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O velho e o mar: a solidão como característica da velhice

A velhice é um tema que me chama atenção tanto na ficção, assim como na vida real, por se tratar muitas vezes de um período difícil, triste e solitário, principalmente quando não vem acompanhado de saúde. Personagens idosos são de uma riqueza indescritível, e é por isso que penso em Santiago, o velho pescador do livro O velho e o mar (The old man and the sea), de Ernest Hemingway (1899 – 1961).

Já o tinha lido há muitos anos e por não recordar exatamente, resolvi relê-lo, e claramente com um olhar diferente. A obra foi escrita em Cuba em 1951 e publicada pela primeira vez em 1952. Em minha recente leitura, numa edição de 1956, o título foi traduzido por Jorge de Sena, e já no prefácio o tradutor cita a solidão como um dos temas centrais: 

“Simbólica é igualmente a total solidão do velho entregue a si próprio e à sua experiência de pescador, a contas com seu poderoso peixe e com os tubarões de que, depois de morto o peixe, ele o defende.”

O velho e o mar é uma obra no estilo literário de novela (com poucas personagens e um tema específico). A leitura curta traz a história de Santiago, experiente pescador da costa de Cuba que está há 84 dias sem pescar um único peixe. Algumas vezes é motivo de riso para os outros pescadores da vila, e os mais velhos o veem com tristeza, talvez pela sorte que já não o acompanha tanto quanto em outras épocas. Não é citada a idade do homem, mas sabe-se que é um velho, assim ele mesmo se vê, quando fala ao rapaz e amigo Manolin ao dizer que a idade é o seu despertador. “Por que acordam tão cedo os velhos? É para terem mais comprido o dia?”, diz.

Mesmo diante das tentativas frustradas, Santiago ainda acredita e deseja que poderá pescar de novo. É setembro, época dos grandes peixes, segundo o próprio velho, e assim decide mais uma vez ir para o mar no 85º dia, com promessa feita para a Virgem de Cobre. Vai sozinho, agora que Manolin foi obrigado pelos pais a parar de pescar com o velho, e sim fazê-lo com sua família. Ao longe, deixa para trás o amanhecer no porto de Havana. 

Ele enfrenta o sol, as dores, a sede, até que finalmente algo fisga o anzol. Passa o dia, passa a noite, de volta passa mais um dia e uma noite, e Santiago ainda na luta com seu peixe, que oferece extrema resistência. “Quem me dera vê-lo, ao menos uma vez, para saber com quem tenho de me haver”, pensa o velho em certo momento.

A todo instante Santiago lembra de Manolin e de como gostaria que o amigo estivesse presente para lhe ajudar com o forte peixe. Ao mesmo tempo que torce e reza para que consiga matar o peixe, Santiago também sente pena e profundo respeito pelo animal. Já havia pescado dois peixes com mais de quinhentos quilos cada, mas sempre estava acompanhado. Esse, ele previa que era maior.

Santiago ressente-se de vivenciar sozinho a pesca do maior peixe de sua trajetória de pescador, perder a luta contra os tubarões, e não poder desfrutar da certeza de que os mais de seis metros do peixe poderiam lhe render em comida e dinheiro. 

A imagem retratada

Ainda que tenham vividos atos heroicos ou uma vida marcante, personagens velhas quase sempre são retratadas por uma camada de fragilidade e solidão na velhice, mas também muitas vezes com invisibilidade perante a sociedade.

Em O velho e o mar, o autor fez de Santiago um velho viúvo, aparentemente sem filhos, sem ninguém mais, a não ser Manolin, sua função de pescador e o interesse pelo beisebol. Não é possível ter a certeza de quão velho é Santiago, se realmente era uma pessoa de idade, até porque na época em que foi escrito, o conceito de velhice era bem diferente do que é atualmente. 

A descrição dos velhos é uma das coisas mais bonitas da literatura, é algo que me emociona, fala de suas características, suas cicatrizes, e aqui o autor consegue criar uma imagem muito concreta no imaginário do leitor.

