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Os Romanoffs: quando a história se repete como farsa


Um dos acontecimentos mais chocantes e emblemáticos do século XX foi o assassinato da família imperial russa em 17 de Julho de 1918. Os Romanovs foram colocados no porão da Casa da Proposta Especial, onde vinham sendo mantidos há meses sob prisão pelos bolcheviques e, então, foram mortos com tiros, ataques de baioneta e faca. Em seguida, os corpos foram transportados para uma vala, onde foram esquartejados, empilhados, queimados e mergulhados em ácido sulfúrico. O czar, Nicolau II, a czarina, Alexandra, e seus cinco filhos, Olga, Tatiana, Maria, Anastasia e Alexei, foram os últimos grandes representantes do Antigo Regime. Os últimos enviados por Deus para governar suas nações e guiar seus povos. Depois deste fim trágico, nunca mais o Ocidente foi o mesmo, e mudanças radicais na organização política e social da Rússia e da Europa marcaram o século XX.

O Czar e a Czarina, no entanto, não eram os únicos Romanovs. Haviam muitos outros integrantes da família nobre russa que ou caíram nas mãos dos bolcheviques e também foram mortos, ou previram o perigo que corriam e conseguiram fugir antes que a Rússia fosse de vez submetida ao Exército Vermelho. É a partir desta ideia de que ainda existem por aí descendentes da família imperial russa, vivendo suas vidas normais nos dias de hoje, que Matthew Weiner, autor de Mad Men, criou a série Os Romanoffs, lançada em 2018 pela Amazon Prime. Como toda família de imigrantes e refugiados que tem a grafia de seus nomes trocadas, Matthew Weiner faz essa brincadeira, de maneira inclusive explícita num diálogo no episódio dois. Romanov seria a grafia em russo, enquanto Romanoff é a transliteração do nome próprio para o inglês e o francês.


A primeira e única temporada é uma antologia de oito episódios independentes de aproximadamente uma hora e meia. São pequenos filmes nos quais Matthew Weiner explora vários gêneros: o primeiro episódio, por exemplo, é um conto de fadas contemporâneo, o segundo brinca com elementos noir, o terceiro é um thriller psicológico, no quarto acompanhamos a protagonista em apenas um dia de sua vida. Os cenários também são os mais diversos: Paris, Nova York, uma cidade comum no interior dos Estados Unidos, Cidade do México, Áustria, Rússia, Inglaterra. É justamente a ideia de que, uma vez refugiados, os sobreviventes da família Romanov precisaram se espalhar pelo globo. Há apenas um ponto em comum que une todas as histórias: a descendência, real ou imaginária, de alguns personagens e de que forma isso determina (se determina) suas vidas.

Os últimos anos da família imperial que antecederam a Revolução Russa foram de caos político e econômico. Enquanto nas ruas o povo russo enfrentava fome, guerras, greves, exploração de trabalho e condições de vida miseráveis, no palácio, protegidos pela guarda imperial e grandes portões, o Czar e a Czarina viviam uma série de problemas internos. A começar pelo sentimento de deslocamento de Alexandra. Nascida e criada na Áustria, a czarina não se sentia bem-vinda pelo povo russo e sua corte. Para piorar, o filho homem descendente só veio na quinta gravidez. Antes, as quatro primeiras filhas não poderiam vir a ser coroadas e se tornarem sucessoras diretas de seu pai, o Czar Nicolau II. A pressão pelo filho herdeiro não foi resolvida com o nascimento de Alexei, pois o menino sofria de hemofilia, uma doença genética comum nas casas reais europeias e, portanto, trazida à corte russa pelo lado materno. Tornou-se imperativo o excesso de zelo pela saúde e vida da criança, ao mesmo tempo que sua doença foi ao máximo mantida sob segredo.

Esta delicada situação interna, mais a tensão social, econômica e política que a Rússia vinha sofrendo, tornou propícia a entrada de misticismo e ocultismo dentro da corte sob a figura de Grigori Rasputin. Rasputin aproximou-se da família imperial via Igreja Ortodoxa Russa, de onde fazia parte mas não tinha boas ligações. Seu envolvimento em seitas o levava à uma vida desregrada, repleta de vícios, bebedeiras e orgias. Mesmo assim, o misticismo que o envolvia tornou Rasputin figura carimbada na corte entre os Romanovs e as demais famílias da nobreza, prometendo a cura de Alexei e sendo confidente e guia espiritual da czarina.

