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A dança de antíteses em Dancin' Days


É possível um autor prever que um folhetim vai se tornar um fenômeno cultural? Gilberto Braga, então um jovem autor, mas que àquela altura contava com Escrava Isaura no currículo, queria sempre o sucesso. Talentoso, com um repertório literário farto para a pouca idade, ele tinha em mãos, naquele 1978, um bom folhetim; correto, com potencial, mas não exatamente inovador: Dancin’ Days, o arrasa-quarteirão que todos conhecemos hoje.

Inicialmente, a novela iria chamar-se A Prisioneira, em alusão à protagonista Júlia Matos (Sônia Braga), que comete um crime na juventude e fica onze anos encarcerada, deixando a filha pequena para ser criada por sua irmã. Neste caso, um toque de mestre de um produtor de visão como Daniel Filho fez toda a diferença não só para a trama das oito horas, além de também deixar um forte impacto cultural no Brasil na teledramaturgia e na sociedade, no final dos anos 1970. A indefectível meia de lurex, que se tornou símbolo da novela, que o diga.

Naquele período, o fenômeno da discoteca já estava estabelecido nos EUA, e a própria música disco já havia se disseminado pelo mundo inteiro, com expoentes como Donna Summer, Earth, Wind and Fire, Bee Gees, entre outros. Porém a cultura disco ainda não havia encontrado no Brasil um representante local que o propulsionaria a ser um movimento cultural consolidado. 


A ideia de Daniel Filho de inserir o universo da discoteca na trama de Dancin’ Days, aproveitando o sucesso do filme Os embalos de sábado à noite, que fora lançado nos EUA em 1977, mas só estreou no Brasil poucos dias antes da novela, serviria também para contrastar com o melodrama de costumes representado na novela. Ele comenta sobre isso em seu livro O circo eletrônico:

“Em Dancin’ Days, tínhamos uma boa novela, o script era bom. Mas faltava a novidade. O personagem de José Lewgoy teria um restaurante, que depois se tornaria um restaurante de granfino. A discoteca já existia em Nova York, mas não existia popularmente no Brasil, ainda era coisa exclusiva das classes altas. Só Nelson Motta já tinha feito aquela discoteca no Shopping da Gávea, Dancin’ Days. A partir da discoteca, introduzi todo o universo das pessoas que a frequentavam. Havia um quê de droga e de excitação nas pessoas. A discoteca não tinha nada a ver com a história original, mas modificou o comportamento de todos os personagens, mexeu estruturalmente com a história.”

A influência do melodrama de Douglas Sirk e Fassbinder e o naturalismo dramatúrgico de Daniel Filho

A marca estética de Dancin’ Days é indelével; mesmo quem não viveu o período e não assistiu à obra sabe do que se trata e conhece, pelo menos, o icônico tema de abertura, cantado pela girlband As Frenéticas, composta pelo produtor Nelson Motta especialmente para a novela. Quem não se lembra da antológica cena, repercutida até hoje à exaustão, na qual Júlia Matos faz a sua volta triunfal para a trama dançando freneticamente na pista de dança? Ali, a atriz Sonia Braga cravou suas garras no inconsciente coletivo, uma verdadeira força da natureza.

Dancin' Days é, provavelmente, um dos maiores expoentes da cultura pop brasileira, justamente por ter cristalizado um período de efervescência cultural e de costumes. Mas, para além do visual inconfundível e do icônico figurino, supervisionado por Marília Carneiro, o que mais a trama oferece que a mantém digna de ser revisitada?

Artur da Távola, crítico do jornal O Globo, comentou em 1979, já como balanço final da trama que "Dancin’ Days’ foi basicamente um ensaio romantizado sobre o comportamento, a ideologia, a psicologia e os valores da classe média urbana carioca". Gilberto Braga, um admirador de Honoré de Balzac, usou a linguagem teledramatúrgica para, à sua maneira, retratar os dramas da realidade burguesa e toda a sua carga psicológica. 

