento, temos o escapismo através da arte durante toda a narrativa.

Ambientada em 1878, a trilogia As Peças Infernais faz parte do extenso universo de Cassandra Clare sobre os Caçadores de Sombras — nephilims (seres humanos nascidos com sangue de anjo) que protegem o mundo dos ataques de criaturas do submundo, como vampiros, lobisomens e demônios. A autora, que já utilizara referências literárias em suas histórias com pequenas citações clássicas que dão um spoiler para cada capítulo, usa nesse novo ambiente os clássicos como uma parte importante na construção dos personagens de sua trilogia, pois, em diferentes contextos de solidão e desesperança, é nos livros que eles encontram algo ao qual se agarrar e amar.

“– Sempre se deve ter cuidado com livros — disse Tessa —, e com o que está dentro deles, pois as palavras têm o poder de nos transformar.”

Theresa (Tessa) Gray é uma jovem nova-iorquina que, após um pedido de seu irmão, viaja para Londres na esperança de se reencontrarem. Porém, ao descer do seu navio, é raptada por duas mulheres, conhecidas como Irmãs Sombrias, e passa a viver como refém, uma vez que ambas as Irmãs alegam que ela possui o poder de Transformação. Tessa sofre física e mentalmente pela força das aulas, com o objetivo de aprimorar o dom de se transformar em outras pessoas. Tudo piora quando ela descobre que todo esse trabalho será usado para a destruição de uma espécie – os Caçadores de Sombras – e que há a chance de fortalecer demônios e seres do submundo quando ela se casar com a mente por trás de tudo isso.

Assim, entre as dificuldades do seu presente e o medo do que pode acontecer com seu futuro, a jovem busca conforto na recordação que tem da sua casa e dos livros que já lera, uma paixão que ela não consegue esconder em nenhum momento. Esses livros se tornam sua maior companhia e refúgio, dando a ela o sentido que muitas vezes imaginava ter perdido em relação à vida.

“Naquela noite, quando Tessa foi para o quarto, havia presentes para ela na cabeceira: dois novos livros. De algum jeito, as Irmãs Sombrias perceberam que ler romances era a paixão de Tessa. Tinha uma cópia de Grandes esperanças e — quem diria — Mulherzinhas. Tessa abraçou os livros e, sozinha, sem ninguém que a vigiasse no quarto, se permitiu chorar.”

Tessa é resgatada pelos nephilims numa coincidência favorável à sua sorte, mas os perigos ainda a cercam com as constantes ameaças que chegam ao Instituto onde ela passa a morar, e é nas personagens femininas que tanto conhece que ela busca força para não desistir de lutar pela sua felicidade. A todo momento, citações de Jane Eyre aparecem, principalmente pela personagem-título também ter passado por tantas injustiças e tristezas, mas mesmo assim ter persistido, confiando ser a pessoa que sempre soube que era: forte, destemida e merecedora de uma vida boa. Jane não abaixava a cabeça para suas adversidades, nem as usava como motivo para se tornar cruel ou amarga com o mundo, e isso era tudo que Tessa admirava no livro e em si.

Jane Eyre (2011)

Quando Tessa começa a conviver e a conversar com os Caçadores do Instituto, descobre em Will Herondale mais coisas em comum do que imaginava. Assim como ela, ele é um amante de livros, do tipo que recita poesias no meio de conversas sem errar um trecho ou que expõe suas opiniões sobre as melhores peças de William Shakespeare a alguns amigos. Foi através dos livros que a armadura de Will começou a cair para o leitor e para Tessa: quando ele permitiu se colocar no lugar de Sydney Carton, de Um Conto de Duas Cidades, para demonstrar seus medos e desejos que antes não ousava contar a ninguém. Não seria exagero dizer que foi com Charles Dickens que Will se permitiu ser verdadeiro por muito tempo.

Longe de sua família e acreditando não ter o direito de amar ou ser amado, era nos livros que Will também demonstrava seus reais sentimentos pelos outros, fosse lembrando de como sua irmã, desde criança, era destemida e selvagem como Cathy de O Morro dos Ventos Uivantes, ou então dizendo que, para ele, Charlotte, a líder do Instituto, era honrada, feroz e forte como a rainha Boadicea. Se na sua realidade ele se considerava uma pessoa amaldiçoada, quando estava lendo, ele era livre para ser o que quisesse.

“— Foram os livros que fizeram com que eu sentisse que não estava completamente sozinho. Eles podiam ser sinceros comigo e eu com eles.”
Boadicea, a rainha dos celtas (John Opie)

A importância da literatura e da arte é colocada em diferentes contextos e personagens, mas todos têm algo em comum: são nelas que eles encontram o apoio necessário quando mais precisam. De certa forma, cada um deles atingiu seus objetivos como parte daquele mundo de caça, mas foi com o apoio dos livros que puderam realizar seus desejos mais pessoais. Tessa começa a história sendo aquela heroína forte de um romance, mas, ao longo do tempo, transforma-see também nas guerreiras literárias a quem tanto almejou; enquanto Will, que começou sua história destruído como Sydney Carton, se tornou o perfeito cavalheiro austeniano, descobrindo que seu amor nunca foi sua maldição, mas sim seu maior motivador.


Arte em destaque: Caroline Cecin

Carolina Pereira
Santista, 20 anos, estudante de psicologia e de filosofia. Amante de idiomas, café, mar e tudo o que Edgar Allan Poe tenha colocado no mundo. De vez em quando tem vontade de fugir e viver como um hobbit.

Comentários

Formulário para página de Contato (não remover)