Todos estes elementos aparecem nos episódios de Os Romanoffs, como se os descententes carregassem geneticamente as benesses e as maldições da linhagem. Em 1852, 66 anos antes da execução da família imperial russa e da tomada de poder pelos bolcheviques, Karl Marx escreveu que “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Os episódios construídos por Matthew Weiner seguem essa premissa, e vemos a neurótica czarina, o curandeiro que promete a cura de doenças incuráveis, o problema da linhagem sanguínea e uma vontade e modo de viver aristocráticos em situações da vida contemporânea. O que torna tudo um pouco ridículo e vergonhoso para aqueles personagens e famílias que se sentem legítimos herdeiros de direitos divinos e de uma vida aristocrática que não há mais espaço nesse mundo.

A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.

A ironia desta repetição fora de contexto é o que torna a série tão única e interessante, pois em cada episódio procuramos quais são os elementos em comum entre a corte imperial russa e a vida ordinária dessas pessoas que se sentem aristocráticas e injustiçadas pelo destino da história. Por exemplo, no primeiro episódio acompanhamos Anushka em seu luxuoso apartamento em Paris. Idosa, sem filhos e netos (ou seja, sem descendentes diretos), tem como parente mais próximo um sobrinho estadunidense, Greg, que veio de Los Angeles para acompanhar sua tia. Enquanto Anushka reproduz todos os clichês mais aristocráticos possíveis, e sendo uma velha orgulhosíssima pela sua linhagem sanguínea e o passado russo de sua família sem nunca ter nem pisado na Rússia, Greg não se importa muito com isso. O interesse de Greg e Louise, sua namorada, é herdar o enorme apartamento de Anushka que, por sua vez, só é propriedade da família porque um dos Romanovs, antes da Revolução, comprou este apartamento para ter encontros secretos com sua amante.


Anushka é uma senhora idosa e precisa de cuidados, mas sob o pedestal de “ser uma Romanov”, ela maltrata todas as cuidadoras que seu sobrinho contrata, até que chega Hajar. Muçulmana, nascida em Paris e filha de pais imigrantes (assim como a propria Anushka), Hajar vai desafiar todos os preconceitos sobre linhagem, bagagem cultural, imigração e aristocracia que Anushka acreditava ter. Como um conto de fadas moderno, a empregada e o homem herdeiro, Greg, se apaixonam e, deste relacionamento, surge a possibilidade de continuidade de linhagem dos Romanovs.


Hajar: O ovo é magnífico. De onde ele veio?
Anushka: Minha família é a família real russa. Os Romanovs. A Rússia fazia parte da Europa na época. Quando os prussianos casaram com... Catarina, a Grande? Todo o continente tinha os costumes da realeza. Eles até falavam francês.
Hajar: Catarina, a Grande, é sua ancestral?
Anushka: O joalheiro que criou esses objetos para a família real tinha nome francês, Fabergé, mas ele era russo. Ele fez menos de 50 desses. O ovo fez duas viagens até aqui. Uma vez com meu trisavô, que comprou o apartamento pra amante e trouxe o ovo para mantê-lo longe da esposa em São Petersburgo. A segunda vez, veio com meus pais. Escondido nas penas do travesseiro, logo depois da família ter sido assassinada. Era o pé-de-meia deles.
Hajar: Não acredito que me deixou tocá-lo.
Anushka: A vida é para ser apreciada, especialmente a beleza. Até os nazistas sabiam disso. Eles moraram aqui. Neste apartamento.
Hajar: É mesmo?
Anushka: Eles sabiam que odiávamos os comunistas, e que temos sangue alemão. Eles mandaram meu pai embora. Mas minha mãe, minha irmã e eu... Eu era só uma menina... Éramos as empregadas deles, cozinhávamos sua comida, engraxávamos as botas, lavavámos os lençóis. Estupraram minha irmã em uma cama que ela tinha acabado de fazer.
Hajar: Que horror.
Anushka: Sim. Eles eram animais. Levaram tudo. Esse ovo é falso.

