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O terror moderno nas ruas de João do Rio

Rio de Janeiro, início do século XX. Em meio a urbe efervescente da recente e atropelada modernização, um aclamado autor e membro da Academia Brasileira de Letras publica uma coletânea de contos que se torna um marco da sua linha bibliográfica. O destaque não é por acaso, já que trata-se de um livro que ultrapassa as barreiras de seu lugar comum. 

Esse autor era João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, também conhecido pelo pseudônimo João do Rio. Jornalista, contista, dramaturgo e tradutor, sua assinatura está como aquele que sabe muito bem explorar o contexto citadino e usar seus peões, os clássicos seres arquetípicos que caminham entre vielas, becos e calçadões cariocas. 

Como Charles Baudelaire foi para a Paris e Cesário Verde foi para Lisboa, João do Rio representa a imagem icônica dos flâneur brasileiros, termo originado no século XIX para designar os andarilhos que não se cansam de buscar o que as metrópoles modernas podem lhes oferecer. E o Rio de Janeiro em meio à reforma Pereira Passos tinha muito a oferecer. 

Duas palavras podem definir o que foi esse começo da década de 1900 e, principalmente, o seu processo para se modernizar – caótica e segregadora. 

Em busca da “Paris dos Trópicos”

O Rio de Janeiro pré-século XX não chegava nem perto de ser considerado o modelo metropolitano que uma capital federativa deveria transparecer. O crescimento desregulado, o trânsito mal planejado, a vida insalubre, a cidade impregnada por doenças e sem saneamento básico adequado era o sinal escancarado dessa realidade. Nesse cenário, a população mais pobre se localizava nos cortiços que circundavam as áreas centrais. Um fato importante que acontece durante esse período é a abolição da escravatura, embora esse momento tenha sido mais “burocrático” do que qualquer outra coisa. Os negros que agora compunham a estrutura social sofriam com a mesma marginalização de sempre, a única diferença palpável estava na ilegalidade de um branco ter a posse de escravizados, mas todos perambulavam pelas ruas. A velha ordem colonial do Brasil ainda exercia sua força, estruturalmente e simbolicamente nos costumes de cada cidadão.

Virada de século, um novo presidente toma posse, Rodrigues Alves. E a urbe continuava a fomentar seus problemas. Frente a isso, o atual governante designa a saúde pública a Oswaldo Cruz, e a prefeitura ao engenheiro Pereira Passos, obtendo o papel de promover mudanças drásticas na imagem da sede federal. A reconstrução foi completamente baseada naquela que transformou visualmente a Paris no século XIX. Sim, a mesma Paris de Baudelaire, símbolo do período nomeado como Belle Époque

Paris no século XIX

Para o Rio, o embelezamento era a ordem do dia. Custe o que custar. Ruas e avenidas foram abertas, arborização, grandes projetos arquitetônicos surgiram, a iluminação pública evoluiu para a energia elétrica, além da construção de novas redes de água e esgoto. Houve alterações no modelo econômico e um amplo incentivo à cultura europeia. O ambiente citadino foi invadido por cafés parisienses, a moda dos dândis se espalhou entre as multidões e os costumes de saraus e festas elegantes dominaram a burguesia da época. 

Enquanto isso, campanhas de vacinação eram impostas aos cidadãos, principalmente aos mais pobres (vale destacar que nesse momento as camadas populacionais mais frágeis eram desprovidas de explicações e informações didáticas sobre a importância das vacinas; tudo foi feito de um maneira bruta e sem comunicação entre o governo e seu povo, por isso eles se levantaram contra o governo, fatos que originaram a Revolta da Vacina, em 1904. Nos tempos atuais, é inadmissível que pessoas rejeitem a vacinação em meio ao contexto pandêmico, já que a divulgação de pesquisas e o canal de diálogo com os profissionais da saúde é acessível a todos). Mas e os cortiços e vielas não foram incluídos nas reformas - eles foram desapropriados. E seus habitantes não foram realocados, mas sim expulsos da região central, obrigados a se alojarem nos locais mais altos da cidade. Subúrbios e favelas existem no Rio de Janeiro graças a esse acontecimento, e a camada social mais afetada foi a dos negros. 

