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Os limites da loucura: entre O Alienista e Salem

“Com a definição atual, que é a de todos os tempos – acrescentou -, a loucura e a razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor? Sobre o lábio fino e discreto do alienista roçou a vaga sombra de uma intenção de riso.”

É assim que Machado de Assis sintetiza uma das principais ideias da novela O alienista: a loucura e seus supostos limites.

É nítido que as pessoas sentem medo do desconhecido, e é mais evidente ainda que é possível manipulá-las por meio de suas aflições. Esse é o caso retratado em O alienista do escritor supracitado. Mas, para além da ficção, durante o século XVII, entre os anos de 1692 e 1693, no período da América Colonial dos Estados Unidos, na pequena cidade de Salem, localizada no estado de Massachussetts, 25 pessoas e dois cachorros foram assassinados cruelmente devido a uma histeria iniciada pelo fanatismo religioso da maioria da população.

Antes de iniciarmos a famosa história das bruxas de Salem, é imprescindível destacar a insanidade da personagem Simão Bacamarte, presente na história do escritor brasileiro, fator esse também presente na tragédia da cidade das bruxas.

Em Itaguaí, o conceituadíssimo médico, S. Bacamarte (o nosso querido alienista), iniciante no panorama dos estudos sobre a mente humana, acabara de abrir a Casa Verde, uma espécie de hospital psiquiátrico para as pessoas da cidade. O profissional, por sua vez, com o apoio dos políticos municipais, colocou na Casa todos os cidadãos que não possuíam o total equilíbrio das faculdades mentais – isso na teoria, pois, com devida análise, é possível notar que seus preceitos se baseavam em pseudociências. É importante ressaltar que os estudos da psiquiatria, além de estarem acompanhados de diversos tabus, são também uma área de pesquisa muito recente. Logo, na época em que Machado escreveu a ficção, não existiam muitas descobertas acerca desse campo, situação essa marcada pela ironia da história e por seu próprio título. 

De modo análogo a O alienista, os religiosos da cidadezinha de Salem – em suma, todos católicos – costumavam condenar pessoas, principalmente mulheres que não se comportavam de acordo com o padrão imposto pela religião. A histeria vivida pelos moradores de Salem se deve, segundo historiadores, ao pouco estudo das ciências, visto que o primeiro caso de bruxaria na vila – de Betty Parris, uma garota de nove anos –, sob as análises da ciência moderna, foi considerado sintoma de doenças sofridas pela criança, como epilepsia e asma, além de outras hipóteses. Ainda durante o período, pairava na região uma certa tensão estabelecida pelo livro Memoráveis providências, que narrava um caso de feitiçaria nos EUA. Essa obra foi o estopim para semear nos puritanos o senso de justiça de combater o sobrenatural. 

No que tange a influência exercida na sociedade, bastava apenas Bacamarte para alienar o povo sobre suas teorias mirabolantes, pois era rico, vinha de família importante e possuía altíssima formação, mesmo que, posteriormente, os cidadãos se revoltassem contra ele. Já em Salem a situação era pior, visto que os puritanos eram a maioria da população e oprimiam a minoria social e quantitativa. Assim, o povo não conseguia reunir forças para combater a alienação a que estavam sendo expostos. A loucura dos opressores havia chegado longe demais. Ademais, era um vilarejo totalmente isolado das grandes cidades, em virtude da localização litorânea, e, por isso, a ajuda veio tarde, quando o presidente da Universidade de Harvard denunciou o uso do sobrenatural em testemunhos.

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Desse modo, somos levados a um outro exemplo de poder dos religiosos: a criação do Tribunal de Julgamento de Bruxaria (que existe até hoje, e é considerado um monumento histórico de Salem), responsável pela institucionalização e pelo fortalecimento da problemática, porque bastavam achismos de testemunhas para a condenação dos réus. Além disso, outra prova foi o modo de reconhecimento de bruxas. Essa investigação consistia em olhar as genitálias das mulheres em busca de supostas marcas de bruxaria. Apenas uma desculpa para o abuso sexual. 

Toda essa paranoia, da ficção e não ficção, portanto, pode ser esclarecida na seguinte passagem de Machado de Assis: 

“(...) se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?”


Referências


Arte em destaque: Mia Sodré  

Laura Ferracini
Futura professora de línguas e apaixonada por Virginia Woolf, mas lê tudo o que lhe prende. Espalhando leituras no interior do interior de São Paulo, ou para os íntimos, Dolcinópolis.

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