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Para além de mestre do terror: uma outra faceta de Stephen King

Amplamente conhecido pela alcunha de “Mestre do Terror”, é evidente a habilidade de Stephen King em criar tramas e personagens únicos e cativantes, que ficam marcados na memória de seus leitores e do público que teve a oportunidade de assistir a pelo menos uma das dezenas de adaptações cinematográficas de suas obras. 

Aclamado por produções de sucesso no terror como Carrie, a Estranha (Carrie, 1974), O Cemitério Maldito (Pet Sematary, 1983), O Iluminado (The Shining, 1977) e It - A Coisa (It, 1990), Stephen King tem, contudo, uma outra faceta que é pouco disseminada: o teor dramático de algumas de suas obras, as quais exploram personagens cotidianas passando por situações incomuns, que nos trazem reflexões sobre a natureza humana e a vida. Algumas dessas obras deram origem a clássicos do cinema e a outros filmes muito consagrados, mas acaba passando despercebido o fato de que essas produções foram baseadas em obras concebidas pelo autor, justamente por destoarem de seu repertório convencional, já que não são histórias repletas de sangue, suspense e horror. 

Dentre alguns exemplos bem conhecidos, é possível destacar o romance À Espera de um Milagre, publicado em 1996, que deu origem ao filme de mesmo nome (The Green Mile, 1999), protagonizado por Tom Hanks. Apesar de conter elementos sobrenaturais, o enredo nos apresenta a uma bela e comovente história que ilustra o poder da fé e do bem contra o mal por meio da jornada de um guarda que trabalha no corredor da morte e desenvolve uma relação especial com um dos condenados. Vale mencionar ainda o conto O Nevoeiro, presente na antologia Tripulação de Esqueletos (Skeleton Crew, 1985), o qual deu origem ao filme de mesmo nome e que tem um dos finais mais tristes e impactantes já vistos (verdadeiramente mindfuck). Nessa trama, para muito além de uma ameaça alienígena, temos os perigos mortais que o fanatismo religioso e o egoísmo do ser humano podem representar quando um grupo de pessoas se encontra preso em um supermercado, lutando pela sobrevivência em meio a um apocalipse. 

Outro grande exemplo – não tão conhecido, entretanto  – é o livro de contos Quatro Estações (Different Seasons), publicado pela primeira vez em 1982. Composto por quatro histórias, cada uma representando uma estação do ano, como o próprio nome sugere, Stephen King nos entrega personagens aparentemente convencionais, mas que protagonizam jornadas muito peculiares e extraordinárias pela vida.

No conto Rita Hayworth e a Redenção de Shawshank, que se passa na estação Primavera Eterna, testemunhamos as argruras de Andy Dufresne, um banqueiro injustamente condenado pelo assassinato de sua esposa e seu amante, durante seus intermináveis anos de provação na Penitenciária de Shawshank. Narrado pelo olhar de Red, outro detento que convive com Andy, trata-se de uma história de resiliência e, sobretudo, esperança, diante da crueldade presente no sistema carcerário. Tal conto rendeu, em 1994, a adaptação cinematográfica Um Sonho de Liberdade. Aclamado pela crítica e estrelado por Morgan Freeman e Tim Robbins (e, em certa maneira, por Rita Hayworth, cujo pôster desempenha papel fundamental na trama), o filme recebeu sete indicações ao Oscar, figurando em primeiro lugar, há anos, como o filme mais bem avaliado na história da plataforma IMDb. A título de curiosidade, a obra foi roteirizada e dirigida por Frank Darabont (o mesmo criador da série The Walking Dead), o qual também capitaneou as citadas adaptações de À Espera de um Milagre e O Nevoeiro, sendo um grande fã e consequente colaborador das obras de King. 

“Lembre-se de que a esperança é uma coisa boa, Red, talvez a melhor coisa, e as coisas boas nunca morrem.”

Em Aluno Inteligente, que se passa no âmbito da estação Verão da Corrupção, acompanhamos a saga de Todd Bowden, um garoto de 13 anos que descobre que seu vizinho idoso é um criminoso de guerra nazista que vive escondido sob uma identidade falsa. Dá-se início, então, a uma dinâmica inimaginável entre ambos, cuja tensão psicológica é explorada de forma magistral, culminando em uma história angustiante sobre o lado sombrio de pessoas aparentemente comuns e inofensivas. Tal enredo originou o pouco conhecido, porém muito consistente, filme O Aprendiz (Apt Pupil, 1998), protagonizado por ninguém menos do que Sir Ian McKellen

Dentro da estação Outono da Inocência, temos o conto O Corpo, aquele mesmo que inspirou o memorável filme da Sessão da Tarde, Conta Comigo (Stand by Me, 1986), narrando a história de um grupo de amigos pré-adolescentes que saem em uma aventura em busca do corpo de um menino morto, o que acaba por se tornar uma tocante e profunda jornada de autoconhecimento e descoberta. Com sua inesquecível trilha sonora que lhe deu nome (Stand By Me, de Ben E. King) e estrelado pelo saudoso River Phoenix, recebeu indicação ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado. 

