Atualmente, é muito comum ouvir a denominação "folk horror" em referência a alguns dos blockbusters mais recentes, como Midsommar (2019), ou filmes menos lembrados, como O Ritual (2017). Considerando o sucesso que empresas como a A24 conseguiram extrair de películas com esse cinema precisamente gótico, que mescla o realismo moderno (a identidade psicológica e motivações de personagens) ao fastástico medievo (as aparições, as maldições, jornadas e os pecados que capturam essas personagens modernas) — fórmula esta que se esparrama para mais de um gênero da indústria cinematográfica, como se pode ver com o resgate de contos de cavalaria ou shakespearianos já quase-anuais —, é de se esperar que o folk horror continue bem representado nas produções artísticas, no cinema e literatura atuais.
Surge então o interesse de investigar um pouco mais a fundo do que se trata, em sua natureza, o folk horror. A questão é um pouco mais complicada do que parece, portanto, comecemos pelo título: o "folk" aqui sempre foi um termo diretamente atrelado ao povo, daí, folk-lore (folclore) nada mais é que — como diria Câmara Cascudo — cultura popular.
As tradições de um folclore
Termos como "popular", atualmente, não nos dizem muita coisa se apresentados assim (há mesmo um gênero praticamente anômico de músicas que se nomeiam folk). Acredito que o folk pode ser usado como uma coordenada para a produção artística quando interpretado como “oral-tradicional”, ou que, mais significativamente, simula aspectos orais-tradicionais. É como os contos que foram reunidos de cima a baixo na Europa dos séculos XVII e XVIII por tipos como os famosos Irmãos Grimm, na Alemanha.
Os séculos de tradição oral serviram para, como num moinho, refinar histórias das mais estupendas em quase extratos do que se convenciona chamar de inconsciente coletivo na psicologia analítica. É o torpor criado por elas (que eram, num geral, macabras, condizentes com a história do medo que Jean Delumeau nos conta) que o folk horror tenta simular. As histórias medievas, porém, pouco dialogam com a nossa mentalidade atual, formada a partir da negação das mesmas.
Ilustração de Arthur Rackham, "Branca de Neve", 1917 |
É possível a existência de dois caminhos, um resgate que nos rememora essas histórias, ou o forjar de histórias novas, góticas, de fato, mas que são capazes de conversar mais com o imaginário contemporâneo. A um bom entendendor, Howard Lovecraft não fez mais que acrescentar astronomia ao terror gótico de M.R. James (que tinha vários interesses compartilhados, como o antiquarianismo): o resgate de Lovecraft pela contracultura nos anos 1860 a 1870 fez surgir a produção de H.R. Giger — e Alien, Oitavo Passageiro (1979) não é nada mais que um slasher gótico no espaço. A separação entre produções de maior violência das de maior suspense não faz sentido, e O Massacre da Serra Elétrica (1974) poderia ter sido vilanizado por um redcap ou ghoul que daria no mesmo que Leatherface, só que já sem um padre que possa combatê-lo.
Dessa forma, faz parecer então que se trata tudo da mesma coisa (e às vezes é tudo a mesma coisa pronunciada de maneira diferente), mas, após esse percurso, talvez o leitor possa voltar a identificar o horror folk melhor equipado: ele simula aspectos da tradição oral.
Onde a tradição oral se passa? Virtualmente, em qualquer lugar. Um folk horror pode se estabelecer numa escola ou fazenda, onde crianças contam lendas urbanas de fantasmas. No geral, porém, ele se estabelece (se for possível que haja puristas no gênero) em áreas rurais, camponesas, afastadas das lógicas urbanas. Um aspecto recorrente é que o protagonista seja um outsider (muitas vezes cético, assim como os antiquários de James e Lovecraft) à essa comunidade — e, às vezes, é preciso lembrar que o outsider somos só nós —, e a ambientação é importante: justamente o suspense é um dos pontos mais centrais (o que em Lovecraft se convencionou chamar, um pouco desnecessariamente, de terror cósmico).
A peça chave final é justamente a necessidade do macabro moral, geralmente manifesto ou numa maldade pecaminosa dos homens, ou num monstro de pura maldade (nessa manifestação, os filmes de folk horror são geralmente mais sombrios, é dificílimo uma personagem sobreviver para contar a história). Daí que alguns debatem (de maneira geralmente infelizmente óbvia) se é adequado julgar os algozes criados em tais narrativas. Por que as personagens morrem? Mas não morriam todos já desde os tempos dos já citados Jacob e Wilhelm Grimm? Crianças, mulheres, animais, velhinhos e homens fortes são como folhas secas para poderes como o Diabo ou, pior, a ira e a loucura dos homens. Talvez o folk horror queira justamente nos resgatar a essa consciência tradicional.
Seguem-se, então, algumas recomendações de horror folk no cinema, tentando fugir um pouco das listas usuais já enrijecidas. Produções das mais diversas, algumas mais arbitrárias que outras, mas todas produzidas de forma a trazer o medo e o horror mais brutais.
A Warning to the Curious (1972)
Produção de televisão adaptada (pela BBC, que à época produziu vários contos de horror) de um conto de M.R. James. Um arqueólogo amador, em tempos de desemprego, vai a uma cidade no interior da Inglaterra para procurar pela última “Coroa dos Reis da Anglia”, que supostamente protege a Bretanha de invasões. Ao chegar no povoado, ele é tratado com desconfiança pela população local, e parece estar sendo seguido por um homem que já morreu.
O Homem de Palha (1973)
O filme de folk horror por excelência, geralmente mandatoriamente elencado com O Caçador de Bruxas (1968) e O Estigma de Satanás (1971). O fervoroso cristão e oficial de polícia inglês Howie viaja até uma comunidade isolada na pequena ilha de Summerisle ao receber um telefonema informando que uma garota havia desaparecido. Ao chegar lá, a comunidade não apenas parece esconder o que sabe sobre a garota, mas também busca desafiá-lo em todas as suas crenças.
O Massacre da Serra Elétrica (1974)
Dirigido por Tobe Hooper, que também foi responsável por Poltergeist e Salem’s Lot (outro filme recomendado, produzido a partir de uma história de Stephen King), nesse filme, o suspense resta apenas em espasmos entre a violência viciosa de Leatherface e família sobre um pequeno grupo de viajantes numa área rural no meio de lugar nenhum, Texas.
Colheita Maldita (1984)
Boa parte da produção de (e inspirada em) Stephen King acaba envolvendo aspectos do que temos no folk horror, com a recorrência de histórias em comunidades rurais no interior dos EUA. Colheita Maldita — mas também com certeza Cemitério Maldito e Salem’s Lot, além de produções mais recentes —, reúne uma cidade no interior dos EUA onde um culto macabro protagonizado por crianças é confrontado por um casal outsider que tentará cortar o mal pela raiz.
Arte em destaque: Mia Sodré
Amei sua matéria,vc acha que os filmes Os Outros e Sexto Sentido se encaixa aqui??
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