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Christine: quando Stephen King criou um carro assassino

Em abril de 1983, o autor estadunidense Stephen King publicava seu décimo-terceiro livro, ele que já tinha se consolidado com um grande nome no gênero do terror e cujas obras já haviam recebido adaptações para o cinema. O livro da vez era Christine, que ganhou um filme naquele mesmo ano dirigido por John Carpenter

O livro é possivelmente uma das obras mais peculiares do autor. Foi escrito em um período muito difícil de sua carreira - King passou grande parte da década de 1980 sob o uso de drogas e álcool, e chegou a adimitir que não se recorda de ter escrito alguns de seus livros, sendo um deles Cujo, publicado em 1981. Apesar do momento em que Christine foi escrito, sua história é de uma criatividade imensa. 

O enredo de Christine

Primeiro precisamos conhecer Christine, que não, não é uma pessoa, e sim um carro. Um automóvel dos anos 1950, especificamente um Plymouth Fury 1958. Esse foi um modelo de automóvel produzido pela marca Plymouth, da atual automobilística Chrysler. Esse modelos tinham o custo mais baixo e eram mais acessíveis. O Fury que inspirou King faz parte da produção de 1957/58, sendo um automóvel longo e que concentrava uma espécie de barbatana na parte traseira. O modelo citado no livro tem quatro portas, porém, o carro real tem apenas duas, como de fato é mostrado no filme. 

A história do livro se passa na tranquila cidade de Libertyville, na Pensilvânia, onde conhecemos Arnie Cunnigham e Dennis Guilder, dois adolescentes que são melhores amigos desde a infância. No inicio da trama, ambos estavam voltando para casa de carro e dão o maldito azar de encontrar ela, Christine, o Plymouth Fury 58 que hipnotiza Arnie no instante em que seus olhos pairam no automóvel. O carro caindo aos pedaços tinha como casa o quintal de Roland D. LeBay, um velho ex-membro do exército. O carro vermelho e branco cativou tanto ao amigo de Dennis que ele não cogitou duas vezes antes de comprá-lo, um absurdo devido ao estado em que o veículo se encontrava, um ferro-velho caindo ao pedaços. Mesmo com os protestos do amigo, Arnie fecha negócio com LeBay para adquirir o carro; o que o garoto não esperava era que a fúria dos seus pais também seria um obstáculo; sua mãe, à beira de um ataque, não consegue aceitar que seu filho se interessou por uma sucata de 20 anos. E a partir dessa primeira discussão percebemos que garoto não é mais o mesmo desde que tocou em Christine.

Filho único de um casal de professores universitários, Arnie é o típico "nerd perdedor" que sofre bullying (tema que King costuma trazer em seus livros) na escola. Ele não tem nenhum amigo além de Dennis - ambos são quase irmãos. Totalmente inseguro e frágil, é salvo pelo melhor amigo das agressões. Dennis, que é seu total oposto, além de ser o famoso estereótipo de "jogador popular do time de futebol", é também uma pessoa sociável e segura de si. A diferença entre os dois também é visível em seus pais. Os Cunnigham são mais conservadores e rígidos, especialmente Regina, mãe de Arnie, uma mulher narcisista que não mede esforços para controlar o filho e marido. Já a família de Dennis é super amorosa, percebe-se o quanto existe um diálogo fácil entre eles e a confiança dos pais no filho. Isso influência muito a personalidade dos dois durante a vida, pois pais controladores que não permitem a seus filhos tomar suas próprias decisões podem gerar consequências posteriormente, como ansiedade e depressão, o que não parece muito distante de Arnie. 

As mudanças que o jovem sofre após obter o carro são graduais. O garoto doce e com medo até da própria sombra se torna alguém agressivo e confiante. Sua pele, que antes era cheia de espinhas e marcas, muda, torna-se mais limpa, e isso chama a atenção de Dennis, que nem  acredita, mas percebe que essas mudanças aconteceram quando Arnie adquiriu o carro. Após a morte de LeBay, o antigo dono do Plymouth, Dennis começa a suspeitar que existe algo de errado com aquele carro; ele não gosta de estar dentro dele e muito menos do poder que tem sobre o amigo. E assim ele conhece George LeBay, o irmão do falecido, na conversa que os dois têm, é revelada uma tragédia familiar na qual Christine esteve envolvida, o que apavora ainda mais Dennis. 

