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As intersecções da ficção científica em Além do Planeta Silencioso


C.S. Lewis
é amplamente conhecido por seu universo de Nárnia e por suas mensagens de caráter bastante cristão. Com uma extensa obra ficcional que versa sobre esse tema, ele fez a partir de 1938 sua Trilogia Cósmica, composta por Além do Planeta Silencioso, Perelandra e Aquela Força Medonha. Essa trilogia é bastante cultuada entre fãs de sua obra por apresentar temas de viagem ao espaço, cristianismo e filosofia. 

Em um contexto em que o mundo passava por grandes crises mundiais como os ecos do fim da Primeira Guerra Mundial, a Grande Depressão, tensões políticas e a ascensão de regimes totalitários, além do esgotamento mental e físico das pessoas diante do caos interno em que o mundo se encontrava, Lewis decide escrever Além do Planeta Silencioso, em 1938. Lewis, além de perceber o contexto ao seu redor, também fez o serviço obrigatório militar por quatro anos, período onde pôde vivenciar de perto a guerra.

Além do Planeta Silencioso conta a história do filólogo Elwin Ranson (estudiosos de Lewis citam a formação acadêmica do protagonista como uma homenagem a seu grande amigo, J.R.R. Tolkien), que é sequestrado por dois cientistas, Weston e Devine, que o levam para o planeta de Malacandra (ou Marte, na linguagem falada pelos humanos). Nesse planeta ele descobre uma variedade de seres fantásticos, como se organizam as sociedades, sua linguagem e os seus preceitos.

O primeiro tema que se sobressai, além das descrições do planeta e a viagem espacial como um todo, é a postura com a qual os cientistas enxergam os seres que vivem ali

“Se você gostar tanto assim dos selvagens, é melhor ficar para procriar… se é que eles têm sexo, o que ainda não sabemos. Não se preocupe. Quando chegar a hora de limpar o lugar, reservamos um ou dois para você ter como animais de estimação, para vivissecação ou para dormir com eles, ou as três opções [...] É, eu sei. Perfeitamente odioso.”

Ao longo do livro essa ciência dos dois captores é constantemente questionada por seu caráter colonialista, puramente evolucionista e exploratório. Como aponta Carlos Ribeiro Caldas Filho, doutor em Ciências da Religião:

“Lewis critica o mito do progresso, o evolucionismo puramente material, imanente, desprovido de qualquer perspectiva transcendente, a técnica e a ciência como fins em si, a ciência sem “alma”, por assim dizer, que só se preocupa com a matéria, crendo que os fins justificam os meios, dominada que está por uma perspectiva puramente desenvolvimentista e evolucionista.”

Essa perspectiva se mostra completamente cega e irreal quando Ransom, ao conseguir escapar de seus captores, conhece os hrossa, com uma aparência diferente de tudo o que já havia visto e uma surpresa: a linguagem, algo que nos une e o que nos separa quando não há entendimento de uma das partes. Para quem já teve a oportunidade de ver A Chegada (Denis Villeneuve, 2016), por essa parte há bastante semelhança, pois Ransom, assim como a personagem da Amy Adams no filme, começa a entender mais aqueles seres ao se atentar para sua linguagem e sua mensagem. E é nesse diálogo que um universo se expande.

“Ranson esstava se saindo bem. Handra era o elemento terra. Malacandra, a 'terra', ou o planeta como um todo. Em breve descobria o que Malac significava. Enquanto isso, observou que o 'H desaparece depois do C', e deu seu primeiro passo na fonética malacandriana. [...] e Ranson continuou com a mímica, tentou explicar que seu interesse era prático quanto filológico.”

Pelas porta do estudo de línguas, Ransom vai conhecendo aqueles habitantes, percebendo sua mudança de perspectiva para aqueles hrossa que, a princípio o assustaram por terem aparência animalesca. Além disso, Ransom passa a frequentar os lugares de convivência dos hrossa e se afeiçoar por aquelas criaturas bípedes de dois metros, com pelos pretos e focinho. Após meses de convivência, Ransom se depara com essa sociedade agrícola, muito apegada à poesia e música como tradição oral, da qual Oyarsa era o governante universal.

C.S. Lewis

Ele também descobre que em Malacandra havia uma quantidade bastante significativa de ouro e que muito provavelmente era esse o grande interesse dos cientistas que o sequestraram. Uma reflexão que faz muito sentido nesse universo é o quanto aqueles dois humanos ao verem ouro e habitantes de aparência animalesca entenderam Malacandra como esse lugar facilmente tomável e desprovido de qualquer racionalidade, onde toda a matéria-prima poderia ser retirada.

