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Freak shows: a história da representação de pessoas marginalizadas na arte

Quem é fã da série American Horror Story provavelmente está familiarizado com o contexto do termo “freaks”. Para quem não conhece, Freaks é um filme de 1932, traduzido para o português como Monstros, que conta a história de uma trupe circense, pertencente a uma temática recorrente do fim do século XIX: os freak shows, ou shows de monstruosidades, nos quais pessoas com deficiência (PcDs), aparência incomum, tatuagens ou características e talentos diferenciados, representam as atrações principais. O filme aborda como os integrantes da trupe eram horrorizados - uso esse termo como significativo de um estado imposto por outros, não natural dos indivíduos explorados - pela trapezista Cleópatra e seu amante Hércules, o “homem-forte”, bem como pelos civis que os vissem durante o dia. O plot do filme traz uma reviravolta nos planos de Cleópatra, mostrando ela como a verdadeira monstruosidade, uma híbrida de mulher em corpo de pássaro. Em geral, o enredo principal do filme gera uma reflexão que pode ser associada ao livro A Metamorfose, escrito por Franz Kafka em 1915, sobre transformações e o “ser alienígena”:

"Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante de seus olhos." 

A personagem Gregor Samsa desperta numa situação em que, mesmo com o pensar racional ativo, é visto como desprezível por sua aparência, chamado de monstruoso e destratado por sua família. No decorrer da narrativa, o leitor passa a enxergá-lo mais pela angústia que representa, inerente à humanidade, do que pela transformação em criatura, embora o próprio Gregor progressivamente passe a se ver mais como o ser repugnante que os outros afirmam que ele é. Esse ponto-chave do enredo naturalmente gera reflexões da fantasia da transformação, como em Freaks, o “nascimento”, seja ele literal ou figurado, que gera a pessoa diferente dos costumes, regras, enfim, convenções sociais, aquela que comumente enfrenta desafios numa sociedade quadrada, fechada para o diferente e inusitado. 

Em Freaks, a transformação de Cleópatra surge como um ato punitivo, que sugere a interpretação de que o tratamento desumano que se inflige aos outros pode se tornar contra você. A mulher gananciosa torna-se quem ela mais detesta, sente na pele o que é ser vista como esse “ser alienígena”, fora dos padrões, uma freak

Freaks (1932)

Desde a literatura antiga, a ideia de metamorfose é trabalhada como a transmutação completa e progressiva de um ser de um estado inicial a outro final, assim como na obra Metamorfoses (Metamorphoseon no original), escrita em torno de 8 d.C. pelo romano Ovídio, na qual narra-se um processo repleto de transformações constantes de vários seres desde o surgimento do universo até o momento em que os humanos se tornam os próprios deuses. Para Ovídio, os humanos eram os mais sagrados dentre os animais e, por isso, representam um reflexo da imagem divina. A revelação de Gregor Samsa faz refletir sobre os aspectos angustiantes da alma, algo profundo que teria sido mantido encoberto não fosse a metamorfose. A dita monstruosidade era, na verdade, apenas uma revelação de um lado ainda mais humano do que a personagem demonstrava. A própria palavra “monstro” tem entre seus significados nas palavras “mostrar” e “advertência”, mas a tendência prática é de sugerir que qualquer coisa desconhecida à ciência humana possa ser uma monstruosidade. 

O preconceito contra indivíduos como os do filme e do livro citados data de muito antes da Idade Média. Porém, o gosto pela “física curiosa”, assim denominada pelo teórico Umberto Eco, começa a se popularizar no período da Renascença com o começo das viagens de exploração, nas quais os europeus tiveram contato com outras civilizações e culturas muito diferentes das suas, as quais estranharam, pré-julgando erroneamente seus hábitos e tradições e exercendo uma dominância violenta sobre seus corpos - quando não o genocídio de comunidades inteiras.

Enquanto muitos povos originários foram removidos de suas tradições e forçados a integrar a educação religiosa europeia, outros foram levados para países distantes, para trabalho escravizado ou matrimônio indesejado. Porém, alguns que tivessem características pouco comuns ou desconhecidas pelos registros eram levados para entreter a alta aristocracia europeia, sendo Antonietta Gonzales e sua família um exemplo da exploração e humilhação a que esses indivíduos eram submetidos. 

Antonietta Gonzalez (1595)

Antonietta herdou de seus pais a hipertricose - “síndrome de lobisomem" no pejorativo, uma denominação preconceituosa que relativiza o indivíduo à monstruosidade -, que ativa um crescimento desproporcional de pelos por todo o corpo. Devido a isso, vivia na corte de Henrique II da França como objeto de curiosidade, para ser observada e ridicularizada pela realeza. Seu pai, Pedro González, fora sequestrado de sua terra de origem, Tenerife (Ilhas Canárias, Espanha), por sua condição e levado ao rei Henrique II como presente, sendo considerado um animal até que fosse provado o contrário. Após o tratamento já desumano inicial, o monarca decidiu “educá-lo” conforme sua doutrina dentro da corte, até que, ao tornar-se adulto, Pedro casasse (com a permissão real) e tivesse seu relacionamento observado de perto, sempre com intenções científicas envolvidas, como uma criatura. De seus seis filhos, os dois primogênitos não apresentaram a condição, mas os quatro seguintes, sim. Sem muita oportunidade, a família serviu aos aristocratas de toda a Europa como “atração fantástica”. Acredita-se que a família, por fim, estabeleceu-se na Espanha e não se tem certeza sobre seu destino após esse momento. 

