Midsommar: O Mal Não Espera a Noite, filme sueco do diretor Ari Aster com o produtor Lars Knudsen, lançado em 2019 pelo estúdio A-24, integra aquilo que se tem chamado de terror folk que, segundo o próprio Aster, é um gênero baseado no "medo de indumentárias antigas e superstições, especialmente em contexto de isolamento". Nele, a personagem Dani (Florence Pugh), ainda não recuperada do luto diante da morte dos seus pais e de sua irmã, viaja com seu namorado, Christian (Jack Reynor), e alguns amigos dele para uma comuna na Suécia, local de onde um deles, Pelle (Vilhelm Blomgren), partiu para cursar a universidade. A comuna de Hårga, nos campos da província de Hälsingland, mostra-se um lugar de grande preservação de tradições antigas, funcionando através do autossustento e do seguimento de leis e costumes passados de geração em geração, e a chegada dos estudantes coincide com as festas do Midsommar, que ocorre a cada 90 anos, quando comemora-se o meio do verão, momento em que o período de duração do dia é maior que o da noite, com presença mais intensa da luz solar. São muitas as maneiras de comemorar o momento festivo do verão sueco que assustam os convidados, criados com morais diferentes daqueles que cresceram dentro da comunidade, mas dentre todas elas uma parece ter sido de maior impacto por ser a primeira de uma sucessão de mortes que vão ocorrendo no local: o banquete que leva ao que, para os olhos das sociedades modernas ocidentais, é o suicídio de um casal de idosos.
Um pouco antes de se unirem na mesa, a câmera mostra a visão de Dani, focada em um grupo realizando uma dança parte do ritual, com as palmas das mãos unidas e postas para cima, em movimentos que parecem pegar os raios do sol e em seguida, espalhá-los por seus corpos como em uma benção. Há também um grupo de jovens mulheres recolhendo flores do solo enquanto caminham de costas. Quando todos se reúnem para o banquete, vemos que as mesas estão alinhadas em um formato cruzado, semelhante ao da letra "x", e que todos aguardam em pé, sem realizar nenhum movimento, até que uma criança toca um sino, sinalizando que o casal de idosos pode caminhar em direção ao banquete.
É só então, quando o casal se senta à mesa, que os demais imitam o gesto. Há mais um período de espera, em que ninguém toca no alimento à sua frente, novamente aguardando que os anciãos da comuna o façam. Todo o ritual, desde o início, demonstra muito respeito pela sabedoria dos mais velhos, colocando-os como um espelho para as ações de todos os mais jovens. Pouco tempo depois, o casal novamente se levanta, enquanto entoa um cântico. Ao seu fim, todos se levantam e brindam.
A dupla de idosos, que com 72 anos são vistos como mentores e na fase de inverno de suas vidas, voltam a sentar-se em seus lugares, e homens carregam suas cadeiras, as mais belas da mesa, com adornos que lembram tronos, sendo seguidos como em uma procissão, até a Ättestupa, nome dado a precipícios localizados na Suécia, Noruega e Islândia, sendo colocados em cima dela enquanto todos permanecem na parte de baixo, observando-os com admiração. Uma leitura de seu livro sagrado, o Rubi Radr, se inicia logo em seguida. As palmas das mãos dos mentores são cortadas com um facão, e o sangue, em um ato de fé, é espalhado por runas.
Eles caminham até a ponta da Ättestupa, levantam as mãos e o rosto em direção ao sol, e percebemos que Dani já parece entender o que virá, tendo um começo de crise de pânico, com a respiração acelerada. Em um estado de completa calma, os braços são abertos de um jeito que relembra as asas abertas de um pássaro e, assim como o animal, pode-se dizer que eles alçam voo em direção ao eterno. O choque dos estudantes forasteiros é enorme, e em meio a crises de pânico, inconformados com a complacência de todos diante do ocorrido, eles se desesperam e enxergam o momento como horrendo. No entanto, a empatia da comuna para com aqueles que realizam o ritual é tamanha, que se algo não sai como o previsto e um deles continua vivo após o ato, todos sentem sua agonia mortal e sofrem em conjunto, demonstrando o quanto aquilo os afeta física e emocionalmente, até que em um ato de misericórdia, alguém dê fim ao sofrimento.
Um dos personagens que visita a comuna sai do local enquanto os chama de doentes e pergunta com raiva: "Ficaram aí só olhando?", e a mentora, ainda em idade não adequada para o ritual, mas que o orientou com a leitura das escrituras sagradas, explica que "O que acabaram de presenciar é um costume muito, muito antigo. Os que pularam chegaram ao fim do ciclo de vida em Hårga. Entendam que é uma grande alegria para eles. E quando chegar a minha vez, será uma grande alegria para mim. Enxergamos a vida como um ciclo. A senhora que pulou se chamava Ylva, e o bebê que está para nascer vai herdar o nome dela. Em vez de envelhecer e morrer com dor, medo e vergonha, nós entregamos nossa vida, como um gesto, antes que ela se estrague. Morrer lutando contra o inevitável não traz nada de bom. Isso corrói o espírito".
O choque representado pelas pessoas de fora da comuna se estendeu aos espectadores do filme, sendo o ritual muito comentado após sua exibição. No entanto, a fala da mentora a respeito do porquê da ação, se repensada em um contexto como o do ocidente, onde o envelhecimento é já enxergado e tratado como o fim da vida, e pela maneira como o tornamos, das pequenas ações do dia-a-dia até a falta de políticas públicas e de assistência para os idosos, na pior fase do ciclo humano, nossos costumes para com essa parte da população não parecem assim tão melhores que o ritual praticado em Hårga.