E é por conta desse mal da subjulgação de outras espécies e exploração desenfreada e imoral que é feita a descoberta de que Thulcandra, a Terra, não faz mais parte do universo do Campo de Arbol (Campo do Sol), pois os humanos foram corrompidos por um Maleldil “torto” que trouxe guerras, destruição, caos no mundo e deturpou todos as coisas boas ao seu bel-prazer, deixando a humanidade isolada de seu Oyarsa. E é também por isso que Thulcandra é o planeta silencioso mencionado no título, pois perdeu contato com todos os planetas governados pelo Oyarsa de cada planeta. Há nesses paralelos uma aproximação bastante explícita e marcadamente católica com as figuras de Deus, dos anjos e do próprio Diabo, o “torto”.

Nota-se em Ransom, durante todo o livro, uma constante frustação com a suposta ingenuidade dos hrossa, que não conhecem guerra, são monógamos por toda a vida e estabalecem suas relações de maneira pacífica, sempre em contato com um eldil (presenças que não podem ser vistas mas que são sentidas e auxiliam os caminhos tomados por cada um). Ele percebe que os humanos e o planeta onde foi criado foram tão deturpados pelos pensamentos do torto que uma existência em paz é considerada ingênua. É bem curioso o quanto Ransom passa por diversos estágios da observação participante em termos antropológicos e, chegando ao fim da jornada, ao entendimento e defesa daqueles seres, além de perceber o quão maldosos eram seus iguais.

Há uma parte especialmente interessante da conversa final entre Oyarsa e Weston:

“WESTON: Para você, posso parecer um ladrão vulgar,mas carrego nos ombros o destino da espécie humana. Sua vida tribal, com armas da idade da pedra e cabanas semelhantes a colmeias , seus barquinhos primitivos e sua estrutura social elementar, não têm nada que se compare a nossa civilização; com nossa ciência, nossa medicina, nosso Direito...
[....]
WESTON: É com base no direito dela (da vida), no direito ou, digamos, no poderio da própria vida, que estou preparado para fincar, sem titubear, a bandeira do homem em Malacandra; para seguir avançando, passo a passo, sobrepujando, onde for necessário, as formas inferiores de vida que encontrarmos.
[...]
OYARSA: Agora percebo como o senhor do mundo silencioso entortou você. Estivem leis que todos os hnau conhecem, da compaixão, da lisura, da vergonha e afins; e lei do amor ao semelhante.”

Weston, nessa conversa com Oyarsa, se mostra tão cego pela ganância e superioridade enquanto “Homem” que não entende a real dimensão das suas falas e seus atos perante o Oyarsa de Malacandra.

O mais interessante no livro é como ele se apresenta no começo como uma ficção científica de viagem ao espaço e cresce para um estudo bastante pessoal sobre linguagem, visto a própria formação do protagonista, e quase antropológico acerca das diferenças e semelhanças culturais daqueles povos com os humanos. As reflexões sobre fé são bem presentes, mostrando um protagonista que vai entendendo aos poucos as camadas de complexidade daquele espaço.

A trilogia é considerada por muitos como ficção científica “leve” por não se focar tanto em tropos de viagem espacial ou na própria cientificidade dos dados, mas trazer esses temas como “ponto zero”. E a ficção científica, além de extremamente diversa em temáticas, encontra um lugar muito feliz nessa narrativa que intersecciona o maravilhoso, críticas à ciência que foge aos limites éticos, e vai para o caminho da exploração, da viagem no espaço, da religião e da antropologia.

No geral, Além do Planeta Silencioso começa em um ritmo lento e meio arrastado, mas engata de maneira bastante fluída. As descrições de paisagens, ambientações e habitantes são um prato cheio para quem gosta/gostou de As Crônicas de Nárnia. Filosofia e cristandade juntas também formaram uma dupla bastante curiosa para falar sobre a tal Humanidade com H maiúsculo.

Referências 

  • Anjos no Espaço - Angeologia na Trilogia Cósmica de C.S. Lewis (Carlos Ribeiro Caldas Filho)
  • Ciencia y técnica en la anticiencia ficción de C. S. Lewis (Campo Ricardo Burgos López)


Arte em destaque: Caroline Cecin

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