“O velho era magro e seco, com profundas rugas na parte de trás do pescoço. As manchas castanhas do benigno cancro da pele que o sol provoca ao refletir-se no mar dos trópicos viam-se-lhe no rosto. As manchas iam pelos lados da cara abaixo, e as mãos dele tinham as cicatrizes profundamente sulcadas, que o manejo das linhas com peixe graúdo dá. Mas nenhuma destas cicatrizes era recente. Eram antigas como erosões num deserto sem peixes. Tudo nele e dele era velho, menos os olhos, que eram da cor do mar e alegres e não vencidos.”

Na narrativa é frequente a relação de Santiago com sua solidão, pelo modo como vive, de forma simples a que não parece se importar. Sua choupana, como diz no livro, tem apenas “uma cama, uma mesa, uma cadeira, e um lugar no chão para cozinhar o carvão de chaça”

O velho parece já ter se acostumado a viver sozinho, mas em alguns momentos fica evidente como é sentida a dor da ausência da esposa falecida. Ele tem na parede gravuras do Sagrado Coração de Jesus e da Virgem de Cobre porque eram relíquias da esposa. “Noutro tempo houvera ainda uma fotografia dela na parede, mas ele tirara-a por se sentir muito só ao vê-la, e estava agora na prateleira do canto, por baixo da camisa lavada.”

Apesar da diferença de idade, é retratada de forma muito bonita a amizade de Santiago e Manolin. O jovem tem profundo respeito pelo amigo, pois foi ele quem o ensinou a pescar quando ainda era criança, não cansa de ouvir suas histórias e debate com prazer sobre o beisebol e os melhores jogadores. Manolin busca acolher o velho sempre que possível, e tem grande preocupação com sua forma de viver, pensando no seu bem-estar, em arranjar camisa, casaco e sapatos para o inverno, e se comeu devidamente. É quase uma obrigação de cuidá-lo bem. A relação de ambos faz do velho menos solitário.

Hemingway pescando, em 1935

Outros momentos que mostram a solidão de Santiago é quando, em pleno mar, ele fala com as estrelas, com os peixes e até mesmo sozinho. É aceitável pelo estresse da situação, mas é triste. Ele mesmo não lembra quando começou a conversar consigo.

“Não se recordava já de quando começara a falar em voz alta, se andava só. Nos bons tempos, andando sozinho, cantava, e cantara às vezes de noite, quando ficava só, de quarto ao leme, nos veleiros ou na pesca da tartaruga. Provavelmente, principiara a falar sozinho em voz alta, quando o rapaz deixara de o acompanhar. Mas não se lembrava. Quando ele e o rapaz pescavam juntos, em geral falavam só quando era necessário.”

Outro trecho diz: “Ninguém devia estar só na velhice, pensou. Mas é inevitável”. Assim como outras personagens velhas da literatura que não esperam mais nada da vida (como Rosa de A vida pela frente, de Émile Ajar), em O velho e o mar, o velho pescador não parece mais ter ambições, nem desejos, nem sonhos. Parece estar contente com seus dias de poucos atrativos. 

“Já não sonhava com tempestades, nem com mulheres, nem com grandes peixes, nem com lutas, nem com provas de força, nem com sua mulher. Sonhava apenas com lugares e os leões na praia.” 

Aqui a narrativa fala literalmente de seus sonhos, mas, como dizem que sonhos são manifestações de nosso inconsciente, então Santiago já não busca por novidades.

A leitura de O velho e o mar permite a reflexão da importância da persistência, da própria solidão vista por Santiago, da velhice e tudo o que vem com ela, da impotência diante do infinito do mar, do saber-se que não há mais o que fazer e aceitar, e da luta pela sobrevivência. Mesmo com toda a determinação e garra, ao final o que fica é pena do pobre Santiago. Para quem tem a figura de um idoso na família, acho difícil não se identificar em algum momento, não se sentir solidarizado em relação a Santiago, como a um avô que conta suas histórias.

Repercussão da obra

O velho e o mar é reconhecido como uma das maiores obras de Ernest Hemingway, lhe conferindo o Prêmio Pulitzer em 1953 e o Prêmio Nobel de Literatura em 1954. Foi escrito no momento em que o autor estava considerado acabado para a literatura. Já fazia mais de uma década do lançamento do aclamado Por quem os sinos dobram (1940), e seu mais recente romance, Do outro lado do rio e entre as árvores (1950), não tinha recebido boas críticas. 