Ou seja, a Reforma Pereira Passos nunca esteve apenas voltada para uma reformulação estética e arquitetônica, a reestruturação de ordem ideológica não foi deixada de lado. E, claro, quem ela beneficiava era a elite branca carioca. A famosa Operação Bota Abaixo se configurou no ato mais cruel de expurgar aqueles que não se adequavam à revolução cosmopolita formulada pela Belle Époque, e o que seria isso além da velha segregação? 

Uma prova disso é a proibição de manifestações populares tradicionais do Rio, como as serenatas ao som do violão, trabalhos artesanais expostos em feirinhas ou vendedores ambulantes. Hábitos coloquiais eram crucificados, andar sem camisa e descalço no calçadão poderia lhe causar problemas. Tudo aquilo que está fora da norma era alarmante. É aqui que se localiza a obra de João do Rio, em meio ao conflito entre modernização e precarização está o Rio de Janeiro heterogêneo. Em uma reflexão sobre o panorama descrito, qual seria o maior horror que ele guarda? O que provoca medo? Bem, Dentro da Noite será o responsável por nos trazer essas respostas. 

O despertar da monstruosidade urbana

Dentro da noite é a maior coleção de taras e esquisitices até então publicada na literatura brasileira.” Este é um trecho do prefácio escrito por João Carlos Rodrigues

João do Rio era um entusiasta da modernidade, motivado pela locomotiva cultural que a Europa representou no século anterior. Prova disso estão nas suas inspirações, como nos movimentos gótico e decadentismo, este que carrega a imagem e o nome Oscar Wilde e seu cânone, O Retrato de Dorian Gray (1890). Porém, ele também sabia levantar seu olhar crítico e visualizar as mazelas que as mudanças evidenciaram. O escritor era conhecido por ter fortes opiniões políticas, ser apoiador fiel dos direitos das mulheres, assim como fez questão de explorar os tabus da sociedade brasileira, apesar de ser muito mais dedicado em retratar tais estereótipos que os grupos privilegiados determinavam como verdade sobre as minorias do que confrontá-los abertamente. 

João do Rio

Dentro da Noite (1910) engloba tudo o que uma cidade moderna pode apresentar de medonho, desde o ambiente que intimida às ameaças bem características do século XX, bem como afirma Luiz Morando“No palco desse drama desfilam assassinos, opiômanos, cocainômanos, morfinômanos, cleptômanos, delinquentes, deformados por feridas, variolosos, sexualidades periféricas, jogadores”. O traço jornalístico aqui se alia ao ficcional em um esforço conjunto para registrar e propor uma transfiguração do contexto citadino. 

Trata-se espiral de bizarrices, perversões e pavores ora humanos, ora nem tão reais assim. Mas é inegável como o noite-a-noite nas ruas de uma metrópole pode ser bem horripilante. 

O ambiente que apavora

Acho que qualquer pessoa já sentiu uma leve apreensão ao passar por uma calçada mal iluminada, um beco sem movimento à noite ou uma esquina que parece nunca chegar. Se você é mulher, então, as inseguranças são ainda maiores. Embarcar em um ônibus talvez possa ser a alternativa mais cautelosa. E se não for? 

No conto que intitula a coletânea, o cenário é um trem. Para quem não sabe, os trens foram incorporados à capital federativa de maneira repentina e sem boa estruturação. Resultado: viu-se o meio de transporte que revolucionou a Inglaterra e França se tornar lúgubre e com poucos usuários.

Trem de ferro no Brasil do início do século XX

João do Rio faz questão de explorar as sensações de desconforto ao narrar cada curva e parada brusca que seus vagões fazem:

“De novo os apitos trilaram. O trem teve um arranco. O rapaz apertou a cabeça com as duas mãos como se quisesse reter um irresistível impulso. Houve um silvo. A enorme massa resfolegando rangeu por sobre os trilhos.”

