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A figura do Outro em Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso

Em 1959, depois de quase dois anos desde que os originais haviam sido entregues à Editora José Olympio, era publicado o livro Crônica Da Casa Assassinada, escrito por Lúcio Cardoso. Quando começou o falatório sobre a obra, já se sabia que se estava diante de um futuro clássico da literatura brasileira. Trata-se de um livro que tem tudo de gótico e que sofre uma forte influência de O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë, que já havia sido traduzida pelo autor no livro de poemas, O Vento da Noite

Apesar do rebuliço causado na época do lançamento, Crônica da Casa Assassinada permaneceu esquecido durante muitos anos. Mesmo com algumas reedições, incluindo uma com os diários e manuscritos de Lúcio Cardoso, o livro tornou-se um item de colecionador, mas que ganhou vida novamente com o relançamento, por parte da Companhia das Letras, em 2021.

O Brasil parte de uma tradição gótica apagada, e o livro de Lúcio Cardoso talvez tenha sofrido desse apagamento por conta de sua forte temática no gênero. Na história, a Chácara dos Meneses, a casa assassinada da trama, ganha ares de personagens, atormentando a todos que ali vivem. Também temos a presença do Outro simbolizada pela personagem Nina, uma forasteira do Rio de Janeiro que chega para causar a derrocada daquela família outrora aristocrática.

Crônica da Casa Assassinada é um livro sufocante e ao mesmo tempo fascinante. Temos diversos narradores, os moradores da Chácara, e não podemos confiar em ninguém. Nesse sentido, Lúcio Cardoso inovou, pois trouxe a possibilidade de termos vozes polifônicas, em diferentes formatos literários, dentro do romance. Diário e carta são algumas das formas com as quais o autor dá voz a suas personagens. Tudo isso, somado aos próprios tormentos de um escritor assolado pelas lembranças de seu passado em Minas Gerais, faz com que esse livro seja uma leitura de perguntas e não de respostas.

Os Outros em Crônica da Casa Assassinada 

Uma das coisas mais interessantes no livro é a maneira com que ele se vale de diversos registros literários, como o diário e a carta, para contar a história da Chácara dos Meneses e dos membros dessa família. A maioria das ações acontece na cabeça das personagens, influenciada por uma memória distante, então essa obra nos leva a um vórtice justamente por isso, pois entrar na cabeça de cada personagem é um tormento diferente. Vivenciamos as questões e urgências de cada uma delas. 

Logo que a história começa, somos apresentados a André, filho de Nina. É por meio da primeira entrada em seu diário que ficamos sabendo que a mãe da personagem está à beira da morte. André vaga pela casa, e logo encontra a mãe, outrora uma linda mulher, moribunda na cama. Na primeira cena do livro, Lúcio Cardoso já nos apresenta a um dos motes da história: o incesto entre mãe e filho. O filho não suporta viver em um mundo em que a mãe não exista:

"Divago, divago, e ela não se acha mais aqui. Que adianta dizer, que adianta pensar essas coisas? Em certos momentos, a consciência desta perda atravessa-me com uma rapidez fulgurante: ah, finalmente vejo-a morta, e a mágoa de tê-la perdido é tão grande que chega a interceptar-me a respiração. 'Por quê, por quê, meu Deus', exclamo baixinho."

O fato dessa relação parasitária entre mãe e filho (na qual Lúcio Cardoso traz sua versão moderna do complexo de Édipo) iniciar a história não é fruto do acaso. O relato de André está ali para afirmar algo que perpassará o livro: Nina é o Outro que envenenará não apenas as personagens, mas toda a cidade de Vila Velha. O que Lúcio Cardoso faz com Nina é quase semelhante ao que Emily Brontë propõe em O Morro dos Ventos Uivantes. Como Heathcliff, não temos muito conhecimento sobre o passado dessa personagem. Sabemos que Nina vivia no Rio de Janeiro, sustentada pela figura masculina nomeada apenas como Coronel, e que um dia Valdo, um dos Meneses, a conhece durante uma sessão de carteado.


Na visita em que conhece Nina, Valdo fica obcecado por ela. Não demora muito para que ele a convença a se casar com ele, e então ele a leva para a Chácara. Essa chegada é marcada pelo interesse e pelos boatos da pequena cidade, já que Nina tem uma personagem esfuziante, alegre, que destoa da atmosfera triste de Vila Velha:

"Diziam-na perigosa, fascinante, cheia de fantasia e de autoridade - e eu, que já vira nosso círculo ferver e aquietar-se em torno de tantas personalidades diferentes, indagava de mim mesmo o que caracterizaria aquela, para que durasse tanto ao sabor do vaivém das conversas. 'Talvez porque seja uma mulher de fora, e uma bela mulher', pensava."