Além de Balzac, outra grande referência para o autor da novela é o melodrama dos anos 1940 e 1950, em especial os filmes do cineasta alemão Douglas Sirk, autor de obras como Tudo o que o céu permite e Imitação da vida. Assim como Braga, Sirk combinava o artifício da emoção na dramaticidade das cenas, utilizando marcadas deixas musicais, com ferinos comentários sociais, como o preconceito de classe, o racismo, a condição da mulher na sociedade, usando de muito sarcasmo, impregnando a obra com o cinismo que permeia as relações pessoais. 

Tudo o que o céu permite, de Douglas Sirk
Um dos maiores seguidores de Douglas Sirk é o cineasta e dramaturgo alemão Rainer Werner Fassbinder, admirador confesso do mestre do melodrama, criador de As lágrimas amargas de Petra Von Kant, peça de teatro que virou filme, ambos por suas próprias mãos. Outras obras do diretor são O medo corrói a alma, um belíssimo exemplo de melodrama de influência sirkiana trazido para a realidade social da Alemanha Ocidental do início da década de 1970, e O casamento de Maria Braun, este já um drama com pano de fundo histórico (o final da Segunda Guerra Mundial), mas com uma fortíssima protagonista feminina e com uma mordaz crítica à instituição do casamento, que na trama é usado como mero artifício de ascensão social. Gilberto Braga, contemporâneo de Fassbinder e admirador de Sirk e do cinema de modo geral, reverberou muitos desses motes e temas nas suas próprias criações, como em Vale Tudo e a própria Dancin’ Days, só para citar alguns exemplos.

Apesar das referências do melodrama sirkiano (e fassbinderiano, por que não?) trazidas por Gilberto Braga no texto da novela, uma herança que Dancin Days deixou para a teledramaturgia foi o estilo de representação, tido como naturalista. Daniel Filho apostou em atuações mais próximas ao comportamento cotidiano, sem tanta impostação de voz e movimentos dramáticos. A ideia era justamente aproximar as personagens e as situações vividas na novela do telespectador, propondo uma espécie de radiografia do comportamento e costumes do Rio de Janeiro naquela era. Os jovens atores que se destacaram na trama, como Glória Pires, Lídia Brondi e Lauro Corona, foram formados a partir desse novo formato dramatúrgico, em que os closes, o minimalismo nos gestos e na fala e movimentos espontâneos acabaram por tornar-se referência no fazer televisivo, contrastando com as gerações que foram formadas pelo teatro e migraram para a televisão.

A dança de antíteses em Dancin' Days

As personagens e cenários de Dancin’ Days são retratos do cotidiano da sociedade brasileira dos anos 1970, e a história propõe uma discussão sobre as mudanças de paradigma social que estavam em andamento naquele momento histórico. Gilberto Braga a conduz através de um jogo de opostos em que o destaque se dá principalmente entre as personagens femininas, o que também inaugurou (ou ajudou a consolidar, se formos levar em conta suas obras anteriores) a sua predileção pelas personagens femininas em detrimento das masculinas.

As oposições, de maneira principal, em Dancin' Days, se dão entre as seguintes personagens: Júlia e Yolanda, irmãs com visões completamente conflitantes sobre posição social e casamento; Carminha e Celina, mulheres de posições sociais distintas que são colocadas numa posição de rivalidade romântica por conta de Franklin, marido de Celina; Vera Lúcia, uma jovem órfã que vive com a família de Carminha e trabalha na academia de Ubirajara, e Marisa, filha de Júlia e criada desde pequena por Yolanda em meio à alta sociedade, duas adolescentes com origens sociais diferentes e que em certa altura disputam o mesmo rapaz, Beto (filho de Celina e Franklin); Inês e Áurea, mãe e filha, neta e filha de Alberico, respectivamente, sempre em atrito por conta das diferenças de entendimento sobre o mundo e suas aspirações. Os embates entre Áurea e Inês deixam evidente a proposta de Gilberto Braga de contrastar uma mulher que pertence, historicamente, ao passado, a uma jovem que busca romper com os padrões tradicionalmente impostos às mulheres.