Aqui nos é mostrada a história de Rodolfo, um artista prestigiado e com um noivado próspero, mas que caí na tentação de uma perversão um tanto atípica: espetar alfinetes no corpo das mulheres, se deleitando com o prazer de vê-las sangrar e ter hematomas, como um bom vampiro moderno. 

“Tirei da botoeira da casaca um alfinete, e nervoso, nervoso como se fosse amar pela primeira vez, escolhi o lugar, passei a mão, senti a pele macia e enterrei-o. Foi como se fisgasse uma pétala de camélia, mas deu-me um gozo complexo de que participavam todos os meus sentidos.”

Sua primeira vítima fora Clotilde. A primeira de muitas que seriam feridas por sua ânsia bizarra. Após o desmanche do casamento, ele se joga nas ruas à caça de suas vítimas durante as noites obscuras, e ela se tornou uma grande aliada, seja em nightclubs, casas de prostituição, vielas escuras, nada o parava. Isso mudou quando ele descobre que havia um lugar perfeito para seu modus operandi: um trem suburbano. 

É assim que João do Rio instaura um clima amedrontador em cima da figura do outro, que a qualquer momento pode te atacar para saciar seus desejos. 

“O rapaz olhou para os lados, consultou a botoeira, correu para o vagão onde desaparecera a menina loura. [...] Eu estava incapaz de erguer-me, imaginando ouvir a cada instante um grito doloroso no outro vagão, em que estava a menina loura. Mas o comboio rasgara a treva com outro silvo.”

O local não precisou de ferramentas sobrenaturais ou paranormais; o temor singular derivado da situação de estar em meio a pessoas as quais você não tem ideia do que são capazes de fazer já é por si só um tormento. João do Rio consegue criar uma atmosfera angustiante com uma descrição sombria de um trem, e ainda assim é algo tão real que poderia ser um conto que se passa em um ônibus intermunicipal do século XX. A mulher é a vítima, que sofre com monstros do cotidiano e não tem sequer o direito de ir e vir sem ter seu corpo violado. 

O perfeito símbolo da insegurança. Um ambiente naturalmente aterrorizante.

Da luxúria ao medonho: a figura feminina 

É sempre interessante destacar como João do Rio também deu o espaço de protagonismo às mulheres, colocando-as como participantes ativas do contexto citadino, mesmo se forem expostas pelo seus lados mais tentadores e obscuros. 

Em O monstro, uma das várias figuras recorrentes dessa obra, Luciano de Barros confessa em um salão de festas, cercado por nomes influentes da sociedade, a sua perversão. A anfitriã da reunião é Lauriana de Araújo, bem casada com um rico banqueiro. O homem, em uma jornada de martírio a si mesmo, narra sua obsessão em manipular e se aproveitar de jovens meninas das camadas mais carentes do Rio de Janeiro. 

“Eu vou, eu passo, eu cumprimento. No dia seguinte torno a passar. Três dias depois, mando-lhe uma recordação. Tudo é tão simples com os pobres! Dentro em pouco a criaturinha sente-se envolvida numa atmosfera de cuidados e de delicadezas.”

O objeto de desejo do rapaz eram as bocas. Apreciar os lábios virgens de uma menina representam o seu mais puro êxtase.

“É a fascinação inebriante. Toda a minha tática, entretanto, se faz em torno do que a inocência mais custa a dar: a boca. Eu tenho a nevrose das bocas.”

Entretanto, Luciano não se permite ir além nas relações com as garotas. Quando começavam a se aprofundar nos sentimentos e não há mais uma boca inexperiente para usufruir, ele a abandona, levado pelo medo de tirar delas a honra. Ou talvez porque não gostaria de ser exposto ao viver com alguém de uma classe social inferior à sua, e como já conseguiu suprir sua perversão, poderia desaparecer. Eu me alinho à segunda alternativa, mas interprete como quiser. 

