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Flores Para Algernon: todo mundo merece flores


Publicado inicialmente em forma de conto, em 1959, e em romance somente em 1966, por Daniel Keyes, Flores Para Algernon é vencedor do prêmio Hugo pela primeira publicação e do prêmio Nebula pela segunda, tendo sucesso entre a crítica e o público. A obra possui uma adaptação para a Broadway — a peça Charlie and Algernon, de 1978, e uma para o cinema: o filme Charly pode ser encontrado no YouTube, mas é recomendável assistir após a leitura do livro. Lançado em 1968, o longa rendeu ao ator Cliff Robertson o Oscar de Melhor Ator.

Daniel Keyes teve a primeira inspiração quando escrevia roteiros para Stan Lee, mas resolveu guardar a ideia para tentar realizar seu sonho de escrever um livro. O autor também trabalhou como comerciante marinho, editor, professor de ensino médio e professor universitário, sendo condecorado como Professor Emérito em 2000 pela Universidade de Ohio.

De um de seus vários trabalhos, lecionando inglês em uma turma com jovens de baixo Q.I., veio o segundo incentivo para a sua história: um estudante o questionou se poderia se tornar inteligente, caso se esforçasse bastante. A comoção com essa pergunta fez com que Keyes também quisesse nos fazer senti-la através de Charlie Gordon, em Flores Para Algernon. O livro conta a história desse personagem, que possui Q.I. 70, e sempre quis ser inteligente:

“Se você é intelijente você podi ter muitos amigos pra conversar e você nunca fica solitário sosinho o tempo todo.” — Charlie Gordon.

O protagonista tem 33 anos e trabalha na padaria de um amigo de seu pai. A motivação para aprender faz com que Charlie se destaque no Instituto Beekman para Adultos Retardados, onde estuda. Assim, ele é indicado pela professora Kinnian para fazer parte do experimento universitário que visa reverter o retardo mental das pessoas acometidas por essa doença.

A história é escrita em relatórios, quase como um diário. Ele vai narrando desde antes da cirurgia, a forma como se sente, suas recordações e o que tem acontecido em sua vida, como orientado pelo Doutor Strauss, um dos envolvidos com o experimento. Este último acaba tomando um lugar importante no enredo, conforme as mudanças vão ocorrendo na vida de Charlie.

“Quando mais inteligente você se tornar, mais problemas você terá, Charlie. Seu crescimento intelectual vai ultrapassar seu crescimento emocional.” — Doutor Strauss.

Através das palavras de Charlie, no começo, o leitor consegue notar uma certa inocência em sua linha de pensamento. Ele quer ter amigos, quer fazer parte de um grupo — e quem não quer? Coincidentemente à sua melhora na escrita, também vai melhorando sua memória. Além de guardar informações, o protagonista passa a conseguir lembrar de coisas que aconteceram no passado em sua vida. Assim, ele começa a entender um pouco de si, na medida em que começa a ter mais dúvidas que antes.

O que Flores Para Algernon tem de sensível, tem também de questionamentos existenciais e muitas leituras da teoria psicanalítica de Freud. Em alguns momentos a obra é bem específica e cita as contradições entre consciente e inconsciente. Isso pode ser percebido na forma como Charlie é atendido pelo Dr. Strauss, como ele vai entendendo as motivações das coisas que fazia, mas não entendia a razão. A leitura é muito interessante para estudantes e admiradores da Psicologia.

Uma das partes que mais me tocou foi quando Charlie percebeu que algumas pessoas, que ele pensava que eram suas amigas, na verdade não eram. As brincadeiras e as risadas, que antes ele via como a prova de sua amizade, logo são desvendadas pela malícia que ele acaba adquirindo junto com as informações, que já não se perdem mais de sua mente. O mais triste é que o leitor acaba percebendo isso antes dele.

“Eu não me mi lembro como a festa acabou mas eles mi pediram pra ir até a isquina ver se estava chovendo e quando voltei não tinha ninguém. Talvez eles tenham ido mi procurar. Procurei por eles por todos os lados até ficar tarde. Mas mi perdi e mi senti mal por mi perder porque aposto que Algernon Consiguiria subir e descer essas ruas umas mil vezes e não se perder como eu fiz” — Charlie Gordon.

