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O horror na manhã seguinte

A luz do dia invadindo a casa mal-assombrada pela manhã guarda sempre uma promessa de alívio em filmes de terror. A cena final do clássico A noite dos mortos-vivos (dirigido por George Romero em 1968) tinha tudo para ser mais uma dessas manhãs de alívio. Passada a noite de puro horror enfrentando as hordas de mortos que se levantam para (muitas vezes literalmente) correr atrás dos vivos, o dia seguinte amanhece calmo e ensolarado. Grupos de policiais, militares e civis se juntam para fazer uma varredura pela área, atirando contra os zumbis remanescentes, garantindo a segurança e paz dos vivos. Na casa de madeira isolada no meio do campo, resta apenas um sobrevivente, Ben (Duane Jones). Quando se move do seu esconderijo no porão para a porta da frente, Ben espia pela janela, segurando sua espingarda ao lado do corpo, para ver se é seguro sair. Claramente um humano vivo e são; vamos lembrar que zumbis não manejam armas de fogo, tampouco têm controle sobre o próprio corpo além de se jogar contra as coisas. É quando o grupo do xerife local está passando do lado de fora e o vê. Sem pensar, um dos homens prepara sua própria pistola e dispara um tiro seco contra a testa desprotegida de Ben. O herói cai no chão da casa, morto. O xerife fala: “Mais um para a fogueira”.

Ben, o herói do filme de George Romero, é um homem negro. Diferente das outras pessoas que se abrigaram na casa de campo com ele durante a noite maldita, ao longo do filme fica claro que Ben tem o pragmatismo necessário para atravessar os horrores da noite. Enquanto as outras personagens da trama são pessoas brancas de classe média e se tornam sobreviventes à força durante aquela noite, Ben já é um sobrevivente quando entra em cena. Filmado na década mais abalada pelas revoltas do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, a cena final do clássico é chocante porque atravessa décadas de história e limites geográficos. O filme se mantém atual e costura o drama - talvez o zeitgeist - da sociedade local naquela época. E do mundo hoje.

No remake de 1990, ainda com roteiro de Romero (e direção de Tom Savini), Ben (Tony Todd) é novamente assassinado por um homem branco. Mas, dessa vez, o assassino é Harry (Tom Towles), um dos sobreviventes do grupo que se abriga na casa. Um homem de meia-idade, branco, pai de família, classe média alta. Harry constrói uma tensão paralela em oposição à presença de Ben enquanto eles lutam contra os zumbis para salvar as próprias vidas. Ferido pelo tiro disparado por Harry, Ben se esconde no porão, mas não chega a ver a luz do dia. Pela manhã, levanta dos mortos como zumbi e é encontrado por uma dupla de rednecks que atira contra sua testa. Ou seja, morto duas vezes. Os rednecks estão acompanhados pela nova protagonista da história, Barbara (Patricia Tallman), a mocinha loira indefesa que não sobreviveu até o fim no filme de 1968. Nos anos 1990, Barbara, além de ruiva, se torna a heroína da vez. É ela quem sai para buscar ajuda, encontrando a redenção e a segurança trazidas pela manhã do dia seguinte. A salvo, ela retorna a casa onde viveu os horrores da noite para descobrir que seu fiel aliado, Ben, não sobreviveu ao ferimento do tiro disparado por Harry. E então assiste, em choque, o Ben zumbi levar um tiro na testa. Mas é Barbara quem dispara à queima-roupa contra o último ser humano sobrevivente na casa: o próprio Harry. Ele aparece, são e salvo, descendo do sótão. Ao vê-lo, Barbara não hesita em atirar na cabeça do homem, mesmo vendo que ele estava vivo. “Mais um para a fogueira”, diz ela para o par de rednecks que contempla a cena. 

Momentos antes dessa cena final, em um take na cidade, Barbara observa pessoas amarrando zumbis com cordas e pendurando-os em uma árvore. A composição é chocante, pois relembra umas das maiores expressões de violência na história do racismo nos Estados Unidos.