Após o desabafo, alguns dos visitantes proferem algumas palavras, mas a fala que mais se destaca é a de Lauriana: 

“[...] sorriu com infinita tristeza. — Mas não te julgues, com esse exagero de análise e de pretensão, o único monstro, meu caro amigo. A cidade está cheia desses defloradores do amor. A vida é uma luta de sexos. Há criaturinhas que morrem ceifadas em botão, depois de levemente aspiradas pelos intelectuais gastos como tu. Há outras, porém, que resistem e ficam como eu.”

Com isso, se revela como a bela mulher precisou ser esperta e ambiciosa para conquistar a boa vida que possuía agora, se desviando de tipos clássicos e perigosos como Luciano para chegar ao seu objetivo, sair da miséria. 

O arquétipo da mulher que vai muito além da feminilidade e subserviência perpetuada pelo machismo é aquela que domina a escrita da coletânea. Fortemente marcado pela estrutura decadentista e de  femme fatale, outros dois contos experimentam esta visão deturpada da mulher ideal, Duas criaturas e O carro da semana santa.

Mulher desconhecida, 1850

O primeiro, assim como todos os outros, apresenta um narrador homodiegético, que ouve sem se intrometer o relato do protagonista, o barão Belfort, sobre as “Chilenas”, nome dado a três belíssimas irmãs consideradas “picantes” e frequentadoras da alta sociedade. As duas irmãs mais velhas haviam se casado com pessoas ricas, com a exceção da mais nova, Maria, que estava de enlaço com um abastado homem chamado Azevedo. Nesta narrativa, é perceptível uma interessante inversão de papeis se comparado à O monstro, já que é a jovem que engana e manipula seu amante:

“Quando voltaram de Paris, ela exigiu no seu palacete toda a ala direita mobiliada à indiana, com autênticos bambus de Calcutá, potiches de cobre de Benares, deuses bramânicos de porcelana e de metal.”

Enquanto o rapaz se vê completamente apaixonado, dedicado a satisfazer todas as necessidades da dama sem questionar, a mulher maliciosa aproveita sua oportunidade como dominadora para extorquir Azevedo com grandes presentes luxuosos, roupas, joias, mobília, viagens, carruagens, tudo ao estilo extravagante da Belle Époque. Tudo para, no final do conto, a chilena mirar seu olhar no próximo alvo e arquitetar como iria ganhá-lo. A malícia foi o que a fez persistir entre a fina burguesia.

Em O carro da semana santa, vemos João do Rio reformular em sua escrita a caracterização de uma súcubo. A figura é derivada de crenças populares como um demônio feminino que atrai e provoca pesadelos aos homens. Aqui, se percebe a composição de uma desarmonia imagética - durante uma festa sacra como a Semana Santa, vista como um tempo de pureza e remissão dos pecados, um monstro incorporado na luxúria que uma mulher pode simbolizar devora homens para se satisfazer. O profano se sobressai à virtude católica. 

Nunca é descrita a face da sedutora moça, hospedada na carruagem à espera dos corajosos que se arriscam a cair na curiosa e libidinosa aventura. Qual deverá ser o preço desse convite tão carnal? Nunca saberemos. Tudo fica a cargo da imaginação perversa. 

Porém, o que se prova é que Dentro da Noite nos oferece uma visão bem surpreendente, na qual o perigo não está somente nos homens, mas também nas mulheres cariocas. A sua astúcia e vilania podem ser tão atraentes... quem há de cair nessa tentação?

A praga das doenças urbanas

O Rio de Janeiro, mesmo antes da Reforma Pereira Passos sofria com a circulação de várias enfermidades, tanto que a capital ficou conhecida no exterior como o “cemitério de turistas”. Um conto que traz para os holofotes uma doença é O bebê de tarlatana rosa, provavelmente o mais famoso da coletânea. Entretanto, devo avisar de antemão que as interpretações para este contos são variadas, estou me baseando em um nicho específico de pesquisa e em minhas próprias conclusões.

A história é formada na mais pura devassidão que os dias do carnaval são para Heitor de Alencar. 

“Não há quem não saia no Carnaval disposto ao excesso, disposto aos transportes da carne e às maiores extravagâncias [...] Tudo respira luxúria [...] e nesses quatro dias paranóicos, de pulos, de guinchos, de confianças ilimitadas, tudo é possível.”