Algernon é o ratinho que passou pelo procedimento cirúrgico antes de Charlie, que acabou dando caminho para que um humano pudesse passar pelo mesmo processo, sendo Charlie o primeiro humano a passar pelo experimento. Em muitos momentos pude me identificar com Charlie. Seu processo de evolução do Q.I. perpassa por algo muito parecido ao que todos nós passamos durante a formação da maturidade: a inocência, a ingenuidade, a desconfiança, o amor, as perguntas, as perguntas sem respostas. Isso acaba modificando nossa visão do mundo ao nosso redor, especialmente sobre quem é "bom" e quem é "ruim", e nossa forma de reagir a tudo isso.

“Estou aprendendo a controlar meu ressentimento, a não ser impaciente, a esperar por coisas. Acho que estou crescendo” — Charlie Gordon.

Em outros momentos, eu me perguntava se não agiria da forma que algumas pessoas começaram a reagir ao personagem. Como a obra é narrada em primeira pessoa, temos a visão de Charlie em primeiro lugar. Ter contato com seus pensamentos diante de alguns acontecimentos, até mesmo envolvendo outras pessoas, fez-me ver como tudo muda dentro do nosso mundinho. Nossa percepção é sempre enviesada por conta das coisas que vivenciamos antes.

A partir da metade do livro, surgem questionamentos sobre o que é uma pessoa. Alguns personagens consideram que Charlie não era uma pessoa antes da cirurgia, pois adotam uma linha capitalista. Segundo os personagens, para ser uma pessoa de verdade, você precisa ser útil, trabalhar e produzir. Charlie ficou frustrado com essa visão.

“... de certa forma, ele foi o resultado de experimentação psicológica moderna. Em vez de uma casca com mente fraca, um peso para a sociedade que deve temer seu comportamento irresponsável, temos agora um homem com dignidade e sensibilidade, pronto para tomar seu lugar como um membro participante da sociedade. Eu gostaria que todos vocês ouvissem algumas palavras de Charlie Gordon...” — Flores Para Algernon.

Charlie pensa diferente. O protagonista acredita que o ser humano, seja em que condição ele esteja, é uma pessoa porque sente, porque possui emoções. Ele critica a falta de afeto na pesquisa e na educação. Charlie sempre teve sentimentos, nenhuma cirurgia poderia lhe dar isso. Ele não precisa de Q.I. para isso, nem ninguém.

“ [...] Aprendi que apenas inteligência não quer dizer porcaria nenhuma. Aqui na sua universidade, inteligência, educação, conhecimento, todas essas coisas viraram ídolos. Mas agora sei que existe algo que todos vocês negligenciaram: inteligência e educação sem doses de afeto humano não valem droga nenhuma” — Charlie Gordon em Flores Para Algernon.

Não cheguei a chorar durante a leitura, mas entendi por que algumas pessoas o fizeram. E não foi porque não chorei que não me encantou, a obra fez mais do que isso: conseguiu me destruir e me refazer várias vezes no meio do caminho, como se nesse processo pudesse tirar algo de mim e colocar novamente com suas palavras.

A vivência de cada um modifica nossa percepção sobre as coisas e, algo bem particular, minha experiência depressiva em 2019, os remédios e a recuperação me fizeram ver a mim mesma em vários momentos da história. Se você não passou por algo assim (e espero que não), tenho certeza de que, mesmo assim, vai ter algo em você pronto para receber essa história também. Emocionante, tocante e reflexivo, é um livro para qualquer pessoa, em qualquer momento da vida. Não é à toa que se tornou um clássico exigido por algumas escolas dos Estados Unidos.


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Texto: Bruna Guedes Pedrosa
Arte: Sofia Lungui

Comentários

  1. Ahhh, esse livro. 🤍

    Tanta coisa pra se discutir nele. Lembro de ter visto uma indicação pra essa leitura na finada série de TV Person of Interest e fiquei pensando porque ninguém trazia esse livro pra cá. Diziam que "era arriscado".

    No fim o livro foi um sucesso, reimpresso e taí como uma das melhores leituras nas listas das pessoas.

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