O filme Retrato de Uma Jovem em Chamas (dirigido por Céline Sciamma, 2019) contém um enredo apaixonante que atrai a atenção para o cenário LGBTQIA+ (Sigla para Lésbicas, Gays Bissexuais, Trans, Queer, Intersex, Assexuais e outras identidades) em um período histórico em que artistas mulheres já eram pouco evidenciadas, quando não ocultadas por sua criatividade e inovação. Todavia, artistas LGBTQIA+ tinham sua história completamente apagada. O filme foi lançado no Festival de Cannes e conta a história da pintora Marianne (Noémie Merlant), que recebe a tarefa de pintar um retrato de Héloïse (Adèle Haenel), que quando pronto será enviado para o futuro marido da moça. Conforme a história acontece, somos transportados para essa narrativa de autoconhecimento, amor, desejo e olhar. Enquanto Marianne pôde conhecer a arte e a cultura, Héloïse ainda está descobrindo vários aspectos da vida, e as duas mulheres vivem um amor que se complementa, se percebe e se defronta com o peso da impossibilidade de continuidade. Tudo isso por meio de uma direção de fotografia que remete a pinturas antigas e uma atuação que preza pelo olhar artístico, amoroso e desafiador por parte de Héloïse.
É factível que, ao longo dos tempos, grupos sociais marginalizados e menosprezados tiveram pouco ou nenhum acesso à arte. Quando discorremos sobre mulheres, apenas aquelas que pertencessem a altas classes era ensinado o básico de desenho, costura e bordado, enquanto o ofício da pintura e escultura era exclusivamente masculino. Raramente era oferecida às mulheres alguma oportunidade artística e comumente só era possível quando o pai ou marido desta fosse também um artista ou aprovasse a atividade. Mesmo assim, menções honrosas podem ser feitas a Artemisia Gentileschi, Élisabeth Vigée-Le Brun, Sofonisba Anguissola, Mary Cassatt, Pan Yuliang e Hilma Af Klint, que falaram de suas dores e crenças, mostraram sua excelência e trouxeram um olhar inovador e provocativo, especialmente ao contestar os parâmetros masculinos e exigir espaço na academia, nas galerias e nas ruas.
Embora a arte homoerótica, por exemplo, seja um exemplar presente desde a arte Antiga, existente em diversas culturas ao redor do mundo, há uma resistência, provocada pela moral cristã a partir do período da Renascença, em retratar novamente situações íntimas, eróticas, afetivas ou identitárias LGBTQIA+ devido à perseguição que ocorria com esse grupo. Pensando nisso, surgiu a reflexão: onde estão as pessoas LBTQIA+ na história da arte mundial? Aqui, tentamos falar um pouco sobre elas.
Lili Elbe (1882-1931) e Gerda Wegener (1904-1940)
Lili talvez seja mais conhecida por ser a primeira mulher trans a fazer a cirurgia de redesignação sexual e, infelizmente, ter morrido devido a complicações no pós-operatório de uma delas. Sua outra faceta era também ser pintora. Ela estudou na Academia Real Dinamarquesa de Belas Artes, onde conheceu sua futura esposa e amiga, Gerda. Elbe pintava paisagens pós-impressionistas em paletas suaves e comumente posava para Gerda.
Lili Elbe |
Gerda Wergener foi uma ilustradora e pintora que chocou bastante a sociedade da época com quadros que representavam cenas eróticas focadas no prazer feminino. Ela foi bastante reconhecida pelos seus retratos de mulheres, especialmente os da esposa, Lili Elbe, e também por suas ilustrações para o mundo fashion. Gerda ganhou duas medalhas, uma de ouro e outra de bronze, pelo seu trabalho na Exposição Mundial (World’s Fair) em Paris, no ano de 1925.
Air de Capri, Gerda Wegener, 1923 |
Lili e Gerda foram casadas durante 26 anos. O casamento foi realizado antes da transição e retificação do nome de Elbe. Infelizmente, elas foram forçadas a anular o casamento em 1930, e isso aconteceu porque o casamento homoafetivo era proibido na época.
