Telenovelas sempre foram vistas como um subproduto, mas também como coisa de gente mais velha, de mães e avós que se reuniam em frente à televisão para assistir a tramas açucaradas. Como fazer com que a juventude parasse para assistir a 200 capítulos em média, durante seis meses? Em 1991, quando o streaming Globoplay ainda nem sonhava em existir, uma telenovela conseguiu atrair a atenção desse público e de quebra tornar-se um clássico imortal da teledramaturgia: Vamp, de Antônio Calmon.
Nos dias de hoje, Vamp talvez seja considerada kitsch, mas é preciso lembrar de que há 30 anos não se havia a metade dos efeitos especiais de hoje. E, mesmo assim, a telenovela consegue nos apresentar com brilhantismo como seriam nossos vampiros brasileiros. Vamp conseguiu fundir o mundo do horror com rock and roll, comédia e suspense. Tudo isso bebendo de clássicos da literatura, como Drácula e Entrevista com o vampiro, e do cinema, como A noviça rebelde e Dança dos vampiros.
O enredo
Vamp é a somatória do suor de diversos atores envolvidos na história, dos artistas até os autores e diretores. Ela jamais seria a mesma se não tivesse sido dirigida por Jorge Fernando, famoso por seu repertório de referência aos clássicos do cinema e por ter uma pegada bastante exagerada em suas novelas. Cambalacho, telenovela que já analisamos aqui no Querido Clássico, também foi dirigida por ele, por exemplo. Antônio Calmon conta que realizou um antigo de sonho de trabalhar com Jorginho, apelido do diretor, e juntos eles criaram boa parte da identidade que perpassa a trama.
Ambientada na cidade fictícia de Armação dos Anjos, na zona litorânea fluminense, logo nos primeiros capítulos se coloca o fio que sustenta a trama: uma história que atravessa séculos, selada pela lenda que tornou a cidade famosa. Na época dos padres jesuítas, vampiros assombravam Armação dos Anjos. A única arma para eliminá-los era a famosa Cruz de São Sebastião.
Ney Latorraca como Vlad |
Logo em seguida, a história salta alguns séculos, encaminhando-se para a Europa, e é então que conhecemos Natasha (Cláudia Ohana), a heroína de Vamp. Ela sonha em ser cantora, mas tudo o que consegue é cantar em um lugar poeirento, sem muitas perspectivas. Quando comenta, durante um ensaio, que venderia a alma ao demônio para ter sucesso, é que Vladimir Polanski (Ney Latorraca), o líder supremo dos vampiros, aparece para ela e oferece comprar sua alma pelo sucesso. Natasha aceita, transforma-se em vampira e então estoura como cantora na Europa. No entanto, o encanto é fogo de palha, e logo ela percebe a insensatez de sua decisão. Ela deseja quebrar a maldição, e para isso terá que voltar ao Brasil, mais especificamente para Armação dos Anjos. Somente um homem chamado Rocha, e a Cruz de São Sebastião, poderão salvá-la do vampirismo.
O terror tropical e suas inspirações
Como dissemos anteriormente, Vamp bebe da fonte de alguns dos grandes clássicos do cinema e da literatura para ambientar o terror tropical. Para começar, encontramos na história de Natasha a inspiração em dois clássicos da literatura: Fausto e Entrevista com o vampiro. Antônio Calmon misturou os elementos dessas duas histórias para criar a figura misteriosa, doce e ao mesmo tempo vampiresca encarnada por Cláudia Ohana.
A venda da alma pelo sucesso é uma releitura muito interessante de Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe, pelo fato de atualizar essa história e trazê-la para os bastidores do show business, dando origem a essa cantora-vampira com a qual o público jovem se identifica. Isso é bastante visível quando Natasha chega à Armação dos Anjos e interage com os adolescentes da novela. As garotas querem copiar o estilo gótico de Natasha, ao passo que os garotos querem namorá-la. Em uma cena específica da novela, quando ela aparece no circo da cidade, percebemos como a vampira é um ímã, atraindo a todos ao seu redor.