Por fim, na estação Inverno no Clube, temos o surpreendente conto O Método Respiratório. Ambientado na Nova York de 1970, esse conto introduz um clube cujos membros se reúnem para beber, conversar e contar histórias sinistras por eles testemunhadas; dentre elas, a história de uma jovem mulher solteira que, na década de 1930, decide dar à luz um bebê considerado ilegítimo, contrariando todas as conservadoras convenções sociais da época. Embora seus direitos de adaptação tenham sido adquiridos em 2012, o projeto não vingou, sendo, assim, o único conto da coletânea que não foi adaptado para o meio cinematográfico. Trata-se de uma história aparentemente banal, mas que aborda elementos aterrorizantes presentes em acontecimentos a princípio triviais, por meio da narrativa da história de uma jovem mãe decidida a ter seu bebê a qualquer custo, em uma sociedade totalmente adversa, o que culmina em um desfecho sinistro e muito impactante  – difícil de esquecer por algum tempo após finalizada a leitura.

“Vocês se lembram de quando a situação era bem diferente  – no tempo em que a honradez e a hipocrisia eram associadas para criar uma situação extremamente difícil para uma mulher (...). Naquela época, uma gestante casada era uma mulher radiante, convicta de sua postura e orgulhosa de estar cumprindo a finalidade que considerava ser a vontade de Deus. Uma gestante solteira era uma prostituta aos olhos do mundo e suscetível a considerar-se como tal.”

Quatro Estações nos concede, portanto, narrativas sensíveis e dramáticas, permeadas por problematizações importantes, e esse é um lado que muitos leitores de Stephen King podem ainda não ter tido a oportunidade de conhecer. Como relatado pelo próprio autor, seu então editor na década de 1980, Bill Thompson, havia antecipado que ele acabaria sendo rotulado por escrever apenas histórias de terror:

“ – É que se você publica um livro sobre vampiros depois de um livro sobre uma menina que faz os objetos se mexerem com a força da mente, você vai ficar rotulado  – disse ele.

 – Rotulado?  – perguntei, francamente perplexo. Não conseguia ver qualquer semelhança entre vampiros e telecinesia.  – Rotulado de quê?

 – De escritor de terror  – disse ele, ainda mais relutante.

 – Ora  – respondi, bastante aliviado. – Que bobagem!

 – Quero ver se daqui a alguns anos  – disse ele  – ainda vai achar que é bobagem.”

Como sabemos hoje, de fato, Bill Thompson foi preciso em sua previsão, pois foi exatamente isso o que aconteceu. Entretanto, dentre a extensa e profícua obra de Stephen King, a coletânea Quatro Estações pode ser apontada justamente como um dos melhores exemplos de que ele não escreve tão somente meras histórias de terror. E até mesmo as tramas que acabam por deixar transparecer sua “marca registrada” estão sutilmente repletas de temas que vão muito além de simples histórias de terror e podem nos conduzir a reflexões muito pertinentes. Afinal, o verdadeiro horror está presente na vida real, na natureza humana e nos acontecimentos mais mundanos e banais possíveis, muito mais do que em criaturas monstruosas e sobrenaturais ou em tramas sanguinolentas. 

O próprio escritor destaca: "Monstros são reais, e fantasmas também. Eles vivem dentro de nós e, às vezes, eles vencem". Assim, diante de sua inegável capacidade de construir tramas também sensíveis e reflexivas, com personagens e diálogos memoráveis, é possível concluir que a verdadeira essência da obra de Stephen King vai muito além de qualquer rótulo. 


Arte em destaque: Caroline Cecin 

Vanessa Vieira
Brasiliense, encantada por histórias – reais e inventadas – desde criancinha, sempre encontrou nos livros e nos filmes seus melhores companheiros. Formada em Letras e apaixonada por Literatura e Cinema, tornou-se servidora pública na área da Cultura, sempre acreditando no potencial que esta tem de transformar e salvar vidas.

Comentários

  1. Que texto incrível! Eu espero que um dia o King seja ainda mais valorizado que já é, não só como um autor de terror mas como um escritor brilhante em todos os gêneros.

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    1. Obrigada!!! Feliz que tenha gostado do texto! :) O King merece mesmo esse reconhecimento, é um baita escritor com histórias e personagens muito marcantes que vão além do terror.

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