Mesmo com toda a aclamação de O velho e o mar, Hemingway negava os simbolismos da obra, dizia que era apenas uma história sobre um velho e o mar. Traduzido e reeditado em centenas de países, ainda hoje é visto como um dos maiores títulos do século XX. 

A obra serviu de inspiração para adaptações cinematográficas. A primeira é de 1958, com direção de John Sturges e roteiro do próprio Hemingway. O filme recebeu três indicações ao Oscar de 1959: Melhor Ator para Spencer Tracy no papel do velho Santiago, Melhor Fotografia e Melhor Trilha Sonora. Por essa terceira categoria, recebeu a estatueta naquele ano. Também foi indicado ao Globo de Ouro de 1959 na categoria Melhor Drama.  

Outra adaptação é de 1990, com direção de Jud Taylor e Anthony Quinn como o protagonista Santiago. Em 1999, O velho e o mar ganhou mais uma vez as telas, dessa vez por obra do russo Aleksandr Petrov. O curta, com duração de 20 minutos, é uma animação que mistura técnicas de pintura a dedo, tinta a óleo em chapas de vidro e fotografia, e ganhou o Oscar de Melhor Animação em 2000.

O velho e o mar ainda é referência para muitas outras obras. Recentemente, a última temporada da série O Método Kominsky (produzida pela Netflix) trouxe uma cena em que a personagem Sandy Kominsky (Michael Douglas) realiza o sonho de atuar, e o faz na pele de Santiago.

Vida, obra e polêmica

Ernest Hemingway acompanhou de perto várias guerras como correspondente e voluntário. No ano de 1942, teve o aval do governo estadunidense para equipar seu próprio barco de pesca e sair à caça de embarcações alemãs na costa de Cuba. Assim como o Santiago de seu livro, queria ele também encontrar algo significativo e marcante. 

No período da Segunda Guerra Mundial o autor já estava em seu terceiro casamento, dessa vez com a escritora, jornalista e também correspondente de guerra Martha Gellhorn. Com inteligência e astúcia, ela foi a única mulher a desembarcar no Dia D na Normandia (em 6 de junho de 1944), em Omaha Beach, evidenciando ainda mais sua carreira como jornalista. Afirmações dizem que o fato frustrou o então marido e romancista já renomado por não ter conseguido a mesma façanha. Ele chegou depois, e insistiu para que somente o nome dele estivesse na capa da revista Collier’s. Como o casamento já não ia bem, chegou ao fim junto com o término da Segunda Guerra Mundial.

Marta Gellhorn, escritora

“Os críticos tendem a discordar sobre O velho e o mar, que se distancia do estilo tradicional de Ernest Hemingway. Todavia, as páginas exemplares desse romance-miniatura encerram muitos dos temas que preocupavam Hemingway como escritor e como homem”, diz a análise da obra no livro 1001 livros para ler antes de morrer.

Com a narrativa um pouco diferente da já habitual e o desgosto evidente no episódio do Dia D na Normandia protagonizado por Gellhorn, esses são alguns dos motivos para estudiosos e público suspeitarem da verdadeira autoria de suas obras. Não se sabe ao certo quanto de sua obra é realmente dele, pois há indícios de plágio de materiais de Martha Gellhorn. 

Referências

  • 1001 livros para ler antes de morrer (Peter Boxall)
  • 501 grandes escritores: um guia abrangente sobre os gigantes da literatura (Julian Patrick)


Arte em destaque: Sofia Lungui

Ana Paula Figueiredo
Jornalista, gaúcha, capricorniana, perfeccionista, às vezes ansiosa. Apaixonada por histórias de verdade e de mentira. Fascinada por literatura, filmes, séries, gatos e café. Vê na escrita e leitura formas de terapia, e de vez em quando pratica a produção literária com contos.

Comentários

  1. Eu Tb gosto muito desse tema da velhice. O. Gigante enterrado, do Kazuo Ishiguro, tem esse tema, misturado com um estilo de novela de cavalaria. É a coisa mais linda e sensível do mundo. O homem comum, Philip Roth, também.. Sobre morte, solidão, velhice, mas de um ponto de visto mais ácido. Este só Hemingway eu não conhecia. Eu não curto muito o estilo dele. Mas quem sabe vou tentar um dia esta obra.

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  2. Maravilhoso texto! Amo este livro

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  3. Acabei de ler o livro...amei...eu converso comigo mesma quando estou só...

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