Cláudia Ohana como Natasha |
Além disso, o fato de essa vampira ser uma rockstar remonta à Entrevista com o vampiro, de Anne Rice, publicado em 1976, responsável por criar uma roupagem atual para os vampiros. Nas Crônicas Vampirescas, livros que seguem a trilha do primeiro, conhecemos o vampiro Lestat, que é despertado após 200 anos. Valendo-se de seu conhecimento e poderes, ele se torna um astro da música, usando essa plataforma para espalhar a mensagem do Mal pelo mundo. Apesar de Natasha não espalhar o Mal pela cidade, muito pelo contrário, ela exerce o mesmo fascínio que Lestat. Na verdade, poderíamos dizer que ela espalha o Mal de forma simbólica, pois suas vestimentas e o fato de sua música de trabalho ser uma versão de Sympathy For The Devil, dos Rolling Stones, já atuam como uma afronta ao conservadorismo daqueles tempos. Natasha representa a perversão para as mães de seus fãs, que a enxergam como uma espécie de femme fatale, pronta para devorar a alma de crianças e adolescentes.
Vamp é uma telenovela que se apropria de elementos macabros e os ressignifica. No lugar da Transilvânia, os vampiros passeiam por Armação dos Anjos. Uma vampira tenta o suicídio atirando-se de um penhasco na cidade. Por conta dessa ressignificação, o que encontraremos ao longo dos 179 capítulos que a compõem é o terrir (apelido carinhoso de obras que misturam terror com comédia) tropical, inspirado em grandes clássicos desse subgênero do cinema, como Dança dos vampiros. Existe uma verve de humor muito forte, com um vampiro de um dente só, e isso acontece também por conta do horário em que a novela foi veiculada. O horário das seis era caracterizado por tramas um pouco mais leves.
Voltando ao terrir tropical, o próprio nome "Vladmir Polanski" já denuncia as fontes de inspiração em Roman Polanski e sua comédia. A todo momento em Vamp teremos situações absurdamente engraçadas envolvendo os vampiros da história, como a cena em que Vlad dança ao som de Thriller, de Michael Jackson. O terrir inspirado nesse filme subtestimado de Polanski também se faz presente por meio da trama de Alice Penn Taylor (Vera Holtz), uma caçadora de vampiros, e seu assistente, Augusto Sérgio (Marcus Frota). Assim como no filme, essa dupla dinâmica se sustenta em uma comédia de tipos bem marcada. Enquanto Alice é corajosa, e lembra em diversos aspectos o Van Helsing de Drácula, Augusto Sérgio é medroso e atrapalhado, colocando muitas vezes a perder os interesses de Miss Alice.
Miss Alice e Augusto Sérgio simbolizam o terrir tropical, e é delicioso vê-los em cena. Miss Alice tem um forte sotaque carregado, ela é uma caçadora de vampiro de Londres, treinando Augusto Sérgio para ser um exímio caçador como ela. Alice é quase uma sátira de Van Helsing, com uma inteligência aguçada. Porém, é difícil levá-la a sério quando ela abre a boca e fala com seu pesado sotaque inglês. Dessa forma, o que acontece com essas duas personagens é o que chamamos de carnavalização, ou seja, um acolhimento de temáticas de fora, que são atualizadas a partir do momento em que se escolheu que a história de Vamp fosse ambientada no Brasil.