A obsessão do rapaz pelo automóvel o está afastando de todos. O carro, que desde a compra está em uma garagem de aluguel, se torna outra casa para Arnie. Surpreendendo a todos carro que antes parecia um lixo ambulante aparece novinho em folha, fazendo todos se perguntarem como o garoto conseguiu consertar aquilo tão rápido. É preciso dizer que o jovem tem muito conhecimento sobre mecânica, faz inclusive uma matéria que envolve essa área. É de se esperar que ele conheça muito sobre carros, mas mesmo assim é como mágica a forma que ele consertou Christine.  Durante uma dessas aulas Arnie briga com Buddy Repperton, o típico babaca que gosta de atazanar qualquer pessoa indefesa, nessa briga, Buddy e sua turma agridem Arnie e Dennis (que mais uma vez tenta defende-lo), o que no fim resultam na expulsão de Repperton que promete uma vingança. 

"Os poetas se enganam com o amor de  maneira contínua e às vezes deliberante. O amor é o velho carniceiro. O amor não é cego. O amor é um canibal com visão extremamente apurada. O amor é como os insetos: sempre faminto."

Um acidente num jogo de futebol deixa Dennis hospitalizado e impossibilitado de jogar para sempre. É nesse período em que está internado que a situação fica feia. Christine é destruída por Buddy e seus amigos, deixando Arnie transtornado e ainda mais agressivo, mas o mais estranho de tudo é que o carro, antes impossível de ser restaurado, está lá semanas depois novinho, como se tivesse saído da fábrica. E aqueles que agrediram Christine são assassinados misteriosamente. Mesmo Arnie sendo um suspeito, é impossível que tenha sido ele o autor dos crimes, pois nos dias de todas as mortes ele estava em outros lugares, mas seu carro não, e começa a assustadora possibilidade de Christine estar viva e ter matado todas aquelas pessoas. 

Um livro sobre uma assombração 

Toda a trama acima é só o básico que se precisa saber antes de se entrar realmente na história. Stephen King conseguiu imortalizar um carro antes não muito popular num dos automóveis mais famosos e emblemáticos do cinema. Por mais absurdo que possa parecer, ainda assim é fácil de comprar a ideia de que estamos lendo sobre um carro assassino, e isso só é possível graças à genialidade do escritor em construir a história e suas personagens. A escrita é bem simples e agradável de ler, a história é contada em três partes, sendo duas delas pelo ponto de vista de Dennis, que relembra de tudo quatro anos depois. Por isso, existe uma fácil identificação com a personagem; vemos seu ponto de vista, suas opiniões como espectador e narrador. Podemos considerá-lo uma personagem carismática, um narrador fiel, mas não marcante. Ainda assim, gosto de como King o usou, não poderia ter personagem melhor para isso, para contar a história de "amor" entre Arnie e Christine, mas existem muitas coisas que poderiam ser encurtadas, e isso é uma característica já bastante conhecida do próprio autor, que é descritivo na ambientação dos livros. Das pouco mais de 600 páginas da obra, talvez apenas 400 fossem necessárias. Apesar disso, a história continua sendo interessante e empolgante de ler. 

A construção das personagens é interessante, todas têm um bom desenvolvimento, não são rasas ou tediosas. Arnie é facilmente digno de pena, influenciável e frágil, o que o torna um alvo fácil. Leigh tem um desenvolvimento muito bom, não fica só no estereotipo da garota bonita que é repetido inúmeras vezes só para reforçar a beleza da personagem, ela é sagaz e consegue, junto de Dennis, fazer um trabalho de detetive para descobrir a verdade por trás do carro. E temos Christine que acaba fazendo parte do "triângulo amoroso" entre Arnie, Leigh e Dennis. Durante a leitura descobrimos que não se trata apenas de uma  história sobre um carro assassino, mas sobre possessão.  Arnie é obviamente a maior vítima disso, de Christine e desse espirito maligno que o persegue. 

