"Homens néscios que acusais / às mulheres sem razão / sem ver que sois a ocasião / do mesmo de que as culpais [...] Homens, não vos esquiveis / da culpa que carregais, / fazei-as como as buscais / ou sofrei como as fazeis "
Sim, você acabou de ler versos de um soneto. Escrito por uma mulher. Confrontando a figura do homem. Durante o século XVII.
Não há maneira de começar a falar dessa autora sem trazer para a mesa suas palavras transgressoras. Talvez você a conheça; se não, deixe-me apresenta-los: prazer, essa é Sor Juana Inés de la Cruz, mas os nomes "fênix" ou "a décima musa do México" também lhe caem bem. E, pode acreditar, os títulos pomposos são merecidos. Então, se você não a conhece, agora é a sua chance. Vamos?
XVII: a cultura espanhola vive o "século de ouro"
Antes, posso ambientar um pouco a história? Entre os anos de 1648 e 1651, o México era chamado de Nova Espanha, dependente de seu colonizador, comandado por um regime monárquico que dividia seu controle com a força da Igreja Católica.
É dentro desse contexto que a Espanha vive sua melhor fase nas atividades artísticas, tanto que a era foi cunhada como "o século de ouro". Época de efervescência do estilo Barroco, marcado por pinturas desarmônicas (o que provavelmente mataria um renascentista), realismo anatômico, dramaticidade e exuberância desregrada. Há muito o que se ver em uma tela barroca.
Martírio de Santo André, de Juan Roelas (1615) |
Na literatura, foi instaurado o pleno jogo com as contradições e o bom uso das figuras de linguagem, desde metáforas a ironias. As temáticas célebres podem ser resumidas em pecado vs castidade; paixão vs razão; sedução vs purificação. O que isso reflete? Além do campo abstrato que a contrariedade provoca, se destaca a pressão dogmática da religião e seus moldes de virtude sobre os desejos mundanos.
A Igreja era a autoridade, e os benefícios dela estavam centrados em um grupinho socialmente privilegiado: homens, brancos e heterossexuais, é claro. Então, já dá para entender que nas artes, o espaço concedido também era restrito à mesma classe.
Assim, em meio a esse cenário, como Juana conseguiu chegar a um lugar no qual as mulheres eram potencialmente excluídas? Quais rumos teve de tomar? Como fora vista por essa população?
Juana Ramírez de Asbaje: de criança prodígio à protegida da corte
Natural de Nepantla, México, sua data de nascimento é incerta. Alguns aceitam como o ano de 1651, baseado em um antigo documento de batizado. Outros afirmam ser em 1648. Também há quem diga que Juana era uma bastarda, de sua mãe (Isabel Ramírez de Santillana) com um padre da região de onde talvez viera seu sobrenome Asbaje, contudo, a falta de arquivos biográficos referentea à escritora atrapalham quaisquer afirmações precisas. Sua vida é repleta de histórias entrelaçadas que se encontram e se desencontram em um fio narrativo bem complexo. No geral, sabe-se que sua família tinha um certo status e conexões com a nobreza.
O título de "prodígio" foi conquistado a partir de seus três anos, quando pediu para que a governanta de sua irmã também lhe desse aulas. Aos seis, sabia ler e escrever. Mas seu despertar para a literatura se deu quando foi morar com seu avô na capital do México, que possuía uma imensa biblioteca. Lia de tudo, até mesmo intrincadas obras de teologia, aprendeu sozinha a falar português, latim e a língua regional, náhuatle, além de explorar a própria escrita. Uma autodidata.
Durante a adolescência, teve de se apresentar à corte e estreitou os laços com a vice-rainha, a marquesa de Mancera. Pesquisas afirmam que, apesar das atividades intelectuais serem reservadas aos homens, Juana encontrou no palácio um lugar apropriado para aflorar seu conhecimento em aprendizado compartilhado com outras mulheres letradas.
Os dias tranquilos de ensino acabaram em 1667, quando abdicou da vida ao lado dos vice-reis e tentou ingressar em um convento.
