A maternidade não é o sonho de toda mulher e nem sempre é a melhor fase da vida da mesma. O conceito de gestação pode ser lindo, mas acompanha o medo de perder o controle do próprio corpo e a impotência de não saber o que está por vir.
O conceito de maternidade monstruosa foi utilizado muitas vezes como ponto de partida para uma discussão a respeito do corpo feminino e a pressão sobre ele. Temas envolvendo a maternidade e como isso pode afetar não apenas o corpo de uma mulher, mas também sua mente, são muito discutidos na ficção e em especial no gênero do terror.
O cinema de horror possui a qualidade de se aproximar do limite, tendo como pano de fundo algo fantasioso e muitas vezes violento. O surrealismo tem a capacidade de nos fazer olhar para dentro para que possamos nos reconciliar com os nossos pesadelos. O terror faz o mesmo - e visualizamos esses pesadelos em forma de imagem e movimento. O gênero produz pensamentos imaginativos, inovadores e provocantes, e consegue confundir nossas noções de bem e mal, monstruoso e divino, sagrado e profano. A filmografia do diretor David Cronenberg conta com alguns exemplos do tema, em especial os filmes Os Filhos do Medo (1979) e A Mosca (1986).
A mãe monstruosa em Os Filhos do Medo
Em Os Filhos do Medo, Frank (Art Hindle) nota marcas de agressão na filha pequena, Candy (Cindy Hinds). Ele então começa a desconfiar que a autora dos hematomas é a própria mãe de Candy, Nola (Samantha Eggar), sua ex-esposa, com a qual sempre teve uma relação difícil, e com quem agora passa por um processo de divórcio.
Além dos hematomas na filha, Frank se vê envolvido em uma série de assassinatos que acontecem ao seu redor e contam com a presença de crianças misteriosas muito parecidas com Candy nas cenas dos crimes.
Desde a separação, Nola se encontra internada no Instituto Somafree, dirigido pelo Dr. Hall Raglan (Oliver Reed). Seus métodos de tratamento incluem um embate no qual o Dr. Hall recria momentos da vida do paciente com o mesmo e o resultado é a manifestação desses sentimentos, que se tornam materializações do que ele chama de “psicoplasmação”. O paciente é levado ao seu limite até que a ira tome conta de sua mente e corpo de uma forma macabra.
Nola se encontra frágil emocionalmente, e durante as sessões com o Dr. Hall, é nítido quanta raiva e frustração ela carrega dentro de si e como engolir esses sentimentos durante toda a vida a afetou profundamente. A relação complicada com os pais, a insegurança, o medo do abandono, a paranoia, a frustração e o desespero de cometer os mesmos erros com a filha transformam o corpo de Nola em um receptáculo. Um útero externo começa a gerar crianças estranhas, que na verdade são criaturas concebidas com base na fúria e nos sentimentos mais obscuros de uma mulher destruída psicologicamente.
Enquanto Frank passa a impressão de ser uma pessoa equilibrada e um exemplo de paternidade, Nola é retratada como uma mulher fora de controle, que se deixa levar pelos seus sentimentos e que nada tem a ver com a versão perfeita do que se espera que uma mãe seja.
A Mosca e o gerar como monstruosidade
A Mosca tem como personagem principal o cientista Seth Brundle (Jeff Goldblum), que criou cápsulas de teletransporte, chamadas por ele de telepods. Após experimentar a própria invenção, Seth tem que lidar com um imprevisto causado por uma simples mosca que invadiu uma de suas cápsulas, e começa a se transformar em uma criatura meio humana, meio inseto, o que lentamente faz com que ele perca sua humanidade.
Mas o foco aqui não é Seth, e sim seu interesse amoroso, a jornalista Veronica (Geena Davis). Enquanto a simpatia do público pelo protagonista vai diminuindo no decorrer do filme, acontece o contrário com Veronica. Principalmente quando se descobre que ela está grávida, possivelmente de um monstro.
Geena Davis entrega uma atuação fantástica durante todo o longa, e sua química com Jeff Goldblum é inegável, mas a partir do momento em que sua personagem passa pelo dilema da gestação, as emoções de Veronica se tornam ainda mais reais. Essas emoções perpassam a personagem - a insegurança e a solidão, o medo de como a criança irá nascer, a sensação de estar gerando algo monstruoso, s incerteza, o medo da maternidade e as escolhas que esta implicam.
Além dos pesadelos sobre seu próprio futuro e o da criança que carrega, há também o desespero de estar vendo o homem que ama se transformar em um monstro e não poder fazer nada a respeito e, ainda assim, conseguir demonstrar carinho pela criatura.
Tanto Veronica quanto Nola são retratos fictícios de mulheres reais em diferentes estágios da maternidade. Elas representam como o medo do desconhecido, a paranoia de gerar uma nova vida e a pressão para ser uma mãe e mulher perfeita podem perturbar a mente de mulheres.
Incrível o trabalho do diretor ao mostrar o tema das imposições ao corpo feminino de forma quase que figurada no cinema do horror e na criação de monstros, deixando claro o peso psicológico nas personagens. Seria interessante se mais diretores trabalhassem com esse assunto, bastante atual e de denúncia às exigências da sociedade sobre a mulher.
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