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Fantasia: a Disney que se permitiu ousar


Fantasia
(1940) faz parte da era de ouro da Disney. Tendo início com o primeiro longa-metragem animado da história (Branca de Neve e os sete anões, de 1937), a era de ouro não só marca o começo do cinema de animação, mas também um momento de muita experimentação artística para o estúdio. A Disney não só ousou em investir na animação e criar técnicas revolucionárias para lançar um longa animado como também desafiou o público e o tempo em que vivia, considerando-se que logo no meio dessa era começa a Segunda Guerra Mundial. 

Fantasia é possivelmente o filme mais ousado do estúdio. Com vários estilos de arte diferentes  presentes na animação - indo até a arte abstrata,  passando por música clássica e curtas animados sem falas -, a obra é algo completamente único no catálogo da Disney. Seus curtas contam histórias inspiradas pelas músicas presentes neles, e cada um é independente entre si, sem contar uma única história sequencial, ilustrando peças musicais instrumentais em estilos bem distintos. O ponto em comum é o narrador no começo (o maestro Leopold) explicando sua história. 


Uma das grandes contribuições técnicas do filme ao cinema é no quesito som. Já que todo o conceito da animação girava em torno de música clássica, Walt Disney e Leopold Stokowolski queriam que o espectador se sentisse realmente presente em um concerto de orquestra. Foi a partir daí que nasceu o Fantasound: um sistema estereofônico multicanal desenvolvido pelos engenheiros da Disney e da RCA. Uma das grandes revoluções desse sistema fônico é ser multicanal, criando o famoso Stereo Surround (usado até hoje), permitindo ao som mover-se de um alto-falante para outro, mudando a intensidade, o volume e até o instrumento. Logo dependendo da posição do espectador, seria possível ouvir a música vinda de posições diferentes, da mesma forma que acontece hoje nas salas de cinema.

Porém o problema que o Fantasound gerou foi um gasto alto não só com seu desenvolvimento, mas também com a instalação dele nas salas de cinema. A distribuidora da Disney, RKO, não quis arcar com os custos dessa instalação, portanto eles foram todos custeados pelos estúdios, que na época estavam em seu auge do sucesso. Ainda assim, eles conseguiram implementar o Fantasound em apenas doze salas de cinema nos Estados Unidos. 

O Aprendiz de Feiticeiro e o nascimento de um filme e de um ícone


É dito que Walt Disney mencionou a ideia do curta O Aprendiz de Feiticeiro, isso antes de ele sequer pensar no resto do filme, para o maestro Leopold Stokowski num jantar entre os dois, e lhe pediu para ajudar no projeto, o que o maestro aceitou. Logo depois, vieram ideias, também vindas do próprio maestro, para outras peças, e assim ia se formando o filme.


Na época, Walt Disney queria trazer mais popularidade para seu mascote, Mickey Mouse, e de algum lugar tirou a ideia de fazê-lo estrelar uma versão do poema de Johann Wolfgang von Goethe, “O Aprendiz de Feiticeiro”, musicado pelo falecido Paul Dukas. Nessa comédia, o jovem aprendiz de feiticeiro, que no curta é o próprio Mickey, tem a tarefa de carregar água do poço com baldes. O aprendiz, no entanto, decide usar o chapéu de seu mestre para enfeitiçar as vassouras e elas fazerem sua tarefa por ele. As coisas saem tão bem quanto se espera de um jovem inexperiente fazendo magia sem supervisão: um total caos.

A ideia de Disney deu muito certo. Não só estabeleceu Mickey Mouse como um mascote carismático, mas também criou um ícone, a cara do Walt Disney Studio até hoje. Tanto o rato quanto o curta são incrivelmente conhecidos e, talvez, uma das primeiras coisas que se pense quando se fala da empresa. Para tal feito, Mickey recebeu uma repaginada em seu design: ele ganhou uma cabeça maior, olhos delimitados, para as pupilas não se misturarem com a face, e um corpo em formato de pera, possibilitando o mascote a ser mais expressivo tanto nas emoções quanto nos movimentos.

Nota-se também no design do protagonista o uso da diádica complementar para compor suas vestimentas. Isso é, o uso de duas cores complementares - chama-se complementares aquelas cores que quando misturadas entre si formam o cinza neutro - opostas. O azul do chapéu de seu mestre representando a magia e a fantasia e também a calma, a serenidade da experiência, contrastando com o vermelho da roupa de Mickey, que representa o fervor e a urgência da juventude e da inexperiência. 


A composição musical do curta é original, feita por Paul Dukas para o segmento. A música, associada com o extenso uso de sombras na cinematografia, constrói uma ambientação de terror e medo. Destaque também da belíssima animação das ondas, responsável pela atemporal cena em que Mickey, usando o chapéu de seu mestre (talvez um dos chapéus de mago mais icônicos da história da animação), está em uma pedra brincando de magia e fazendo fortíssimas ondas com a água. Todos esses elementos inundam feroz e desesperadamente o espectador, trazendo uma sensação de urgência, inexperiência e curiosidade, a ingenuidade e o constante medo da descoberta e também da possibilidade de destruir tudo que o nosso protagonista possui.