Outra figura que aparece contantemente ao longo dos episódios é a de Rasputin, seja como curandeiro e místico, seja como conselheiro e confidente. No quinto episódio, uma rica família mora numa belíssima casa na Califórnia (como um palácio), e seus três filhos estudam piano. Ao som de Tchaikovsky, conhecemos David, o professor de piano que, sob a indicação de Katherine Ford, a mãe rica descendente dos Romanovs, está na casa de todas as outras famílias ricas californianas, seduzindo com palavras as mães de seus alunos, sendo amigo e confidente, viajando juntos e compartilhando intimidades na cozinha. Essa dinâmica é colocada em cheque quando uma suspeita cai em cima de David, expondo então toda a sedução que o professor exerce sobre essas famílias. Katherine, assim como Alexandra, sente-se responsável, já que foi ela quem trouxe David ao seu círculo social (como se fosse uma corte) e todas as outras mães e mulheres da alta sociedade seguem seu exemplo. Também como Alexandra, apesar de suspeitas e das mentiras que são colocadas em jogo, Katherine se mantém a favor de David, pois acredita na sua influência positiva para a saúde e desenvolvimento de seu filho, para quem as aulas de piano são muito importantes.

Rasputin na forma de crendice e falsas promessas também aparece de forma evidente no episódio seis, no qual uma mãe muito rica viaja da Europa para a Cidade do México com seu filho hemofílico e bastante frágil para se consultar com um médico que promote a cura. Apesar das suspeitas que rondam a origem e método desse tratamento, a fé e a esperança guiam as decisões de Victoria, a mãe da criança. A linhagem imperial aparece aqui como uma maldição: a nobreza vem acompanhada com a doença e, como Alexandra, é a fé e as promessas dadas pelo médico/curandeiro que movem as decisões de Victoria em favor de seu filho.

Mas o que significa nascer com o sangue da nobreza em pleno século XXI, ou como a questão de gênero atual pode ser colocada dentro desse prisma? O que hoje significa o nascimento de um homem ou uma mulher Romanov?

No sétimo episódio, um casal estadunidense viaja até a Rússia para realizar o sonho de adotar um bebê. Anka, uma descendente dos Romanovs, e Jay vinham acompanhando pela internet a gestação e o nascimento da criança há alguns meses com a ajuda de uma agência de adoção. Ao chegarem, descobrem que a bebê não é saudável. Ela sofre de síndrome alcoólica fetal e Anka não quer mais adotá-la. A discussão moral e ética é pesada: sendo um processo de adoção e não gravidez, ela tem essa possibilidade de “escolha” de um filho saudável em troca de um doente? Ao contrário dos demais episódios, este é escuro, devagar, e são os longos diálogos e discussões entre o casal protagonista que trazem a angústia e tensão dessa história. Também é neste episódio, ao contrário dos outros, que saímos do “palácio real” e vemos o outro lado dos portões: a população russa e a miserabilidade econômica e social em que vivem.


Jay: Sabe o que eu penso? Penso que está envergonhada, acho que esteve envergonhada o tempo todo. E agora fomos aos confins da Terra para encontrar um filho que impressionaria o mundo. Essa era sua ideia esnobe de como uma família se parece. 
Anka: Do que você está falando?
Jay: O que estamos fazendo aqui? Na Rússia? 
Anka: Se não podíamos fazer um filho, eu queria alguém com os mesmos genes. 
Jay: Os Romanovs nem eram russos! Eram alemães, você sabe disso. Estamos aqui porque você não quis um bebê negro. Podíamos ter adotada em Los Angeles. Crianças lindas e saudáveis. 
Anka: Mentira. Estamos aqui porque não você não quis alguém batendo à nossa porta daqui a dez anos pedindo o filho de volta. Não seja arrogante. 
Jay: Eu só queria um bebê que fosse nosso. Não me importava que tipo de bebê. Só que fosse nosso. [...] Mas adivinhe só? Não dá para escolher. Não é uma viagem de compras. 
Anka: É, sim. 
Jay: Porque acha que tem o direito, e fica pondo um preço nisso. 
Anka: Sim. Há um preço. Cinquenta mil dólares. Isso me dá o direito de escolher. 
Jay: Você está errada. Nunca há garantias com algo assim. É um salto no escuro. E a única coisa que é certa é que no minuto em que puseram aquele bebê em nossos braços, ela virou nossa filha, seja como for. 

