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A Herdeira de Washington Square: quem é Catherine Sloper?

Nova York, final do século XIX. Uma moça de boa família e um rapaz se conhecem num baile de um desses casarões da alta sociedade nova-iorquina que, um dia, existiram e embelezaram a famosa Quinta Avenida. Surge deste encontro entre Catherine e Morris um noivado. Mas o que é para ser um conto de fadas torna-se um pesadelo. O pai de Catherine, Dr. Sloper, acusa o noivo de ser um “caçador de fortuna” e sua filha de ser “sem sal”, ingênua e manipulável. Dr. Sloper teme o destino de sua fortuna após sua morte e Catherine fica dividida entre seu par romântico e a opressão da figura paterna. 

Washington Square foi escrito por Henry James (1843-1916) e publicado como um romance seriado em 1880. O nome do livro refere-se à importante praça situada em uma região nobre da cidade de Nova York onde, em 1835, o pai da protagonista teria construído o palco da nossa história: a casa da família Sloper. Não se trata de uma peça teatral, mas se este fosse o caso, a casa Sloper seria o cenário principal:  o espaço doméstico, onde é construída a relação entre Catherine e sua família ao longo de sua vida, que é abalado pelas influências públicas no momento de sua introdução à sociedade pela possibilidade de casamento. Quando aparece alguém “de fora”, o rapaz Morris, para tomar seu espaço e ameaçar a ordem daquele espaço íntimo tão bem dominado pelo patriarca da família é que nossa história começa. 

“O seu ideal para um retiro calmo e elegante encontrou-o ele em Washington Square em 1835, e lá o doutor mandou construir uma casa bonita, moderna, com uma grande fachada e uma enorme varanda em frente das janelas de sala de estar, e um lance de escadas em mármore branco que subiam até um pórtico também revestido de mármore branco. [...] Em frente estava a Praça que continha uma grande quantidade de vegetação barata rodeada por uma cerca de madeira, o que aumentava a sua aparência rural e acessível; para lá da esquina situava-se a parte mais majestosa da Quinta Avenida [...] Foi aqui que a minha heroína passou muitos anos da sua vida; o que constitui a justificação para este parêntesis topográfico.”

O Doutor Austin Sloper, nos conta o narrador, teria se casado por amor e, apesar de ser médico e ter uma situação confortável de dinheiro, tornou-se bastante rico através do casamento. Viveu cinco anos muito felizes ao lado do amor de sua vida até que a primeira tragédia caiu sobre seus ombros. Aos dois anos de idade, seu primogênito morre e, um tempo depois, sua amada esposa falece durante o parto de sua filha, Catherine Sloper. O Dr. Sloper nunca mais se casou e dedicou toda sua vida aos seus pacientes e ao consultório. O narrador nos conta que Catherine foi uma criança muito saudável e que se tornou uma mulher sem muitas graças. Ela não era bonita nem feia. Não era agradável, tampouco desagradável. Não era inteligente, mas também não era atrasada. Ela era, em resumo, uma dama “sem sal” cujo único atrativo era sua herança. 

“Era uma criança saudável e bem constituída, sem um único traço de beleza da mãe. Não era feia: apenas possuía um semblante comum, triste e gentil. O máximo que já se opinara acerca dela era que tinha um rosto 'simpático': e, embora fosse uma herdeira, nunca ninguém se lembrara de a considerar uma beldade. [...] Catherine não era inteligente: não era de raciocínio rápido. Não era anormalmente destituída, e obrigou-se a aprender o suficiente para dar boa conta de si nas conversas com os seus contemporâneos, [...] era extremamente modesta, não desejava brilhar e, na maioria das reuniões mundanas, como são chamadas, era vê-la escondida em segundo plano. [...] O Dr. Sloper bem teria gostado de ter orgulho da filha: mas nada havia na pobrezinha da Catherine que motivasse qualquer orgulho. Também nada havia, evidentemente, que motivasse vergonha.”

Para ajudar na criação da menina, Dr. Sloper convida sua irmã, a tia Lavinia, a morar com eles na sua casa em Washington Square. Viúva e sem filhos, tia Lavinia é romântica e, ao contrário do irmão rígido, frio e cínico, é sonhadora. Dr. Sloper tem ainda outra irmã que vez ou outra aparece nos diálogos com o irmão como uma figura de contraponto e razão, a tia Almond, que mora mais ao norte da cidade e tem nove filhos. 

A jovem Catherine Sloper, de dezoito anos, e Morris Townsend se conhecem justamente na festa de noivado de uma das filhas da tia Almond. Morris é um primo distante, “de um tronco menos afortunado” da família do noivo.  Depois da festa, Morris e Catherine continuam se encontrando e, aos poucos, vão criando uma intimidade que culmina num pedido de casamento. Desde o começo, no entanto, Dr. Sloper desaprova esse relacionamento, pois acusa Morris de estar interessado somente na herança de Catherine, afinal, segundo o próprio Doutor, sua filha era desprovida de qualquer particularidade que chamasse atenção e a fizesse ser amada. Pelo contrário, pela sua inocência e falta de inteligência, ela seria um alvo facilmente manipulável por um caçador de fortunas. Por curiosidade, no entanto, ele não intervém no início desse relacionamento, pois quer saber “até onde isso vai dar” e quais são os limites de sua filha. 