É nesse fio de pura depravação que o protagonista conhece o “bebê” com uma fantasia de algodão. Eles se encontram três vezes nas ruas durante a narrativa: na primeira, o protagonista se assusta com o ser e seu nariz postiço, beliscando-o como se para verificar que era real. A partir deste ponto eu tomei o termo "bebê" como um sinônimo pejorativo para uma mulher com nanismo (não usem essa palavra depreciativa fora do texto, por favor). Na segunda aparição, Heitor começa a se sentir entediado, percebendo que as extravagâncias eram as mesmas, sem quaisquer surpresas lascivas. Ela se aproveita para retribuir o beliscão, e diz como estava por toda parte naquela época do ano, desfrutando do antro de promiscuidade. 

Carnaval, 1919

No terceiro e último dia de Carnaval, o protagonista se viu sedento, se movendo desesperadamente em busca de uma parceira para satisfazer sua luxuria, mas as boates e boas festas de rua haviam terminado, afinal eram três da manhã. Entretanto, ele se encontra com ela, e se deixa aproveitar da oportunidade tão simples conquistada. Nenhum dos dois tinham lugares para ir, então acabam por se enroscar em uma viela lúgubre. Não havia tempo a perder, o Carnaval estava terminando.  

Entre as carícias, o clímax se instaura: o rapaz, intrigado com o nariz postiço da garota, o retira de uma vez para revelar uma grave deformidade no rosto, que lhe causa muito nojo: 

“Presa dos meus lábios, com dois olhos que a cólera e o pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça que era alucinadamente — uma caveira com carne...”

Esse padrão de ferida é algo característico dos estágios mais graves da sífilis, uma infecção sexualmente transmissível e que já foi disseminada no Brasil. Isso se torna concreto quando, em lágrimas, a mulher confessa sua prática durante os Carnavais. 

“Perdoa! Perdoa! Não me batas. A culpa não é minha! Só no Carnaval é que eu posso gozar. Então, aproveito, ouviste? Aproveito. Foste tu que quiseste...”

Ou seja, ela possivelmente contraiu sífilis, não obteve os tratamentos adequados a tempo, e para conseguir curtir a boemia sem causar repulsa ou medo nas outras pessoas, se fantasia com um nariz postiço. 

Aqui se prova como João do Rio é um excelente escritor de personagens que se localizam na linha tortuosa entre o puro bem ou total vilania, algo bem próximo da realidade, pois ao mesmo tempo em que julgo como desprezível o ato da moça de ocultar o seu rosto e o que ele simboliza, transmitindo a IST para mais pessoas, também consigo compreender que esse é o único momento em que pode tentar se encaixar e celebrar, sem estar à margem da sociedade ou ser vista com grande aversão.

Já no conto A Peste, a varíola é o que atormentará Luciano Torres. A narrativa é rotacional em seu ciclo da negação até o mais completo pavor da doença que lotava os hospitais da época. 

“Um mês antes ria dessa epidemia. Para que pensar em males cruéis, nesses males que deformam o físico, roem para todo sempre ou afogam a vida em sangue podre? Para que pensar?”

Na primeira fase do conto, Luciano nos descreve Francisco, seu amigo extremamente preocupado com o aumento no número de casos e que ocupa a alegoria de neurótico, assombrado pelas notícias e sepultamentos que quase sempre ocorriam pelo mesmo motivo. Ao passo que observa o receio de Francisco, que não deixa de frequentar o centro urbano, o protagonista começa a se questionar não somente sobre a periculosidade da varíola, mas também sobre como deve ser a sensação corporal de se morrer para tal mal: 

“Como era? Como se morria de bexigas? As pessoas ficavam muito coradas, sentiam febre. Havia várias espécies. A pior é a que matava sem rebentar, matava dentro, dentro da gente, apodrecendo em horas!”