É interessante pensar nos motivos de a figura do Outro ser uma mulher e o que ela representa em Crônica da Casa Assassinada. Uma mulher dona de si e da própria sexualidade é um perigo à moral vigente de uma pequena cidade conservadora. Outras mulheres podem invejá-la e quererem seguir o mesmo caminho "imoral" que ela. Inclusive, essa dicotomia entre "a mulher de Vila Velha" e a "mulher do Rio de Janeiro" aparecerá com mais força nas relações (ou ausência delas) com Ana, cunhada de Nina. Ana é uma beata, submissa ao marido, Demétrio, cuja voz aparece sempre em capítulos nomeados "Confissões ao Padre Justino". Ana, fora do momento de confissão, não parece ter voz. Ela se odeia por vestir roupas sem graça, ao mesmo tempo em que inveja e sente nojo de Nina. A suposta sujeira da outra ofende Ana, que chega a proibir a cunhada de frequentar um dos locais da Chácara porque sua presença profanaria aquele ambiente. 

A profanação causada pelos costumes de Nina é o cerne da destruição dos Meneses. Ninguém sairá incólume da experiência do Outro. Além dos membros da família Meneses, duas figuras importantes testemunham a degradação moral daquelas pessoas: o médico e o padre. O primeiro é chamado na história quando acontece um crime na Chácara, provavelmente motivado pelo ciúme doentio que Valdo nutria por Nina. O padre e o médico são duas figuras muito interessantes no livro, pois eles atuam como os olhos da leitora na história. Eles não entendem de fato o que acontece na Chácara, têm apenas suposições, e a todo tempo se perguntam quem fala a verdade e o que se esconde por trás das matas do lugar.

Quando acontece o crime na Chácara, o assassinato do jardineiro Alberto, é que os rumos da história mudam. É o caso extraconjugal de Nina com o jardineiro que fará com que ela seja expulsa do local, deixando o filho pequeno para trás. E é em sua volta, assim como em O Morro dos Ventos Uivantes, que se concretizará sua vingança pessoal contra aqueles que a humilharam. Nina sabe de seu poder, sabe ser amorosa e autoritária ao mesmo tempo, o que a torna uma antiheroína muito fascinante. A vingança, ao meu ver, é simbólica, pois a simples presença dela é uma engrenagem mal polida no meio de uma cadeia extremamente regrada e sem graça. É no retorno de Nina, por exemplo, que ela começa a se relacionar amorosamente com o filho, como uma forma de atacar não apenas o ex-marido, mas toda uma instituição familiar que cuspiu em seu rosto e a mandou embora.

1ª edição de Crônica da Casa Assassinada

No entanto, Nina não é o único Outro na história. Timóteo, irmão de Demétrio e Valdo, é o Outro que precisa ser trancafiado e retirado do convívio social. Ele vive trancado em seu quarto, veste-se com roupas femininas. Em uma visão contemporânea de gênero, seria possível ler Timóteo como uma mulher trans, isolada da família por não seguir aos padrões e as normas. O sofrimento de Timóteo é trazido pelos relatos de Betty, a empregada da casa, a única pessoa com quem a personagem tem contato até a chegada de Nina. Um fato muito importante sobre a vida de Lúcio Cardoso é que ele era homossexual, e esse detalhe é quase sempre apagado de sua história em detrimento do suposto envolvimento entre ele e Clarice Lispector. Com Timóteo, é como se Lúcio estivesse fazendo uma crítica muito forte à sociedade heteronormativa daqueles anos 1950:

"Timóteo sempre foi um temperamento esquisito, de hábitos fantásticos, o que obrigou a família a silenciar sobre ele - como se silencia sobre uma doença."

Em um dos trechos mais intensos de Crônica da Casa Assassinada, Timóteo declara a Betty que o transformaram em um prisioneiro, que ele passeia dentro de uma jaula e de que tinha a liberdade integral de ser um monstro para si mesmo. Sendo assim, por ser também o Outro, não é à toa que Timóteo e Nina acabem se dando bem. Nina é a única pessoa, além de Betty, que o visita. Os dois encontram a cumplicidade de serem pessoas marginalizadas na Chácara, que também simboliza a sociedade heterossexual e patriarcal na qual vivemos. 

