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Mulheres Pré-Rafaelitas: Evelyn de Morgan


O movimento conhecido como Pré-Rafaelita teve origem em 1848, na Inglaterra, quando três estudantes da Academia Real, Dante Gabriel Rossetti, William Holman Hunt e John Everett Millais, se uniram para criar um movimento de oposição aos moldes acadêmicos, até então baseados nas técnicas do renascentista Rafael Sanzio. A ideia era criar uma arte que fugisse desse padrão e abordasse temas como a espiritualidade, o medievalismo romântico e figuras mitológicas. Como temos conhecimento, muitos dos artistas aclamados do período eram homens (inclusive o grupo de fundadores do movimento era praticamente restrito a eles), os quais possuíam suas musas, belas e sedutoras, que marcaram suas obras com seu imenso magnetismo.

Entretanto, houve determinadas inovações para as mulheres do período. As musas dos pré-rafaelitas eram mulheres trabalhadoras, que não se encaixavam no padrão de beleza estipulado pela alta classe inglesa: eram destemidas e provocativas em suas poses e expressões. Já traziam consigo a característica marcante da mulher moderna, a ferocidade, por muitos vista como a marca da femme fatale que, no entanto, era mais do que uma perspectiva rasa de mulher perigosa e sensual. Tratava-se do surgimento das mulheres emancipadas que exerciam sua luta e tinham consciência de sua força. E, para a sociedade vitoriana de alta classe, esse era o verdadeiro perigo: mulheres tornando-se conscientes de seu lugar.

A modelo Elizabeth Sidall (Sid) foi uma das mais conhecidas modelos do período devido ao fato de aceitar assumir qualquer “personagem”, até mesmo as mais ousadas. Em um dos quadros para o qual posou, estava trajada de vestes consideradas masculinas para a época, o que era perturbador aos espectadores, mas grandiosamente revolucionário para o meio artístico. O ofício de Sidall era de costureira numa chapelaria. Já o de Fanny Cornforth, a modelo principal de Rossetti, era de serviçal numa casa de alta classe. Essas mulheres, por pertencerem à classe trabalhadora, eram comumente ocultadas, e sua beleza natural, criatividade e versatilidade eram pouco apreciadas, ainda que quem comandasse o país fosse, também, uma mulher.

Ophelia, de John Everett Millais, que utilizou como modelo Elizabeth Sidall

Além das musas, ainda mais à margem da visibilidade temos uma variedade impressionante de artistas cuja arte pode ser associada ao movimento pré-rafaelita: Emma Sandys, Marianne Stokes, Kate Elizabeth Bunce, Joanna Mary Wells e Eleanor Fortescue-Brickdale, sem mencionar muitas outras que merecem todos os destaques e honrarias na História da Arte. Em contraste com as musas, símbolos de feminilidade e sensualidade, existem as artistas que, por sua vez, precisavam enfrentar a todos como um leão para ocupar uma posição profissional, mesmo que fossem tão producentes e fantásticas quanto os próprios fundadores do movimento.

Cartaz da exposição Pre-Raphaelite Sisters, exibida na National Portrait Gallery, em Londres

Em resgate e reparação a essas artistas, a National Portrait Gallery de Londres organizou uma exibição em outubro de 2019, a Pre-Raphaelite Sisters, cuja contribuição das mulheres para a história do movimento foi finalmente evidenciada. Foram expostas obras de Joanna Mary Wells, Fanny Cornforth, Marie Spartali Stillman, Evelyn de Morgan, Christina Rossetti, Georgiana Burne-Jones, Effie Millais, Elizabeth Siddal, Maria Zambaco, Jane Morris, Annie Miller e Fanny Eaton.

Devido à importância de ressaltar a história dessas mulheres, suas jornadas de vida e dificuldades no meio artístico, selecionei uma delas cujo trabalho considero muito significativo: Evelyn de Morgan.

Quem foi Evelyn de Morgan?