Em 2015, o diretor Tom Hooper adaptou para as telas a história de Gerda e Lili, no filme chamado A Garota Dinamarquesa.
Gluck (1895-1978)
“Por favor devolva em boas condições para Gluck, sem prefixos, sufixos ou aspas.” (epígrafe da mensagem que Gluck deixava anexada atrás de suas pinturas)
Desde muito cedo, Gluck recusou seu nome de registro. Gluck nasceu em Londres, Reino Unido, em uma família abastada. Entre 1913 e 1916, frequentou a St John’s Wood Art School, e logo se juntou a uma comunidade artística na Newlyn School, também no Reino Unido. Nesse momento, Gluck vai desenvolvendo com mais liberdade sua arte, assim como faz mudanças visuais em si, como um corte de cabelo mais curto e o uso de roupas lidas como masculinas.
Durante sua vida, Gluck se envolveu com mulheres que tiveram influência também no seu estilo de arte. Sem nunca se identificar especificamente com um movimento artístico, é bastante conhecide por suas obras naturalistas de arranjos florais, feitas especialmente durante o tempo que esteve junto de Constance Spry.
Medallion, por Gluck |
Sua obra mais clássica e referenciada se chama Medallion, em que Gluck põe lado a lado sua imagem com a de Nesta Obermer, a paixão de sua vida. Medallion busca retratar o momento em que estavam assistindo a uma ópera e havia essa conexão não apenas pela música, mas pelo amor, uma conexão de almas. E sua obra seria eternizada na capa do livro The Well of Loneliness, um romance lésbico escrito pela autora Radclyffe Hall, em 1928.
Durante a carreira, Gluck fez sua primeira exibição em 1924 (ainda com a temática naturalista) e mais cinco exibições solo em 1926, 1932, 1937, 1973 e 1980 na Fine Art Society, em Londres.
Frida Kahlo (1907-1954)
Frida Kahlo é uma das mais influentes artistas mexicanas. No Brasil, inclusive, é uma das artistas mais famosas, seu rosto de expressivas sobrancelhas e enfeite de flores no cabelo trançado é sua marca registrada, comumente estampado em roupas e acessórios. Devido ao impacto da sua imagem única e revolucionária, Frida é considerada um ícone feminista, inspirando milhares de mulheres ao redor do mundo. Muito se comenta sobre seu relacionamento turbulento com Diego Rivera, um famoso muralista mexicano, conhecido por seus casos extraconjugais. Mas nem todos sabem que Frida era bissexual e também tinha seus affairs com mulheres impressionantes, além de manifestar-se fortemente contra o feminicídio (especialmente na obra “Umas Facadinhas de Nada”, de 1935) e vestir roupas consideradas “masculinas” à época, contestando o papel de gênero a quem quer que fosse. Kahlo expressava de forma calorosa sua personalidade forte, suas vontades eram altamente instigadas por seu pai, Guillermo Kahlo, em quem se espelhava.
Frida Kahlo |
Educada de forma livre, Frida não temia ocultar sua androginia ou suas paixões. Em suas obras, a artista expõe seu universo interno de forma densa, sem censura ao sangue, à dor e ao sofrimento, e muito menos à posição partidária que assumia. Na obra “Autorretrato com Cabelo Cortado”, Frida expõe muitas de suas questões, numa de suas representações mais impactantes de si mesma. O rosto da figura-Frida demonstra confiança, contrastada com o impacto da cena geral das mechas cortadas espalhadas pelo chão como animais mortos, remetendo à ideia de um passado deixado para trás, o de sua enorme decepção com seu ex-marido, Rivera, mas também de sua nova independência. Após o divórcio, Frida viu que precisava remodelar sua vida, recomeçar, então um corte de cabelo assombroso foi uma de suas soluções. Deixou de lado sua vestimenta tradicional, o vestido Tehuana, e as flores no cabelo, para usar roupas em tons mais sóbrios, calças, camisas e ternos. Esse foi um período de intenso isolamento para a artista, no qual reflexões profundas permeavam sua mente. Ela se sentia atraída por temas de noticiários e se atentava a denunciar, através de sua arte, qualquer violência e destrato às mulheres. Após esse momento, Frida se reencontrou, percebendo que sozinha ela era também era forte, percebendo sua identidade de forma mais evidente. Poderiam ser citados aqui vários de seus casos, entretanto a abordagem da identidade é muito mais interessante quando observada além do espectro sexual.
