Em A hora da estrela, livro publicado pela primeira vez em 1977, Clarice Lispector escreve a história “verdadeira embora inventada” de Macabéa, jovem nordestina que migrou para o Rio de Janeiro, “cidade toda feita contra ela” – realidade de milhares de migrantes e imigrantes até os dias de hoje, diante de tantas adversidades em busca de uma vida mais digna.
Para tal, Clarice cria o narrador-personagem Rodrigo S. M., pois uma mulher, com sua demasiada sensibilidade, não seria capaz de narrar a triste história de Macabéa e empregaria “termos suculentos”, “adjetivos esplendorosos” e “carnudos substantivos”, o que não seria apropriado para captar aquela simples, “delicada e vaga existência”.
Como defende Regina Dalcastagnè, ao dizer que uma mulher não poderia contar essa história, Clarice expõe os preconceitos contra a escrita desenvolvida por mulheres:
"Ao reproduzir, ironicamente, o discurso de que mulher escreve piegas, que não se deve enfeitar o texto e que é preciso se reduzir aos fatos, a escritora de A paixão segundo G. H. e de Perto do coração selvagem está respondendo àqueles que apontavam sua obra como alienada ou excessivamente hermética e subjetiva."
Considerando que as obras de Clarice tinham um caráter mais existencial e intimista, cujas protagonistas eram, em geral, mulheres da burguesia e da classe média com seus conflitos internos, alguns críticos costumavam tachar a escritora de alienada e narcisista. Pode-se dizer, assim, que A hora da estrela funcionou também como uma clara resposta da autora àqueles que desdenhavam de suas obras, rotulando-a, de forma simplista e misógina, como uma escritora de literatura feminina, que fazia uso de linguagem hermética e desenvolvia tramas superficiais e subjetivas – comentários reveladores sobre o preconceito existente contra escritoras.
É fato que a obra A hora da estrela é mais conhecida e lembrada por contar as desventuras de Macábea, essa personagem tão marcante, na cidade grande. Retratar apenas a sua saga, inclusive, é a escolha narrativa feita na única adaptação cinematográfica da obra, que exclui completamente a figura do narrador-personagem Rodrigo S. M. da trama. Levando o mesmo nome que a obra literária, o filme foi dirigido pela cineasta Suzana Amaral e lançado em 1985, ganhando o Urso de Prata no Festival de Berlim no ano seguinte pela brilhante atuação de Marcélia Cartaxo no papel de Macabéa, incluindo ainda a renomada atriz Fernanda Montenegro no elenco. Além disso, Suzana Amaral foi indicada ao Urso de Ouro e venceu o prêmio de Melhor Direção no Festival de Havana, além de ter levado outros prêmios no consagrado Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Atualmente, o filme figura na lista da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) em que constam os 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos, na 42ª posição.
| Marcélia Cataxo como Macabéa |
Contudo, é possível afirmar que tal livro constitui, para além da história de Macabéa, sobretudo uma crítica à posição dos intelectuais da elite diante da classe mais baixa. Tais intelectuais são representados por Rodrigo S. M., criador e narrador de Macabéa, a qual seria, nesse romance, uma síntese de certa parcela do povo, pertencente à classe baixa.
Ao longo da narrativa, Rodrigo demonstra diversos sentimentos em relação à nordestina: impaciência, raiva, medo, inquietação, angústia e, em alguns momentos, culpa. O medo e a inquietação dominam Rodrigo porque Macabéa não é uma nordestina analfabeta e ignorante. Ela sabe ler, tem um emprego, se interessa pelos “curtos ensinamentos” transmitidos pela Rádio Relógio, que costuma ouvir diariamente, faz recortes de revista e é consumidora: vai ao cinema, toma coca-cola, come cachorro-quente, se emociona ao ouvir a peça de ópera Una furtiva lagrima a tocar na Rádio Relógio. Ela é parte do “zé povinho” – como o próprio Rodrigo designa –, que “sonha com fome de tudo”.
Logo, Macabéa é o tipo de pessoa da classe baixa que incomodaria e assustaria a elite pelo risco de ver seus espaços e privilégios eventualmente compartilhados. Em uma referência mais atual, seria o povo que hoje pode frequentar aeroportos, viajar de avião e deseja ir à Disney. Sendo assim, ela representa a massa, que nas palavras de Regina Delcastagnè:
"Não remete à simples ideia de trabalhadores ou de multidão, mas de um público específico, resultado das reformas educacionais do final do século XIX. Um público alfabetizado, consumidor, ávido de bens culturais. É então que surge a necessidade de distinção do intelectual."
Dessa forma, Rodrigo S. M. ao mesmo tempo em que narra Macabéa narra a si próprio com o objetivo de se distinguir dela: “Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus”. Ele é um escritor refinado, culto, que toma vinho branco, fala outras línguas e aprecia a boa arte. Já ela é uma pobre datilógrafa, “incompetente para a vida”, mora em um cortiço, sequer sabe que existem outras línguas e só come cachorro-quente.
Já a impaciência e a raiva de Rodrigo vêm do fato de que Macabéa, apesar de ter uma vida simples, considerada por ele medíocre, não reclama de sua condição e nada faz para mudá-la, pois mal tem consciência de sua existência, apenas faz o necessário para sobreviver. Não sendo analfabeta, dispondo de um razoável emprego e tendo possibilidades de acesso à informação e à interação social, Macabéa poderia “lutar” por uma vida mais feliz e digna, mas não o faz, pois “não sabia que era infeliz”. E haveria milhares de pessoas como ela, que seriam apenas um “parafuso dispensável” em uma sociedade capitalista. Ter essa consciência inquieta e amedronta Rodrigo, que, em alguns momentos, deixa transparecer certa culpa: “Sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo desonesto”.