A exploração do recurso visual é imprescindível para este conto, a caracterização imagética das vítimas é algo que, particularmente, me deixou enjoada como se eu realmente estivesse na presença de algo tão escabroso, quase como uma curiosidade mórbida que seu cérebro insiste em recriar. 

“Só as carroças fazem barulho. E quando param — como elas param! — é o pavor de ver descer um monstro varioloso, desfeito em pus, seguindo para a cova...”

Retornando ao conto, descobrimos que Francisco estava com varíola, e isso leva Luciano a enfrentar a realidade face a face em uma visita ao centro médico. O chão e paredes brancas demais, os telefones que não param de tocar, as vozes inebriadas de tristeza dos funcionários, o desespero das famílias que imploram por qualquer resposta, tudo isso constrói a atmosfera de terror que a epidemia simbolizava. Não havia mais como ele fugir do seu medo. 

Hospital no Rio de Janeiro em 1920

Ao saber que seu amigo estava vivo, insiste em visita-lo, vê-lo. Chega, então, ao pavilhão erguido às pressas pela diretoria do hospital, encontrando o amigo. A narração fala por si só: 

“Eu tinha diante de mim um monstro. As faces inchadas, vermelhas e em pus, os lábios lívidos, como para rebentar em sânie. Os olhos desapareciam meio afundados em lama amarela, já sem pestanas e com as sobrancelhas comidas, as orelhas enormes. Era como se aquela face fosse queimada por dentro e estalasse em empolas e em apostemas a epiderme.”

Para Luciano, o seu grande parceiro agora se transformou no esboço vívido de seu maior temor. Entretanto, o seu pesadelo ainda vai piorar, já ele também incorporará a face do terror ao ser levado às pressas para o hospital, diagnosticado com varíola. Após toda a jornada, ele virá a ser o seu próprio monstro. 

Como encerramento desse portfólio tenebroso, trago aqui um conto que se destacou bastante ao decorrer da leitura e, para mim, foge bastante da linha proposta ao explorar um monstro bem mais difícil de ser revelar. A explicação disso? Decerto deva ser pelo fato dele estar assustadoramente relacionado com o que foram os primeiros anos de Rio de Janeiro no século XX.

A ameaçadora sombra do antiquado: o que se esconde na escuridão?

Em A Sensação do Passado, o enredo nos coloca primeiramente em uma sala, onde senhores discutiam sobre a sensação do passado que os rodeia, que poderia ser um paradoxo ou uma mera nostalgia de tempos que pareciam ser bons. O narrador homodiegético se faz presente. O Barão Belfort, membro recorrente nas histórias de João do Rio, toma a palavra, respeitado ao ponto de fazer com que todos se calem para escutar sua história, na única vez que sentiu-se na presença do passado. 

É nesse plano que a narrativa se desenvolve, em um salão de festas menos requintado, mas que carrega o forte desejo de ser animado pelas notas de uma valsa e pares que se encontravam na pista de dança. Quem conduzia o piano era Firmino, famoso e que compunha em uma velocidade assombrosa, tão logo isso se comprova quando uma das damas lhe pede uma certa música, mas desaprova a escolha por se tratar de um som “Um poucochinho velha, tem seis meses”. O quanto isso pode ser associado à rapidez insana com a qual o Rio transformou-se em uma Paris artificial? 

“Eu, francamente, sentia-me moço [...] Aqueles sons eram do meu tempo.” 

Após uma hora, Firmino sente que não poderá continuar tocando; sofria pela nevralgia. O anfitrião, então, resolve buscar um antigo pianista, Prates, que obteve a mesma fama do garoto no passado e que, ao se afastar do círculo social por um tempo, perde sua notoriedade. Agora estava mais velho, com um cavanhaque branco. Ao começar a tocar o instrumento, um choque abala todos os presentes; aquelas melodias não combinavam com as festas modernas: 

“Que coisas cômicas, que coisas grotescas, que coisas estúpidas, essas notas de piano sugestionavam à gente! ... A sensação do passado enraivece sempre. [...] Eu tinha vontade de rir e ao mesmo tempo de destruir, de quebrar o piano.” 