“Árvores do sul dão uma fruta estranha
Folha ou raíz em sangue se banha,
Corpo negro balançando, lento;
Fruta pendendo de um galho ao vento”

(Billie Holiday, Strange Fruit, 1939; versão de Carlos Renoó)

Vendo os corpos mortos-vivos balançando na árvore, Barbara diz para si mesma: "They are us. We are them and they are us”. Eles são nós. Nós somos eles e eles somos nós. 

No filme Nós (Jordan Peele, 2019), acompanhamos a trajetória de uma família tentando sobreviver a uma noite de horrores. O plot do filme mostra pai, mãe e os dois filhos de férias, quando a casa onde estão veraneando é invadida por um grupo de doppelgängers (cuja aparência é idêntica a cada membro da família) que desejam matar a família e tomar seu lugar. No desenrolar da trama, descobrimos que a família protagonista não é a única a sofrer com a tomada da casa por estranhos; na verdade, todas as casas do país parecem estar enfrentando o mesmo mal naquela noite. Porém, diferente dos filmes de mortos-vivos citados antes, ao amanhecer o problema de Nós não está resolvido; os duplos continuam soltos pelas ruas e pelas casas. Ninguém está protegido e não há solução. Em seus filmes, Romero traça uma linha final para os pesadelos da noite quando o dia finalmente amanhece, mesmo que marque com ênfase que esse final não significa que o horror da vida das personagens não-brancas tenha acabado, bem pelo contrário. Mas os brancos sobreviventes em seus filmes acabam sempre a salvo. Enquanto que, hoje, o diretor Jordan Peele aponta em seus filmes que nenhum de nós está a salvo das consequências de um mundo desigual. Somos afetados de maneiras diferentes, mas somos todos afetados. Aqui, ninguém vai terminar o filme ileso.

Muitos filmes clássicos do gênero dão vida a um terror que mora no íntimo das residências. Com monstros e horrores que servem de alegorias para perturbações da mente e dos desejos, a luz da manhã traz para dentro desses terrores internos uma possibilidade de redenção, uma alternativa, um novo dia. Os filmes de Romero e Peele mostram a perversidade de um horror real, literal. O horror que nos acompanha por todos os lugares a que vamos. Não é à toa que as duas histórias mostram uma onda de ameaça que vem de fora, da rua, e invade a tranquilidade das casas. É uma ameaça incontrolável, tudo o que resta às personagens é tentar sobreviver a forças maiores do que elas mesmas. Um horror que sozinhos somos incapazes de vencer. Um horror que vem do entendimento que a ofensiva social, externa, é tão grande que sozinhos ou em grupos muito pequenos não é possível sequer combatê-la: tudo o que resta é tentar lutar pela própria vida e tentar manter a sanidade para respirar o ar da manhã seguinte. Essa manhã que, sabemos, nem sempre garante a tranquilidade que esperamos como prêmio de sobrevivência.

As manhãs não deixam mais ninguém a salvo no mundo real, nem na ficção.

Referências 




Arte em destaque: Mia Sodré 

Vanessa Guedes
Escritora de ficção especulativa, editora e tradutora português-inglês na Eita! Magazine, podcaster no Incêndio na Escrivaninha e fluente nas línguas das máquinas. Quando não está de férias no Brasil, toca a vida em Estocolmo, na Suécia.

Comentários

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  2. Uma coisa bem legal sobre o filme de 1968 é que o Romero não tinha em mente que os seus comedores de carne humana seriam chamados de zumbi no futuro, tanto que esse termo não é citado no filme. Por um erro da pós produção, eles esqueceram de colocar um selo no final do filme que indicava que aquela obra tinha direito autorais o que, pelas Leis da época, contribuiu para que o filme e a ideia dele, assim como suas criaturas fossem reproduzidas incontáveis vezes, contribuindo para sua popularização.

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