A origem dessa culpa Rodrigo não sabe e, possivelmente, sente-se assim por pertencer a uma classe “superior” e, teoricamente, nada poderia fazer pela moça: “Mas por que estou me sentindo culpado? E procurando aliviar-me do peso de nada ter feito de concreto em benefício da moça?”. Ele acredita que expor a vida da nordestina é um dever e um meio de, talvez, aliviar, de alguma forma, essa culpa que sente.
Alguns sentimentos de Rodrigo contradizem-se ao longo do romance. Em grande parte, recusa-se a ter piedade, como ele próprio afirma, desdenha a pobreza, que, segundo ele, “é feia e promíscua”, e diz, ainda, “ter terror sem nenhuma vergonha do pardo pedaço de vida imunda” onde Macabéa vive.
Contudo, outras vezes, o narrador demonstra preocupação diante das humilhações pelas quais passa Macabéa, mostra contentamento com a possibilidade de que ela tenha um final feliz, diz que a ama e a vê de forma encantadora. Mas, seu dever, como ele afirma, é apenas contar a história da moça; caberá a outros fazer algo para ajudá-la – se quiserem. Narrar já seria suficiente, ele não deve fazer nada além disso, pois, segundo ele, “quando se dá a mão, essa gentinha quer todo o resto”.
Com tais posicionamentos, Rodrigo mostra-se extremamente hipócrita. Ele afirma que para contar a história de Macabéa, para “captar sua alma”, deve se “alimentar frugalmente de frutas e beber vinho branco gelado”, bem como deixar de fazer a barba, vestir roupas velhas e rasgadas e dormir pouco, como se isso realmente fosse fazê-lo viver a pobreza de Macabéa para que pudesse contar sua história com a credibilidade de alguém que vive a situação que retrata. Nesse ponto, é possível supor que também há uma crítica de Clarice Lispector àqueles escritores que buscavam representar a realidade social em suas obras e, de certa forma, recriminavam-na por ela não seguir o mesmo caminho. Assim como Rodrigo S. M., aqueles escritores — intelectuais de classe média alta em geral — retratavam a pobreza em suas produções literárias, mas o que faziam de concreto para mudar a realidade social em que estavam inseridos e da qual, de certa forma, se beneficiavam?
| Fernanda Montenegro como Madame Carlota |
Em algumas partes do romance, nos deparamos com possibilidades de que Macabéa acabe feliz: o início do namoro com Olímpico, a amizade com Glória, a segunda chance no emprego, as promissoras previsões da cartomante que ela decide consultar. Contudo, os acontecimentos sempre tomam rumos negativos e a história nada tem de feliz. Olímpico a humilha e a despreza a todo o momento; Glória não a leva a sério e rouba seu namorado sem nenhum remorso; ela não obtém sucesso no emprego. Além de tudo, as previsões da cartomante de um futuro melhor não se concretizam e o triste fim da vida de Macabéa se estabelece: ela morre sozinha e desamparada, da mesma forma como passou toda a sua vida. E sua morte acaba sendo o único fato de grande proporção em sua existência, a sua “hora da estrela”, o único momento em que pararam para olhá-la, “pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um”.
Pode-se dizer, assim, que a cartomante não estava totalmente errada em suas previsões. De certa forma, a morte foi um êxito para Macabéa, que “estava enfim livre de si e de nós”. E representou uma saída, também, para Rodrigo S. M. Por isso, a morte torna-se a personagem preferida do narrador, pois põe fim à Macabéa, cuja existência não mais o atormentaria.
Assim, infere-se que Rodrigo S. M. acaba sendo o protagonista de A hora da estrela, pois o romance gira em torno de seus conflitos internos e dramas durante o processo de narração da vida de Macabéa, de sua posição como representante do intelectual de classe média alta frente àquela representada pela nordestina — o povo, a massa.
Diferentemente da obra Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus – por muito tempo desprezada e não considerada literatura pela mesma elite intelectual, a propósito –, a história de Macabéa pode ser interpretada não exatamente como um meio de conferir voz a uma representante do povo que sofria com as mazelas sociais, como muitos podem acreditar, mas sim uma crítica justamente à forma hipócrita com a qual, muitas vezes, a elite intelectual enxergava e buscava retratar o povo.
Como a própria Clarice Lispector, muito consciente, disse ao ser apresentada pessoalmente à Carolina Maria de Jesus, conforme a filha desta revelou em entrevista: “Posso ser uma grande escritora, mas você é a única que conta a realidade”.
Ambas as escritoras, cada uma a seu modo, contribuíram para subverter tanto o preconceito contra a escrita desenvolvida por mulheres quanto contra a literatura de testemunho, obra de uma mulher negra e favelada, no caso da autora Carolina Maria de Jesus que, imbuída de suas vivências, deu voz e representatividade à sua realidade melhor do que um homem pertencente à elite intelectual como Rodrigo S. M. poderia fazer.
Referências
- Pelas margens: representação na narrativa brasileira contemporânea (Regina Dalcastagnè)
- Filha de Carolina de Jesus lembra elogio de Clarice Lispector à sua mãe: 'Só ela conta a realidade' (GShow)
Se interessou pelo livro? Você pode comprá-lo clicando aqui!
(Participamos do Programa de Associados da Amazon, um serviço de intermediação entre a Amazon e os clientes que remunera a inclusão de links para o site da Amazon e os sites afiliados. Ao comprar pelo nosso link, você não paga nada a mais por isso, mas nós recebemos uma pequena porcentagem que nos ajuda a manter o site.)
Arte em destaque: Mia Sodré
Comentários
Postar um comentário