Nascida em 30 de agosto de 1855, em Londres, Mary Evelyn Pickering sempre foi uma criança envolvida com a arte. Teve aulas básicas de desenho na juventude junto de seus irmãos, algo pouco comum entre mulheres, exceto as que pertenciam à alta classe. Evelyn tornou-se aficionada pela área de forma muito intensa. Enquanto alguns de seus parentes possuíam estudos artísticos mais aprimorados (a própria mãe da futura artista havia estudado desenho), a Evelyn não era permitido explorar mais do meio, pois as jovens vitorianas se dedicavam apenas às qualificações necessárias ao futuro matrimônio, à família e aos afazeres domésticos.

Evelyn de Morgan

Na primeira biografia de Evelyn, cuja factibilidade é razoável e muito pessoal, pois é de autoria de sua irmã, a artista foi descrita como uma jovem de temperamento tempestivo, com expressividade vívida, porém em constante desagrado e com uma presença geradora de caos na calmaria da família tradicional vitoriana. Sua irmã afirma que ela era obcecada pelo âmbito das artes, seu foco direcionava-se diretamente ao pincel e nada mais a agradava tanto, praticamente obrigando seus pais a contratarem um tutor de desenho.

Durante a juventude, Evelyn enfrentou muitas provações sociais, como ter sua vontade e ambição artística vinculada a uma “energia viril”, características voltadas ao masculino. Outra pintora profissional, Henrietta Ward, foi altamente criticada e acusada de não possuir a delicadeza e fragilidade feminina, sendo sua personalidade associada a uma “assertividade masculina”.

Conforme as habilidades da pintora evoluíam, o desgosto da família e dos conhecidos se acentuava. Além de buscar a profissionalização em arte e conseguir uma bolsa na Slade School of Art, o que era escandaloso para a época, Evelyn demonstrava um gosto particular pela figuração e simbologia. Era altamente criticada por isso e constantemente envolvida em conversas depreciativas, já que, na época, acreditava-se que mulheres não eram capazes de criar arte que não fosse de natureza morta. Às mulheres era negada a autoria de obras conceituais, vivazes e esplendorosas como as que os homens faziam. Mas isso não impediu Evelyn; seu amor pela sua arte era o fator propulsor de sua vida. Em seus diários, ela descreve como se sentia inútil quando não fazia arte, tudo parecia banal, mesmo as atividades mais corriqueiras, como visitas ou o chá da tarde. Ela precisava trabalhar, era o que fazia sentido para ela:

“(...) no início de cada ano eu digo 'Eu vou fazer algo', e no final eu acabei sem fazer nada. A arte é eterna, mas a vida é curta, e cada minuto ociosamente gasto vai crescer, aumentado em meses e anos inteiros, e me perseguir em meu túmulo. Neste ano, cada obstáculo imaginável foi colocado em meu caminho, mas lentamente e tediosamente eu estou dominando todos eles. Agora eu devo fazer algo - vou trabalhar até que eu faça algo.”

A fala de Evelyn demonstra como sua dedicação e devoção voltam-se à pintura. Talvez essa conexão quase divina fosse o que a aproximava tanto da arte, considerando que a artista era muito espiritualizada, algo assombrosamente perceptível quando observamos suas obras, pois conseguimos sentir a intenção mística em cada pincelada.

Storm spirits, spirits of rain and thunderclouds, 1900

As motivações da artista na pintura figurativa eram o espiritual, temas mitológicos e seres fantásticos (como sereias) e temas alegóricos, combinando os elementos pré-rafaelitas (e a oposição ao padrão acadêmico) com os simbolistas e sua estética única. Suas obras eram permeadas de metáforas, como a transformação, a vida e a morte, todas envolvidas no espectro feminino representado, dando às suas criações também um contexto feminista. Nesse sentido, além de quebrar paradigmas sociais e convencionais do papel da mulher, Evelyn se tornou uma das mulheres a passar mensagens feministas em suas obras e também em sua vida. A artista rejeitava a guerra (se manifestando inclusive contra a Primeira Guerra Mundial), o luxo das altas classes, como a que fora criada, e assinou a Declaração em Favor do Sufrágio Feminino em 1889.

No ano de 1877, Evelyn foi convidada para participar de uma exibição na Grosvenor Gallery, na qual Marie Stillman também estava presente. Evelyn participou de outras duas exibições: uma na Alemanha, em 1902, e outra em Londres, em 1906, apresentando sua primeira exposição solo. Já em 1887, casou-se com o ceramista William de Morgan (cujo sobrenome aderiu). 