Júlia (Sônia Braga) e Marisa (Glória Pires)
Gilberto Braga deixa claro o lado que defende ao fazer as personagens “boas”, aquelas por quem torcemos, justamente as que pertencem à classe popular e que trabalham duro para ganhar a vida, mas valorizam a independência e a dignidade pessoal. As mulheres da classe média alta, como Yolanda, Marisa e Celina, são retratadas como fúteis, competitivas e desleais, em um típico esquema de personagens bem marcadas oriundo do melodrama tradicional. Já os homens de Dancin’ Days, como é comum ao universo ficcional do autor, são hesitantes, indecisos, insatisfeitos com seu papel na sociedade .

Praticamente todas as relações conjugais de Dancin’ Days reverberam a visão, ilustrada na obra de Sirk e Fassbinder, do matrimônio como uma instituição essencialmente burguesa, que serve à manutenção da ordem social, mas completamente falida no que tange à saúde e à verdade emocional das relações. Embora Júlia seja contrária à ideia de que um casamento é o que determina a vida de uma mulher e de que deva servir como o passaporte para uma vida melhor, e tente convencer a filha biológica Marisa disso (lutando contra a influência de Yolanda sobre a menina), ela se vê obrigada justamente a recorrer a este expediente para se ver livre do beco sem saída que sua vida se tornou ao ser libertada da prisão pela segunda vez. Ela decide se casar com Ubirajara, um quarentão solitário que nutre uma paixão não correspondida por ela, embora seja apaixonada por Cacá, filho de Celina e Franklin e irmão de Beto, com quem tem uma relação complicada. Yolanda e Horácio vivem um casamento infeliz e o mantêm por pura conveniência social, que obviamente favorece mais a Yolanda. Carminha e Jofre, trabalhadores da classe média baixa, ela, instrutora de ginástica; ele, vendedor ambulante e depois promovido a promoter da discoteca graças à amizade com Hélio, vivem um longo e morno noivado, embora haja carinho e respeito mútuo. Áurea e Aníbal, pais de Inês, servem à filha como exemplo de casamento infeliz e do quanto é uma instituição desigual e injusta para a mulher. A própria Inês vive uma relação na qual não se sente realizada, com Raulzinho, um jovem médico que insiste que ela deixe os estudos e se mude com ele para a Amazônia.

Hélio (Reginaldo Faria) e Yolanda (Joana Fomm)
Há outra relação antitética interessante em Dancin’ Days, que se dá no âmbito estético: se de um lado temos a efervescência das cores, da música e da dança no cenário da discoteca, o grande ponto de encontro por onde passam todas as tramas e personagens da história (uma espécie de saloon, onde as histórias todas se cruzam), mas também um espaço de escapismo da realidade, fora dela, no dia a dia, temos um certo tom intimista, onde somos convidados a penetrar a vida doméstica e íntima das personagens. Os embates entre elas que, para além dos conflitos da trama, representavam as tensões sociais e de costumes citadas anteriormente, eram travados em grandes diálogos; a voz da consciência de Gilberto Braga e sua afiada percepção da sociedade. Os conselhos de Carminha para Vera Lúcia sobre como lidar com o machismo quando a jovem começa a enfrentar situações pontuais pela primeira vez; o desabafo de Solange (Jacqueline Laurence) sobre a mulher no mercado de trabalho e a priorização do lado profissional em detrimento do casamento; as discussões entre Áurea e Inês sobre casamento e os desejos individuais da mulher; e até as (longas) sequências de Cacá em sessões de psicanálise ganharam espaço como crônica do cotidiano. 

Discussões de pautas como estas até podem parecer lugar-comum em 2021, especialmente levando-se em conta que hoje temos a grande tribuna que é a internet e as redes sociais à disposição. Porém, em 1978, em meio à ditadura militar e sob risco de censura, sem dúvida é mérito de Gilberto Braga e Daniel Filho terem promovido esses tópicos em pleno horário nobre, sem didatismo e oferecendo um texto de alta qualidade dramática. 

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