Sor Juana: o convento como seu paraíso artístico privado
Muito se especula o porquê da decisão repentina de se juntar à instituição religiosa. Para alguns estudiosos, em decorrência de sua atual posição (órfã, pobre e bastarda), não restaria outro futuro à dama senão em um convento. Ou simplesmente poderia ter rejeitado a ideia de se casar, ciente de que seria forçada a renunciar a seu magnífico amor, as letras. Seja como for, Juana saiu em busca de um refúgio.
Passou então por dois conventos. O primeiro foi a Ordem das Carmelitas, porém, o abandonou quando percebeu que o regime era duro demais e não existia a possibilidade de se concentrar na escrita, quando volta doente à realeza e é ajudada por Dom Manuel de Santa Cruz a entrar para a Ordem das Jerônimas, um local menos rígido e mais aberto à alta sociedade, com direito a bailes e visitas ilustres da elite. No entanto, o que mais lhe fez brilhar os olhos para esse local foi o fato de ela ser permitida a se refugiar em suas produções literárias. É ali que obtém o tão canônico nome, Sor ou Sorór (duas transcrições possíveis para "irmã" em castelhano) Juana Inés de la Cruz.
O confinamento que o convento deveria demonstrar se tornou seu ofício e espaço de liberdade, para saciar a vontade de aprender enquanto vive longe da moral de uma sociedade extremamente machista. Em pleno século XVII, despontava para a história da literatura mundial uma mulher, poeta, freira e mexicana.
A lírica de Sor Juana Inés de la Cruz
Estima-se que Juana Inés escreveu 69 sonetos ao longo de sua vida. Até mesmo compôs poemas para religiosos proferirem em grandes festas, como o Natal, por exemplo. Compreendia muito bem a estética da literatura barroca e seus estudos a auxiliaram a seguir com rigor a escrita erudita, o que gerou maravilhosos trabalhos que exploram de forma belíssima ora paixões ardentes, ora melancolias exacerbadas e o que mais você pensar dentro dessa esfera entre amor e dor. Porém, ainda existem outros exemplos nos quais a autora vai além do tópico romance ao entrar em terrenos cada vez mais autorreflexivos:
“Se todos os riscos do mar forem considerados / ninguém embarcaria se eu visse antes / bem o seu perigo, nunca me atreveria, / nem mesmo para provocar o touro ousado.”
Você pode estar se perguntando como, ao que “parece” (entre muitas aspas), a escritora conseguiu se esquivar desse ambiente tão hostil para uma mulher, firmou seu nome como poeta enquanto se equilibrava em seu papel no convento? Até certo ponto sim, ela conseguiu tudo isso; todavia, não levou muito mais tempo para que sua voz potente e questionadora escapasse de si mesma e mergulhasse no profundo mundo de suas intensas palavras, algo que para a época estava bem longe do que uma freira era autorizada a fazer.
A voz provocadora e a literatura como ativismo
Para o México do século XVII, vários aspectos da existência de Sor Juana eram uma ofensa. Seus sonetos ligados ao erotismo parecem confirmar essa tese:
“A ação, Lise foi acertada, / o permitir retratar-te, / pois quem poderia fitar-te / se não estando pintada?”
A mistificação do corpo como um elemento mágico e inalcançável ao eu-lírico transparece o quanto a arte poderia incomodar o alto clero. Mas nada chegou perto ao escândalo que gerou em torno de sua provável homossexualidade. Quem seria essa Lise, citada nos maravilhosos versos? Uma grande maioria defende que a destinatária era a real condessa de Paredes - jovem, belíssima e de grande curiosidade sobre cultura.
Sor Juana já era conhecida entre a alta sociedade intelectual que frequentava a Ordem da Jerônimas, então não é de se admirar, já que tais poemas chegaram a conhecimento do público. Vale aqui ressaltar que sua sexualidade é um dos assuntos que mais permanece em divergência entre pesquisadores; muitos afirmam que a condessa e Sor Juana possam ter sido um casal lésbico. Entretanto, um dos grandes críticos literários do acervo de Juana, Octavio Paz, discorda desse pressuposto, defendendo que a escritora não expunha a homossexualidade nos sonetos, apenas interpretava um eu-lírico masculino para se adequar à norma, na tentativa de exportar seus feitos para pessoas além de seu ciclo social.