Porém, o narrador de Henry James merece desconfiança. A descrição de Catherine é quase sempre pelo ponto de vista de seu pai. Ele se diz decepcionado porque sua filha é “incapaz de surpreender” e, apesar de reconhecer o amor, carinho e admiração de Catherine por sua figura paterna, ainda assim ele a acusa de ser passiva e apática. A verdadeira Catherine, para além do que seu pai vê, aparece aos poucos ao longo da história e o narrador apenas dá dicas que essa irresponsividade poderia ser, apenas, timidez.

“[…] receando ser injusto para com ela, [Dr. Sloper] cumpria o seu dever com um zelo exemplar e reconhecia que ela era uma criança leal e afetiva. E, depois, ele era um filósofo: fumou muitos charutos sobre o seu desapontamento e com o correr do tempo habituou-se a ele. Contentava-se com nada esperar embora, na verdade, com uma argumentação um tanto excêntrica: 'Não espero nada' – dizia consigo – 'de maneira que, se ela me dizer uma surpresa, será lucro: se não, não haverá prejuízo.' Isto na altura em que Catherine chegara aos dezoito anos: e assim se verá que o pai não fora precipitado no seu juízo: nessa época ela não parecia somente incapaz de fazer surpresas: quase era de perguntar se alguma vez teria recebido uma – de tão calma e impassível que se mostrava. As pessoas se falavam na generalidade diziam-na fleumática. Mas ela era impassível porque era tímida, incomodamente, dolorosamente tímida. Nem sempre isto era compreendido, e por vezes ela dava uma impressão de insensibilidade. Na realidade era a criatura mais compassiva do mundo.”

Essas características negativas tornam Catherine uma mulher fraca e manipulável aos olhos de seu pai e Morris. Ela deixa de ser Catherine para ser “A Herdeira”, nome que intitula o livro na tradução brasileira. Suas tias jogam do outro lado. Tia Lavinia, romântica e idealista, sonha com o amor do casal e suas ações são todas voltadas para a união dos pombinhos mesmo que isso envolva táticas um tanto quanto questionáveis. Tia Almond, nos diálogos com seu irmão, joga a favor de Catherine, mas é mais uma ouvinte do que agente. 

Resta nessa história a própria Catherine, que fica entre a cruz e a espada: ela ama Morris, quer se casar com ele, mas também ama e admira seu pai, a quem não quer decepcionar e faz de tudo para agradar. Conforme as situações vão se desenrolando, nós vamos conhecendo aos poucos uma Catherine que vai além daquela que seu pai conhece. Henry James desenvolve a consciência da personagem conforme o desenrolar da narrativa. Diante de uma situação ou circunstância, Catherine vai se revelando ao mesmo tempo que ela mesma desenvolve uma consciência sobre as coisas e a situação que está vivendo. 

É como se a personagem de Catherine ainda não estivesse pronta quando Henry James começa a escrever o livro. No início da obra, o autor nos apresenta a representação social de Catherine e deixa a individualização da personagem e suas características morais para serem reveladas ao longo da narrativa. 

Quando publicada, essa não foi uma obra aclamada pela crítica. Em vida, Henry James ficou mais famoso por outros livros, como Retrato de uma Senhora, Daisy Miller, Pelos Olhos de Maisie e A Outra Volta do Parafuso, este último inclusive inspirou a série da Netflix  A Maldição da Mansão Bly. Mesmo para o autor, Washington Square não foi uma obra muito querida. No entanto, mais de um século depois, ela continua sendo um clássico várias vezes revisitado e que tem inspirado numerosas adaptações de balé, ópera, teatro e cinema. Entre eles, Washington Square, de 1997, dirigido por Agnieszka Holland, e A Herdeira, primeiramente performada na Broadway em 1947 e depois adaptada para o cinema em 1949 e dirigida por Willliam Wyler

A Herdeira (1997)

Um dos motivos pelos quais não foi uma das obras favoritas pelo próprio autor seja talvez o fato de que Washington Square foi um experimento de estilo e narrativa para outros romances mais longos. São nos romances posteriores que aparece essa revelação da consciência e individualização progressiva do protagonista como recurso narrativo.

Apesar dos 140 anos que separam a publicação da obra de nós, leitores, a questão central continua muito atual. Existe um abismo que separa quem Catherine é para a sociedade e quem ela é de fato. As pessoas de sua vida a veem como vazia, manipulável, inocente, cujo grande único mérito é ser herdeira. Mas ela revela ser mais do que isso. Como Catherine, nossa identidade está sempre dividida pela tensão dúbia entre quem somos e como nos vemos na intimidade versus como somos vistos pelo círculo social no qual convivemos. Também deve-se mencionar o papel de Catherine como mulher, sendo pressionada pelo ambiente e poder patriarcal de um lado e, por outro, pelo casamento e ideal de amor. 

Finalmente, resta um único ponto que eu gostaria de frisar: é um romance leve, fácil e divertido. Algumas cenas e diálogos têm um jeito teatral e por vezes nos remetem a um filme de sessão da tarde. Não é a toa, portanto, tantas adaptações que foram sendo criadas ao longo desse mais de um século de livro. 

No Brasil, a obra ganhou uma edição pela 7 Letras intitulada A Herdeira, com tradução de Margarida Patriota, e outra pela editora Lafonte, de mesmo título


Arte em destaque: Mia Sodré (baseada na pintura Portrait of Mary Matthews (1823-1890), Mrs Julien-Francois-Bertrand de La Chère, de Marcel Verdier, 1843) 

Giovana Faviano
Historiadora de formação. Interessada em tudo que envolve subjetividade e criatividade humana. Ama ler, escrever e cozinhar. Se não está fazendo uma destas três coisas, então está tomando um cafézinho.

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