Surgimento dos Freak Shows

A palavra “freak” surgiu, curiosamente, do antigo inglês "frician", que significa “dançar”. Entretanto, a partir do nascimento das enciclopédias e catálogos naturalistas durante o Iluminismo, o termo “freaks of nature” passou a ser utilizado para denominar indivíduos com características incomuns, doenças e deformidades, tornando mais intensa a marginalização que já sofriam. 

Já no século XIX, com o advento dos gabinetes de curiosidades, animais exóticos, fetos natimortos e utensílios ritualísticos passaram a ser expostos para apreciação, como eventos extraordinários da humanidade. A popularização desses gabinetes também atraiu o interesse dos circenses, que estavam acostumados a lidar com o assombro e o fantástico, utilizando do lúdico para atrair o público, iniciando atos performáticos que envolvessem essas pessoas, a exemplo da cena inicial do filme expressionista O Gabinete do Doutor Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari), de 1920, em que o Doutor Caligari (Werner Krauss) expõe o jovem Cesare (Conrad Veidt) como um impressionante sonâmbulo, capaz de contar aos visitantes predições como a proximidade de sua morte.

O Gabinete do Dr. Caligari (1920)

O termo “freak show”, agora no sentido de “show de monstruosidades”, começa a ganhar espaço no cenário do fim do século XIX, após a morte do famoso showman Phineas Taylor Barnum, um dos grandes responsáveis por popularizar o circo estadunidense. Controversamente, mesmo que em sua época as performances fossem intituladas de “Curiosidades e Raridades Humanas”, o termo “freaks” surgiu como propaganda dos espetáculos, algo que desagradou os artistas, culminando numa revolta marcante em 1898, na qual os mais famosos organizaram uma greve demandando a retirada do ofensivo nome de sua exibição artística. Mas, apesar de escolhido o nome “prodígio” para lhes descrever, a palavra “freaks” (aberrações, esquisitices) começou a ser propagada com mais intensidade, como um fungo se multiplicando, adquirindo fama por sua contrariedade.

Uma das mais notórias artistas dessa modalidade de circo foi Sarah “Saartjie” Baartman, uma mulher negra conhecida pelo nome artístico de Vênus Hotentote - “Vênus”, numa associação à sensualidade da deusa do amor romana; “Hotentote” como termo pejorativo que europeus usavam para denominar a etnia Khoisan (ou Coissã), a qual a jovem pertencia. Em 1810, Saartije, enganada por um médico, foi levada da África do Sul à Europa e exibida em espetáculos circenses, apenas por ter nádegas mais avantajadas, uma condição denominada esteatopigia. A jovem foi objetificada pela forma de seu corpo e sofreu racismo e abusos de seus empresários, falecendo 5 anos depois, aos 26 anos, em Paris, na França. Entretanto, partes de seu corpo permaneceram em exposição até 1974, sendo devidamente levadas a seu país originário apenas em 2002. 

Finalmente, a partir da metade do século XX, os espetáculos de “Freak Shows”, bem como de exibição de animais selvagens, passaram a decair devido a fatores diversos, como o barateamento de brinquedos de parques de diversões, a revisão da situação dos artistas com a maior inserção social e o crescimento do cinema. 

Sarah “Saartjie” Baartman

Infelizmente, mesmo com o fim dos “Freak Shows”, programas de televisão e reality shows surgiram e trouxeram uma nova forma de expor a realidade dessas pessoas, num novo formato de sociedade do espetáculo. O olhar julgador está sempre em cima desses indivíduos por conta da aparência, que parece sempre ditar a moral através de prejulgamentos. Assim, quando uma pessoa de aparência “gentil e atraente” para os padrões de determinada sociedade é condenada pelo cometimento de crimes, tal fato provoca um assombro no senso comum, pois a aparência é erroneamente colocada como julgadora de caráter. 

Quando refletimos sobre a sociedade do espetáculo, definida por Guy Debord, pensamos em como o juízo que outros têm é capaz de afetar a imagem de um indivíduo, especialmente quando isso envolve propagandas e questões políticas. Vemos que por isso o capacitismo e preconceitos gerados por notícias sensacionalistas e as chamadas fake news ganham palco, contribuindo para uma sociedade segregacionista. 

Embora a palavra “freak” tenha adquirido novos contextos de aceitação da sua identidade em movimentos ativistas na subcultura e, inclusive, aparecendo em trechos de músicas como “Life on Mars?”, de David Bowie, e “Le Freak”, do grupo CHIC, muitos ainda têm relutância em aceitá-lo, já que o termo é utilizado de modo agressivo, no intuito de ofender e machucar emocionalmente pessoas. Felizmente, na atualidade os direitos desses indivíduos são assegurados por lei, com apoio médico e educação inclusiva, em direção a uma sociedade mais igualitária. 

O cinema, a televisão e a arte podem mostrar a realidade desses indivíduos, desde que de forma justa e real, demonstrando suas vontades e desejos, não como reality shows que seguem uma falsa premissa, que tentam manipular essas pessoas, convencê-las de que são absurdas por conta de seu físico, mentalidade e gostos pessoais e que trazem impressões absurdas, numa perspectiva sensacionalista que distorce sua imagem. 

Essencialmente, o horror por vezes está implícito na atitude daqueles que se intitulam “os heróis”, “os mitos”, “os grandiosos”, existindo vários exemplos de personalidades históricas que cometeram atrocidades e extermínios de vários povos, inclusive os seus próprios. Muito do que o senso comum determina como horrendo comumente apresenta outras versões e origens fundadas na própria violência social e manipulação política. Assim, sabe-se que os verdadeiros monstros não são aqueles que são excluídos, ocultados e silenciados, completamente pré-julgados, mas os opressores que não lhes permitem ser. 

Referências 


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