Não são poucas as interpretações dos sonetos, contudo agora é mais curioso observar como ambas as histórias apontam para um denominador comum - sua vontade de que as mulheres pudessem escapar do martírio que é viver sob as regras da misoginia, sendo obrigadas a se anularem para encaixarem-se em um padrão ao qual jamais pertenceriam. Isso revelava uma poderosa faceta, a de saber confrontar a ordem tradicionalista da forma mais lírica que era possível alcançar.
Talvez a censura do clérigo a tenha levado a escrever estrofes como:
"Ser mulher, nem estar ausente, / não é de amar-te impedimento; / pois você sabe que as almas / ignoram distância e sexo."
Essa foi uma jogada ainda mais provocadora. E quem sabe por isso tenhamos em fácil acesso um dos poemas mais interessantes do referido século, Hombres necios, aquele que abre o título deste artigo e que me levou ao desejo tão intenso de falar sobre uma autora tão magnífica:
“Qual é mais de se culpar / ainda que ambos seu mal tragam: / a que peca porque pagam / ou o que paga por pecar?”
Não é por acaso que títulos de "transgressora" e "ativista" se encaixam muito bem a ela, pois se teve algo que Sor Juana fez ao decorrer de toda sua vida foi questionar a posição da mulher na sociedade e o poder desmedido do homem.
Mas por que não conhecemos Sor Juana? Nos forçaram a esquecê-la?
No caso do Brasil, existe uma justificativa a mais para esse fato: foram trazidas poucas cópias, versões ou reimpressões do trabalho da mexicana para o país, tanto que muito do esforço de tradução dos diversos sonetos dela foram de acadêmicos. Isso revela duas coisas: que sua obra ficou restringida a círculos literários universitários e que a censura por parte da elite eclesiástica funcionou muito bem, no quesito de exportação dessas escrituras.
Sim, Juana respondeu e confrontou pessoas importantes, como o famoso Padre Antônio Viera em uma carta aberta que se tornou simbolicamente seu último material literário produzido, já que após isso ela perdeu o apoio da monarquia e lhe fora retirada toda a biblioteca e patrimônio artístico que acumulou durante anos. Não consigo pensar em exílio pior para a mesma. Morreu sem nunca mais grafar uma única palavra. Silenciamento, com o intuito de lançá-la para a sombra do esquecimento.
É disso que se trata este texto; quero estar na lista daqueles que tentaram e tentam arduamente trazer à público a riqueza que a vida e lírica de Juana de Asbaje representou. Não falo aqui de uma existência medíocre, falo de uma mulher autodidata, que se tornou freira para escapar das pressões misóginas que sempre aplicaram a qualquer figura feminina, e que teve sua voz calada pela mesma crueldade.
Enquanto estudava sobre Juana, somente uma coisa martelava em minha cabeça: quantas mais foram sentenciadas a isso? Quantas mais foram fadadas ao esquecimento, vítimas de um sistema que oprime e marginaliza, que não permite vir à luz a arte de protesto, de resistência, de confronto...?
E, para pôr um ponto final, lhes proponho procurar na íntegra seus fatídicos sonetos; consulte alguma versão traduzida em livros ou artigos acadêmicos, e deixe-se inebriar pela potência que sua presença vai eternamente simbolizar. Sor Juana Inés de la Cruz tem o direito de ser lembrada.
Referências
- Sor Juana Inês de la Cruz e a condição feminina na América Latina (Selma Araujo)
- Sor Juana Inés de la Cruz, uma feminista barroca (Ruan de Sousa Gabriel)
- Traduzir a poesia de Sóror Juana Inés de la Cruz: manipulação da fama literária, experiência ou usurpação luciferina? (Andrea Cristiane Kahmann; Nathaly Nalerio)
Em uma noite tão silenciosa a borda da madrugada , eu tive o prazer de ler Juana Inês de la Cruz .
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