Já no oitavo episódio, a mulher trans deseja os brincos que um dia pertenceram a sua mãe e que foram presentes do próprio Czar, mas ouve de seu pai e madrasta que ela não pode ter aqueles brincos, pois só uma filha poderia tê-los como herança. Além da temática de gênero, este último episódio coroa toda a temporada, proporcionando uma contação de história como em As mil e uma noites: uma narração, dentro de outra narração, dentro de outra narração.

Simon Burrows: Por que Ondine está usando os brincos da Mamãe? 
George Burrows: Bom... Se nós tívessemos tido uma filha, eles teriam sido dela.
A trilha sonora é um show à parte. Começando pela música de abertura, Refugee, de Tom Petty, com as imagens do assassinato da família e de fotografias sugerindo que da corte e da nobreza, os Romanovs tornaram-se refugiados espalhados pelo mundo. 


É na abertura, inclusive, que Matthew Weiner brinca com a teoria (já refutada) de que uma das filhas, Anastasia, teria conseguido fugir, ao mostrar uma menina de capuz azul correndo pela floresta e, na cena seguinte, saindo de uma estação de metrô de Nova York. Ora ao som de Tchaikovsky, ora clássicos do rock, as músicas se tornam elementos indispensáveis para a compreensão dos episódios. Matthew Weiner trabalha a todo momento com a metalinguagem e, no episódio três, durante uma gravação de uma série sobre o assassinato dos Romanovs, o ator que interpreta o Czar Nicolau II performa uma cena de diálogo com Alexandra cantando Suspicious Mind, de Elvis Presley, para falar sobre os problemas na corte que vinham sendo causados por Rasputin.


Apesar do elenco de peso, com nomes como Diane Lane, John Slattery, Christina Hendricks, Jay. R Ferguson e Amanda Peet, e o próprio Matthew Weiner como criador da obra, ganhador de vários prêmio por Mad Men, a série foi muito mal recebida pelos críticos. A chuva de reviews negativas fez com que ela não fosse renovada para uma segunda temporada e se mantesse pouco conhecida entre o público – inclusive pelos fãs de Mad Men. São alguns os pontos que contribuem para este ostracismo. 

Pouco antes do lançamento da série, em 2018, Matthew Weiner foi acusado de assédio por uma redatora de sua equipe de Mad Men, durante a campanha #metoo. Apesar de ele ter negado as acusações, essa denúncia contribuiu para o recebimento desfavorável de Os Romanoffs. Outro fator é a inimizade muito bem conhecida do público estadunidense com legendas e, apesar do inglês se sobrepor, ainda há muitos diálogos e frases ditas em francês, alemão, russo e espanhol, já que muitos episódios se passam fora dos Estados Unidos. Também importante mencionar a cultura republicana daquele país e sua forte identidade ligada às questões democráticas. A historiografia constrói as origens e formação dos Estados Unidos baseando-se justamente na negação de realeza, nobreza e aristocracia, tornando estes elementos pouco interessantes para o público e a crítica estadunidense. 

Finalmente, o último fator que colocou a série no desgosto da crítica reside do fato de que poucos a compreenderam como uma transposição contemporânea, atual e irônica dos Romanovs, cujos descendentes procuram a glória que nunca viveram e da qual seus antepassados fugiram ou foram mortos. A série ilustra a máxima de Marx: a execução e fuga dos Romanovs no século XX é retratada como tragédia, enquanto a reprodução falhada e a procura dos ideais aristocráticas e nobres pelos supostos descendentes é só uma farsa.

Referências

Giovana Faviano
Historiadora de formação. Interessada em tudo que envolve subjetividade e criatividade humana. Ama ler, escrever e cozinhar. Se não está fazendo uma destas três coisas, então está tomando um cafézinho.

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