"Não consigo me lembrar de tudo o que aconteceu, mas, ainda assim, me lembro de mais do que gostaria. Saímos da estrada da garagem em marcha-a-ré e penetramos um trem fantasma insano, onde todos os sustos eram reais."

Os momentos de terror em certas características aterrorizantes do carro, como ele se consertar sozinho, a música sintonizar apenas em uma rádio que toca rock n' roll antigo, seu odômetro que sempre roda ao contrário e o cheiro podre que de vem em quando tem dentro do carro. Tudo isso dá indícios de que existe algo de errado, e esse clima de mistério consegue segurar o leitor por algumas paginas. 

Um fato curioso é que King coloca um trecho de algum rock clássico a cada capítulo, construindo uma playlist que relaciona cada trecho ao tema do capítulo. A primeira parte, por exemplo, é nomeada como "Canções sobre carros para adolescentes", e seu primeiro capítulo tem versos de  "Somethin' else", de Eddie Cochran, cuja letra diz "há um carro feito apenas para mim", o que poderia representar aquilo que Arnie sentiu por Christine quando a viu, esse amor que parece feito sob medida. Stephen King possui o hábito de usar referências musicais em seus livros, e curiosamente um deles já virou até inspiração para uma música. 

Chrstine é uma ótima leitura, embora demore um pouco para a história se tornar interessante. Quando isso acontece o ritmo flui de verdade, o terror claustrofóbico de estar dentro do carro é tão perturbador quanto o perigo que ele proporciona, um ser praticamente invencível que pode matar qualquer um que o desafie. Com boas personagens e um enredo convincente, a história assusta nos momentos certos e entrega o que promete. O final é o que mais dá créditos ao livro, as últimas páginas são um misto de terror, medo e esperança, mesmo que no fundo a tragédia fosse clara. 

Adaptação para o cinema

Talvez o que tenha imortalizado mais ainda o Plymouth Fury foi o filme dirigido por Carpenter e lançado em dezembro de 1983. Teve custos altos de produção devido ao uso de muitos carros para as cenas, foram necessários mais de vinte Plymouth para produzir o filme, sendo que restaram apenas três deles - um deles encontra-se no Museu Nacional do Automóvel, nos Estados Unidos. O longa é protagonizado por Keith Gordon (Arnie), John Stockwell (Dennis) e Alexandra Paul (Leigh). Os três possuem similaridades com as personagens do livro, mas o mais próximo desse feito foi Gordon, seu Arnie é ingênuo e medroso e até mais carismático que Dennis. 

O filme não é uma adaptação totalmente fiel ao livro, a explicação que dão a Chistine é bem diferente daquela escolhida por Stephen King na obra literária. Além disso, história se passa na cidade de Rockbridge, na Califórnia, e não em Libertyville, mas o ano continua sendo 1978. 

Existem outras mudanças, como os pais de Arnie, cuja participação é menor do que no livro. Ainda assim, a adaptação consegue ser uma obra semelhante ao seu original, dentro das óbvias limitações de um filme. Acredito que para adaptar fielmente o livro seria necessária uma minissérie. 

E um remake está em desenvolvimento - segundo o Deadline, Bryan Fuller, roteirista e produtor responsável pela serie Hannibal, irá dirigir e roteirizar a nova versão de Christine. Sem data de lançamento ou elenco escolhido, o longa será produzido pela Sony Pictures e segundo Fuller deve ser mais fiel à obra original escrita por King. Vamos torcer essa nova versão seja tão boa quanto a de Carpenter! 



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Arte em destaque: Sofia Lungui

Maria Fontenele
Piauiense, nascida em 2000, se arrisca a escrever desde pequena. Apaixonada por reprises de filmes antigos, sonha em viver num musical dos anos 60, mesmo sem saber cantar. Chora ouvindo Scorpions, e tem uma lista tão grande de livros que jura que vai ler tudo antes de morrer.

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