Nada poderia aterrorizar mais um deslumbrado com o futuro do que leve ameaça sufocante do passado. Por aqui, é nojento pensar no ultrapassado. 

“Eu nunca vira coisa tão assustadoramente horrenda. Era como se, de súbito, saltasse ao salão uma velha horrível, remexendo molemente as pernas bambas.”

Durante todo o desenrolar do conto é notável um culto que surge à atualidade, a vivacidade do novo mundo que se proporciona àquelas figuras frívolas da burguesia carioca. São esses membros que abrem seus braços para as renovações, desviando os olhares para o que, ou quem, será sacrificado em troca. Mas quem se importa com isso, não é mesmo? A cidade está tão linda!

No fim, o pianista que esperava o louvor da plateia agora saía desencantado ao ver o vazio do salão e o olhar de incredulidade dos convidados. Caminha para a porta e tenta ao máximo esconder as lágrimas. Retrato da desilusão de quem sabe que perdeu o seu momento, que se esvaiu pelo seus dedos. Esse é o monstro da narrativa de A Sensação do Passado. E é bem curioso refletir sobre a trama que foi escrita em meio ao período de urbanização da capital. O que João do Rio quis dizer com isso? 

Rio de Janeiro, 1906

Como dito anteriormente, o contista era favorável às mudanças que seriam feitas no visual do Rio de Janeiro, mas até que ponto?  Lendo pela primeira vez, superficialmente, cheguei à interpretação de que a moral da história é: se você não se adapta, perde a vez, se torna obsoleto. Entretanto, com um abarco teórico melhor fundamentado, a releitura me forneceu um outro paralelo mais atrativo: a crítica talvez não esteja no velho, e sim no novo que se esquiva a qualquer sinal de lembrança. 

Se formos ponderar, seria algo relativamente bom, já que esqueceria os anos em que o Brasil foi sinônimo de exploração indígena e africana, a escravidão poderia não afetar o futuro na busca pela equidade e reparação aos crimes cometidos contra a população. Mas convenhamos, esse não era o foco da rejeição. Se recordam de quando falei que a Reforma Pereira Passos foi também fortemente ideológica? Então, a queda da régua cultural exportada da França era o que assustava as elites. O medo estava no teor brasileiro que poderia se sobrepor frente à uma invenção de país, uma peça de teatro na qual se interpretava ser uma sociedade que nunca foi. 

Eles podem ter alterado as ruas, os estabelecimentos, os costumes, até incentivado a imigração para tentar mudar a cor de sua gente, todavia aquela farsa era passível de ser derrubada. O Rio de Janeiro era uma casca vazia que renegava qualquer sopro de naturalidade, principalmente aquela que era majoritariamente simbolizada pela população mais carente e marginalizada do Brasil. 

Quando os visitantes do baile param de dançar sob as canções antigas, eles estavam se recusando a bailar ao som de sua própria cultura. Aliás, vocês sabiam que foi nessa época que o samba e a boemia se tornaram sinônimos de vadiagem, sendo mal vistos pelos governantes e pela população? Entretanto, como foi discutido acima, para os burgueses brancos a situação era completamente diferente. Que contraposição intrigante, não é mesmo? Ao olharmos para a história do Carnaval, isso também é perceptível. Uma festa tão peculiar do nosso país foi reinaugurada no século XX, com a restrição de certas fantasias e adicionando personagens europeus, tal qual o arlequim. 

O Rio de Janeiro brincou de ser a França, brincou de ser Europa. E nesse jogo, quem seria o vilão? Acho que já dá para responder a essa pergunta. 

O Rio mostrou diversos problemas, gerou múltiplas inseguranças e perpetuou variados tabus, porém seu grande terror era ser desmascarado, ser revelado todo um construto social manipulado, que embebeu seu povo na não-identidade e não-cultura. Desconectados da realidade, fascinados com o brilho frívolo de uma inverdade enquanto se enganam, em suas supérfluas existências. 

E assim lhes apresento, caros leitores: a Paris dos Trópicos. 

Referências

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