O místico nas pinturas de Evelyn de Morgan 


Em relação às obras, temos o forte impacto do misticismo, especialmente do contraste da luz e escuridão. Também temos uma atmosfera onírica, às vezes obscura, de forma que remete ao Romantismo ou ao contato entre o ser humano e a entidade divina, comum no Renascimento. 

Sua obra mais simbólica nesse aspecto é Angel of Death, na qual uma jovem vestindo uma túnica vermelha, azul e verde (que visualmente remete às cores relativas aos elementos fogo, água e terra), sentada numa rocha, é gentilmente tocada em seu peito por uma figura de cabelos grisalhos e expressão serena, trajando uma túnica com capuz em tom terroso e com asas cinzentas (elemento ar) erguendo-se de suas costas curvadas. Em sua mão oposta, longe da visão da jovem, a figura segura uma foice comprida. A jovem tem uma expressão solene e, conforme percebemos pela forma que suas mãos agarram a túnica amarronzada, apaixonada. Ambas as figuras estão com o rosto muito próximo uma da outra, como se estivessem num momento íntimo. Assim, percebemos que os rostos são parecidos, como se uma versão anciã da jovem a viesse acolher, lembrando-a da efemeridade da vida, memento mori (lembrete de que ela um dia irá morrer).

Angel of Death, 1881

O cenário é pacífico e em perspectiva, com árvores, montanhas e casas ao fundo e flores silvestres à frente das personagens. Os detalhes e as posições das personagens são os grandes geradores de impacto da obra, bem representativa no sentido alegórico, pois sabemos que a figura que traja capuz tem asas de anjo e carrega consigo uma foice é vista como uma metáfora da morte na cultura ocidental.

A obra carrega um simbolismo interessante para o movimento Gótico Contemporâneo, com a figura da morte solene, misteriosa e atraente como o destino que todos terão de enfrentar, cedo ou tarde. Não obstante, por ser uma obra datada já em seu momento de criação, torna-se mais valiosa ainda, pois o movimento gótico faz significativas apologias ao passado dos tempos místicos, misteriosos e ocultos. Essa datação histórica é evidente nas túnicas que remetem a tempos mais antigos, em que o misticismo era marcante e o contraste jovem-ancião era visto como reflexo do ciclo da vida, com a transmissão de sabedoria dos anciões, seres elevados, oráculos e espíritos antigos aos jovens adultos. O adorno geral da pintura remete à uma cena sepulcral, daquelas imagens que facilmente poderiam ser encontradas esculpidas em pedra em qualquer cemitério.

A arte mágica de Evelyn de Morgan evoca diversas emoções, difíceis de serem explicadas, mas facilmente sentidas. Ao vermos suas obras, entendemos o motivo de a pintura ser sua maior paixão, percebemos em na artista uma criadora de universos estonteantes, numa dominação de cores e pinceladas de forma estonteante. Infelizmente Evelyn é mais uma das várias mulheres cuja produção é pouco explorada e levada a público, por isso é essencial a todos que admiram pintura e artes visuais num geral pesquisarem mais sobre os artistas que não encontram em museus e grandes galerias de arte, e se questionarem do porquê dessas pessoas não serem expostas como os denominados “grandes mestres da arte” que dispensam apresentações.

Referências 




Arte em destaque: Mia Sodré (baseada na pintura "Clytie", de Evelyn de Morgan) 

Comentários

  1. Mais um ótimo texto! Obrigada por me apresentar a Evelyn, Malu! É incrível como as mulheres são esnobadas, tanto pelas galerias e museus, como por historiadores, como a própria Artemisia foi. Adorei saber que os sujeitos protagonistas das obras da artista são também mulheres! E amei que em "Angel of Death" as cores da túnica são idênticas às usadas em sujeitos divinos e religiosos durante o renascimento e barroco, como em roupas de representações da Virgem Maria. Não só pelo simbolismo, mas porquê não era um pigmento lá muito barato, né! Achei genial ela utilizar essa gama de cores numa representação feminina que me parece longe de ser santa! A gente ama uma afronta!!! E o cuidado de representar o anjo com traços andróginos é TUDO pra mim. Muito bom!

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