As inspirações clássicas não param por aí, no entanto. Além da caçada aos vampiros, Vamp também tem uma história de amor entre duas personagens mais velhas, outros protagonistas da telenovela, ligados aos vampiros de alguma forma, Jonas Rocha (Reginaldo Faria) e Carmen Maura (Joana Fomm). É importante falar disso, pois aqui temos a mesma lógica presente em A próxima vítima: uma história de amor aparece para contrastar com o terrir. Quando o telespectador fica entediado com as mordidas, ele pode recorrer ao romance. A história de amor entre Jonas e Carmen não seria a mesma se eles tivessem muitos filhos adolescentes, e isso foi uma fonte de problemas entre eles. Jonas e Carmen são opostos na criação que deram aos filhos. Ao contrário de Carmen Maura, Jonas criou os filhos de forma militar, até porque ele era um capitão reformado da Marinha. Nesse sentido, existe uma inspiração bastante pungente de A noviça rebelde na novela. Os filhos do capitão vestem-se praticamente iguais, obedecem ao pai, como se aqui tivéssemos o nosso capitão Von Trapp tropical. Sendo assim, poderíamos ler Carmen Maura como nossa Julie Andrews, aquela que chegará para propor uma nova forma de se criar os filhos, mais livre e menos rigorosa.
Carmen Maura e seus filhos |
Por fim, Vamp ainda bebe de uma minissérie que se tornaria um clássico anos depois: Twin Peaks, de David Lynch. Em 1990, um ano antes da estreia da novela, Lynch criou uma cidadezinha fictícia na qual o assassinato de Laura Palmer sacode a aparente calma do lugar. Em Vamp, temos a mesma lógica. Armação dos Anjos revive sua lenda a partir da chegada de Natasha, e ninguém sairá ileso das mordidas dos vampiros. À medida em que vamos conhecendo a história da cidade e de suas personagens, percebemos segredos e acertos do passado escondidos sob uma aparente fachada de normalidade. Como em Twin Peaks, é quando a noite cai que as personagens revelam quem realmente são. É em figuras como a do pintor Ivan (Paulo José), que carrega um segredo consigo e pinta para sublimá-lo, que sentimos o lado mais insólito dessa telenovela. Uma curiosidade é que a personagem Matosinho (André Gonçalves) aparece com uma camiseta contendo uma referência direta a David Lynch. É difícil não imaginar que ele tenha se inspirado no diretor para criar Armação dos Anjos.
Os vampiros tropicais tomam de assalto a cultura pop brasileira
A linguagem jovem de Vamp não estava presente apenas na trama. A Som Livre lançou três trilhas sonoras, um fato inédito, sendo uma delas voltada ao público jovem. Além disso, um álbum de figurinhas da novela também foi lançado. Com um bom merchandising, artistas como Rita Lee fizeram participações na telenovela, o que certamente alavancou a audiência. Outras inovações foram pensadas para o público, como a gravação de cenas que pareciam videoclipes, com cortes rápidos e sem diálogos, e a vinheta de fim da novela, que lembrava uma história em quadrinhos.
Por todos esses motivos, Vamp foi uma novela que não agradou tanto às donas de casa. De acordo com Antônio Calmo, no livro Autores, histórias da teledramaturgia, elas ficaram felizes ao perceber que seus filhos assistiam a uma novela voltada a eles, mas a achavam muita chanchada para o horário. Chanchada poderia descrever parte desse enredo mesmo, ainda mais pelo fato de que havia uma personagem, Mary (Patrícia Travassos), oriunda da Boca do Lixo, do cinema de pornochanchadas, o que tornava as situações ainda mais dignas desse adjetivo.
Apesar de não ter agradado ao público mais conservador, Vamp logo se tornou uma obra cult. Ter ganhado uma adaptação para o formato musical, estrelando Cláudia Ohana e Ney Latorraca, é só um dos muitos exemplos do quanto esse terrir tropical continua a nos influenciar. O próprio Antônio Calmon tentou repetir o sucesso de sua obra-prima quando escreveu O beijo do vampiro, novela de 2001. Disponível na Globoplay, a alguns cliques do controle-remoto, agora as gerações mais jovens têm a chance de se divertir e emocionar com os mistérios de Armação dos Anjos.
Referências
- Os vampiros vão atacar (Revista da TV, O Globo)
- O horror e o humor dos vampiros na hora do jantar (Cláudio Cardoso de Paiva)
- Dicionário da TV Globo, Volume 1: programas de dramaturgia e entretenimento (Jorge Zahar Editor)
- Teledramaturgia: Vamp (Nilson Xavier)
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