Pouco antes da pandemia da Covid-19 ser vista como um problema de saúde pública também da América Latina, ouvia-se sobre os primeiros casos no continente com informações muito mais voltadas para seus efeitos de acordo com o perfil epidemiológico europeu, que já possuía índices mais altos da doença e estava, aos poucos, analisando quem eram os mais afetados, e de que forma. Nesses primeiros meses de pesquisa nacional, as precauções sanitárias tomadas eram baseadas no que dava certo lá fora, e o discurso que mesmo pouco corroborado pela ciência tomava os ouvidos de todos que se prestavam a o escutar colocava os idosos como principais afetados, sem se dar conta que, apesar de ser um grupo de risco também no Brasil, dado as doenças comumente já pré-existentes nos mais velhos e o organismo que naturalmente, com o envelhecimento, torna-se mais lento na resposta imunológica, o que os tornava a parcela mais afetada da população europeia era o contexto daquele continente, com uma população vivendo cada vez por mais anos e consequentemente, em sua maioria, acima dos sessenta anos.
A partir desses dados, naturalizou-se, no Brasil, classificar a Covid-19 como uma "doença de gente velha". Foi, inclusive, esse pensamento e as ações de descuido da população mais jovem causadas por ele que começou a traçar dados epidemiológicos diferentes para o nosso país. Se o esperado eram apenas pacientes mais velhos, muitos se surpreenderam com as internações de indivíduos jovens e até onde se sabia, saudáveis. Tal naturalização da não importância com a vida dos mais velhos demonstrou, de forma muito clara, a maneira como a cultura ocidental encara o processo de envelhecimento humano: com pouco caso e como um incômodo para aqueles que ainda não estão nele.
A atual pandemia é um bom exemplo para essa discussão, mas infelizmente, não é o único. Nos Estados Unidos da América, em 2019, foi notado que as taxas de suicídio entre pessoas da faixa etária dos 55 aos 84 anos estavam em constante aumento. A Kaiser Health News, de Boston, concluiu que ocorrem pelo menos 364 suicídios por ano entre pessoas que vivem em casas de repouso, centros de convivência e lares para idosos, e são muitas as denúncias de maus tratos dentro de centros com baixa seriedade no serviço que oferecem, além do abandono familiar daqueles que internam seus parentes mais velhos. Um evento que vem sendo chamado de "suicídio racional" também chama atenção nessa faixa etária: idosos doentes, que não querem viver com as consequências do diagnóstico ou que ainda, não possuem dinheiro para arcar com as despesas médicas, muito altas no país em questão, optam pela morte antecipada para evitar o sofrimento futuro. É relevante lembrar, também, que o sistema público-privado de saúde norte americano e seu seguro para idosos não cobrem gastos com casas de repouso.
Apesar de não ser parte do ocidente, é válido, também, relembrar o que disse o Ministro das Finanças do Japão, Taro Aso, em 2013, ao alegar que idosos em estado terminal deveriam "se apressar e morrer" para evitar dar tantos gastos com a saúde pública para o governo. As atuais declarações do presidente brasileiro diante da pandemia e dos grupos de risco, além das falas descabidas de políticos autoritários como o atual presidente norte americano, mostram que esse pensamento não ficou no passado: se enxergamos o envelhecimento como algo ruim e passamos isso adiante, é claro que os que governam também encaram essa população como fonte de problemas, afinal de contas, fora da idade de produção e necessitando de aposentadoria, são vistos como indivíduos que não fazem a economia girar por completo.
É possível, ainda, notar como o envelhecimento é posto de forma temerosa na nossa cultura a partir da negação dos seus efeitos na aparência física, com as diversas cirurgias plásticas e tratamentos estéticos que prometem findar as linhas de expressão. Em seu artigo científico, Cirurgia Plástica e Envelhecimento, a fisioterapeuta Maira Cristina Fistarol Audino, da Universidade de Passo Fundo, ressalta tal fenômeno ao dizer que "A insatisfação corporal em pessoas de meia-idade pode afetar substancialmente as suas vidas, visto que, na cultura ocidental, o corpo velho está associado a algo feio e improdutivo."
Em entrevista a revista GQ, Ari Aster explicou que a cena em questão é baseada no folclore sueco, onde pessoas realizam eventos semelhantes com uma plateia assistindo-os, e que no museu folclórico em Estocolmo é possível encontrar um "porrete", usado por famílias que findavam a vida de um membro mais velho de sua família quando a hora da "passagem" chegasse, como um ato de respeito e misericórdia. O autor do filme ainda disse que "É uma cena muito brutal, mas no final das contas é a escolha [dos mais velhos]. Eles estão assumindo a própria morte com as próprias mãos e sendo apoiados por uma comunidade." [Tradução livre.]
Mesmo que a cena seja mais folclórica que real, e se de fato, em algum momento muito anterior aos dias atuais, tenham existido constantes rituais como o encenado no filme, a fala de Ari Aster na entrevista acima pode conter o ponto principal do que precisa ser entendido no ocidente para mudar a forma como enxergamos e tratamos o processo de envelhecimento dentro da nossa cultura: o apoio como uma comunidade. Envelhecer é mais um dos muitos processos a que somos submetidos involuntariamente, e fazer as pazes com ele, enxergá-lo como um dos vários momentos que temos em vida e a partir disso, escolher saber tratar aqueles que já o alcançaram com respeito e maior diálogo, priorizando ouvir, afinal, o que eles querem e esperam quando alcançam tais idades, sem menosprezá-los e torná-los vítimas de uma condição tão natural, pode trazer benefícios não só a quem no presente já faz parte dessa população, mas também a nós mesmos, que no futuro, desejaremos ter feito algo para continuar vivendo com dignidade, apesar da passagem dos anos.
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