Da desilusão à escrita 

Parte de Crônica da Casa Assassinada é fruto da desilusão que Lúcio Cardoso vivia em agosto de 1950, quando ele deixara inacabado o filme que iria dirigir (e do qual escreveu o roteiro), A Mulher de Longe. Além disso, o escritor também vivia o desgosto de ver o fracasso de suas peças de teatro encenadas por sua companhia teatral, Teatro de Câmara, em 1947 e 1948. É, então, que ele faz uma viagem a Penedo, no litoral fluminense, que mudaria os rumos de seus projetos. Lá, ele registra em seu diário o momento em que passou por uma fazenda abandonada que mais tarde seria eternizada em na história como a Chácara: 

"O mistério da fazenda de Penedo me obseda — que vida houve lá, que ecos de civilização sacudiram seus muros, que nomes de poder e de fartura viveram ali a sua legenda? D. Siri, proprietária da casa onde me acho, (...) avisa-me que a fazenda é mal-assombrada. E não me resta nenhuma dúvida: tão grande casarão, abandonado ao silêncio e à devastação, só pode constituir um pesadelo. Em torno dele a vida foge espavorida, só os espinheiros e as urtigas crescem com sombria ferocidade, enquanto os camaleões, as cobras e os escorpiões se aninham sob as pedras esverdeadas pelo musgo."

Porém, as inspirações de Lúcio para sua obra-prima não param por aí. Além da viagem, muito da própria vida do autor está presente nas páginas de Crônica da Casa Assassinada. Lúcio nasceu em Curvelo, em Minas Gerais. Viveu os primeiros anos do nascimento em um sobrado caindo aos pedaços, e a descrição desse lugar poderia também se encaixar ao que encontramos sobre a Chácara no livro. Lúcio, por assim dizer, vivia cercado por velharias, não apenas físicas, mas simbólicas, como a decadência das grandes famílias mineiras.

Lúcio Cardoso

Durante toda a década de 1950, Lúcio viajou várias vezes pelo interior de Minas Gerais. Tomava café com rapadura com os caboclos enquanto observava a decadência daquelas paisagens. É muito pungente em seu livro o quanto a decadência física também é uma decadência moral, de espírito. Somada a essas tantas viagens, também residia a frustração de ter um emprego em um jornal, uma vida mundana e mesmo medíocre.

Foi assim que nasceu Vila Velha, a cidade imaginária e ao mesmo tempo tão real que conhecemos no livro. Situada na Zona da Mata Mineira, é lá que se concentram antigos rancores, regados a um conservadorismo de seus habitantes, destinados a nascer e morrer lá. A chegada do Outro, simbolizado pela personagem Nina, fará com que essas personagens se confrontem com o que há de mais abjeto e impuro dentro de si.

A tradição gótica se faz presente duplamente, portanto. Em primeiro lugar, nessa figura pária do Outro. Em segundo, nos temas que andam em círculos, voltando e assombrando não apenas aos moradores daquela casa, mas também a seu autor, que deles não pôde fugir, nem em vida nem na ficção. 

Uma casa assassinada? 

Por fim, é importante debruçar-se sobre o título da obra de Lúcio Cardoso. A casa é assassinada por quê? E por quem? O que significa isso? Bem, primeiramente, o título nos aponta que a casa outrora tinha vida. Em Vila Velha, comenta-se que na Chácara habitava o Mal, e que por isso o Padre Justino deveria expurgá-lo. O Mal, aqui, é simbolizado por Nina e Timóteo, mas a tentativa de trancafiá-los só causa a queda moral e psicológica dos outros habitantes do lugar. Portanto, a casa é assassinada pelo progresso? É uma leitura possível. Ela também pode ter sido assassinada pelo conservadorismo de seus moradores, que os leva à morte.

Crônica da Casa Assassinada é um livro que oferece o gótico brasileiro em seu melhor estado. O insólito se esconde pelas portas e pelo Pavilhão desse lugar misterioso. Ganhou uma adaptação cinematográfica no fim dos anos 1960, com Norma Bengell no papel de Nina, mas infelizmente Lúcio Cardoso faleceu antes de poder ver sua casa ganhando vida nas telas de cinema. Todavia, tanto o livro quanto sua adaptação cinematográfica atestam que nosso gótico não deve nada ao estrangeiro. 

Referências



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Arte em destaque: Mia Sodré 

Comentários

  1. Eu estou lendo este livro 📖 e muito bom.
    Mais eu queria mais terror.
    Mais não tem infelizmente.

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