Do terror profano ao sagrado


O último curta do filme, ao contrário de O Aprendiz de Feiticeiro, é o que menos possui a tal cara da Disney. Com elementos góticos, brincando com o sagrado e o profano, algumas cenas dessa animação beiram ao horror, com direito a aparição de uma grande entidade do mal, o Chernobog (deus que representa todo o mal na mitologia eslava).

Como descrito pelo narrador, o curta-metragem utiliza duas músicas tão diferentes em construção e tom que elas se contrabalançam perfeitamente: A Night on Bald Mountain (Modest Mussorgsky) e a famosa Ave Maria (Franz Schubert). Logo, musical e dramaticamente o curta seria composto por dualidades. Bald Mountain, além da música, é o local de reunião de Satã e seus seguidores na noite de Walpurgis, que é o equivalente à nossa noite do Dia das Bruxas, quando seus fiéis se reúnem para idolatrar seu mestre e dançam sob seu feitiço até o nascer do sol, momento em que os sinos da igreja expulsam tais criaturas maléficas. E então há a Ave Maria, com sua mensagem de esperança e vida sobre as forças de esperança e morte.


A primeira cena já abre utilizando-se da monocromia com tons de azul e um castelo sinistro numa montanha. A primeira parte do curta de forma geral conta com muitos tons de azul e variações de roxo/violeta com um pouco do preto; destacam-se aí os olhos amarelos do Chernabog. Depois entra uma luz vermelha no próprio diabo (refletidas de vez em quando em algumas almas) e seu fogo variando de alaranjado para azulado, também passando por breves períodos pela tradicional cor dos vilões da Disney: o verde.

É interessante ver como a luz e o próprio estilo da animação passa a mudar no amanhecer: saindo da luz vermelha para a azul, o desenho vai ficando com marcas que remetem a giz de vez em quando. O azul mais escuro e puxado para o preto presente no início da animação naquela montanha passa a um azul mais claro e esbranquiçado, indo para um tom celestial, e aparecem luzes de tons mais “calmos e aquecidos” de laranja e vermelho.

E finalmente o curta sai dos azuis para dar espaço à manhã. Então temos o verde da natureza, o amarelo do sol, os vermelhos e violetas das flores, os marrons da terra, o alaranjar de um céu com o sol fazendo o dia raiar. E assim termina essa história e o filme, com uma mensagem de esperança e um ousado, porém belo e bem executado, conto.


No fim Fantasia de 1940 se tornou um clássico até bem-sucedido artística e financeiramente. Mas isso apenas depois de muitos anos e vendas de cópias físicas. Infelizmente, na época de seu lançamento ele tinha sido um fracasso de bilheteria, levando à desistência de Walt Disney em fazer mais filmes assim (sua ideia inicial era fazer um por ano). Somente na década de 1910, com sua comemoração de 50 anos e muitas vendas de cópias físicas, a Disney resolveu fazer outro filme nesse estilo, surgindo o Fantasia 2000. Nessa versão, novos curtas menos ousados em temáticas são feitos; a música clássica, o curta de O Aprendiz de Feiticeiro, do Mickey e o narrador se mantêm, porém dessa vez são múltiplos narradores celebridades.

Ambos os projetos se destacam como peças únicas no catálogo de animação da Walt Disney Studio. Principalmente sua versão original, por abrir novas portas em questões técnicas tratando-se do som e por ousar fazer arte simplesmente pela arte. Aventurando-se em estilos totalmente diferentes do que seria considerado comerciável, explorando temas talvez polêmicos e assustadores para crianças, trazendo para o público geral também a música clássica e deixando a imaginação tanto dos artistas quanto dos espectadores voar por ai. E tudo isso, na animação tradicional, sem usar um único diálogo, e mesmo assim conseguindo transmitir todo o sentimento que talvez nenhuma palavra conseguiria.

Ainda bem que tivemos artistas que não se intimidaram pela ideia de que algo nunca tinha sido feito antes, tampouco tenham se deixado levar pelo pensamento de que talvez o público geral não se interessasse ou não conhecesse música clássica. Afinal, se não conheciam, quem melhor que o querido Mickey Mouse para apresentar esse mundo instrumental para todos?

“A beleza e inspiração da música não deve ser restrita a apenas um grupo privilegiado, mas feita disponível para todo homem, mulher e criança.”

(Leopold Stokowski)


Arte em destaque: Caroline Cecin
Nicole Hildebrand
2000, carioca de nascença e de coração para sempre (mesmo fora de lá). Universitária cansada. Fã de carteirinha de fantasia e sci-fi desde pequena e sempre fascinada por boas histórias, independente de gênero. Escreve umas coisas por aí nas horas vagas.

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