Frida descobriu na solitude um lado que queria explorar mais de si mesma e do mundo, a face pintada nos infere a certeza de quem via o mundo além dos limites de gênero, que se permitia expressar da forma que se sentisse confortável, e isso é o verdadeiramente revolucionário nessa obra.
Autorretrato com cabelo cortado, Frida Kahlo, 1940 |
Tamara de Lempicka (1898-1980)
Os anos 1920 foram uma época efervescente, marcada na história por conflitos e inovações, melindrosas, espiãs da guerra e a criação de grandes obras. Tamara de Lempicka era uma jovem abastada, deslumbrada com as possibilidades do mundo que, logo após a Revolução Russa de 1917, mudou-se para Paris, onde conheceu novas formas de arte e muitas personalidades da época. A artista afirmava sua enorme paixão pela arte renascentista e se inspirava na precisão e profundidade técnica dos antigos mestres italianos, que conheceu em viagens que realizou com sua tia. Apesar de ter tido contato com o cubismo, que a influenciou em sua técnica, ela apaixonou-se pela Art Deco, tornando-se, inclusive, um dos nomes do movimento com as obras Les Jeunes Filles e La Dormeuse, o que a colocou definitivamente na história da Art Deco.
Tamara de Lempicka |
Sua vida também foi marcante como sua arte, inclusive ambas estavam constantemente entrelaçadas, levando em conta que muitas vezes Tamara retratava suas experiências, momentos e pessoas com quem convivia, de modo que essas obras se tornam as mais intimistas da artista. Sua trajetória, em geral, se deve a uma escolha de futuro. Embora rica, Tamara sentia que não conseguia se manter estagnada, se preocupando com os bons costumes das socialites da época, então lançou-se ao mundo.
“Eu vivo às margens da sociedade, e as regras da sociedade comum não se aplicam àqueles que habitam as bordas.”
Tamara viveu intensamente, teve relacionamentos variados com homens e mulheres e sentia-se livre, representando seus momentos sexuais e afetivos na arte de forma a gerar incômodo de alguns, porém a identificação de muitos outros. Um desses exemplos é a obra Grupo de Quatro Nus, de 1925, em que é representada uma festa de corpos em êxtase, aproveitando o momento sem amarras o momento que estão vivendo. Parece uma cena capturada no momento em que ocorreu, repleta de intensidade, nas expressões e posições que os corpos ocupam. É uma obra muito rica, pois difere dos nus posados de forma artificial, que mais parecem estátuas rígidas e costumeiramente empalidecidas. Nela, vemos corpos que dão uma impressão mais real, tonalidades de peles variadas, cabelos curtos (uma tendência da época, mas que também era associada à androginia), posições quase mescladas entre si, maquiagens marcadas com o batom vermelho em destaque - cujo símbolo é essencial de emancipação feminina e LGBTQIA+. A obra evidencia o prazer compartilhado de pessoas cuja autonomia prevalece perante os costumes vigentes no período, nos fazendo sentir, igualmente, uma imensa satisfação pelas personagens ali retratadas.
Grupo de Quatro Nus, 1925 |
Shi Tou (1969-) e Bernice Bing (1936-1998)
As artistas chinesas enfrentaram grandes processos ao decorrer da história para conseguir espaço no meio artístico, mas, para pessoas LGBTQIA+, ocupar esse espaço foi um caminho ainda mais tortuoso.
Shi Tou é uma ativista, atriz, artista e diretora, muito conhecida por ter sido a primeira lésbica a discutir relações homossexuais na televisão nacional da China. Ela também organizou a primeira Conferência Chinesa de Lésbicas e Gays e a primeira Convenção Chinesa de Lésbicas em 1998, na capital Pequim, há menos de um ano da descriminalização da homossexualidade no país. Seus filmes abordando a identidade lésbica e artes relativas cativam a atenção. Inclusive, uma de suas obras foi utilizada como capa do livro recente de Hongwei Bao, Queer China: Lesbian and Gay Literature and Visual Culture. (China Queer: Literatura Lésbica e Gay e a Cultura Visual, em tradução livre). A obra em questão é Dreams of a Butterfly (Sonhos de uma Borboleta), na qual são representadas duas mulheres chinesas sorridentes compartilhando um abraço, enquanto ao fundo uma enorme borboleta azul se ergue da psicodélica névoa roxa. É um retrato poético que bem representa o sentimento do amor, uma borboleta da felicidade, liberdade e do viver o que se deseja alcançar. A artista impressiona com suas obras estonteantes e cheias de carinho, definitivamente um ícone do movimento lésbico.
Bernice Bing, ou Bingo, é outra artista excelente, dessas que precisam ser mencionadas e jamais deixadas de lado. Nascida em Chinatown, São Francisco, nos Estados Unidos, Bing foi imensamente atraída pela geração Beat e as Vanguardas, além de inspirada pelo espiritualismo que aprendeu a partir do budismo e taoísmo, criando obras que podem ser consideradas do Expressionismo Abstrato, vivas em cores e conflitantes em formas - como a própria artista parecia se vislumbrar. No entanto, lidar com as questões de ser sino-americana e lésbica não era simples. Quando Bing viaja à China, percebe fortemente a crise identitária que se formou em sua mente, sentia que não pertencia àquele lugar. De qualquer modo, a artista conseguiu representar de forma subjetiva, porém intensa, todo o turbilhão de reflexões de sua mente em sua arte. Uma das mais impactantes visualmente é Vital Energy (Energia Vital), uma pintura a óleo de 1986, cujas cores quentes em amarelo e vermelho parecem fundir umas nas outras como lava quente e contrastam com as cores frias, essas mais obscuras e em menor evidência na tela, relativizando o poder da energia ativa que move tudo com o da massa obscura que permeia seus raios, como duas polaridades opostas.
Bernice Bing |
Uma exposição essencial para a comunidade LGBTQIA+ chinesa foi a Secret Love (Amor Secreto), de 2013, uma série fotográfica exibida em Estocolmo, na Suécia, trazendo uma abordagem de expressão do amor libertário, visando demonstrar o carinho das relações homoafetivas, de modo a desmantelar estereótipos preconceituosos, sobretudo na população chinesa, que tem apresentado mudanças positivas de maior aceitação à comunidade. A exposição contou com trabalhos de artistas como Gao Brothers, Chi Peng, Ma Liuming, Zhang Yuan e de uma das artistas aqui homenageadas, Shi Tou.
Quando se busca comentar sobre pessoas LGBTQIA+, é importante atentar-se às suas demandas sociais. Não devemos resumir a sexualidade ou a transgeneridade à atividade sexual e à expressão gestual do indivíduo, mas entender que cada pessoa tem sua própria trajetória identitária. Esperamos que este texto tenha conseguido demonstrar isso de forma na qual quem lê-lo se identifique com as histórias e obras apresentadas, ou se sinta instigado a conhecer mais desses ícones incríveis que a arte renega por tanto tempo e agora, apesar de todas as dificuldades, busca retomar. A arte sobrevive, assim como aqueles que foram marginalizados e não pararam de resistir.
Referências
- Gerda Wegener: 'The Lady Gaga of the 1920s' (The Guardian)
- Obras de Frida Kahlo (MoMa)
- Overlooked Abstract Expressionist Bernice Bing Searched for Identity through Painting (Sumayra Jabbar)
- Queer China: Lesbian and Gay Literature and Visual Culture (Hongwei Bao)
Arte em destaque: Mia Sodré (para ver mais, clique aqui)
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