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A travessia da família Bundren

Enquanto Agonizo (As I Lay Dying no original) é um romance de William Faulkner publicado em 1930. Além de ser um clássico da literatura estadunidense, é considerado um dos cem melhores romances em língua inglesa do século XX pelo júri especializado da editora Modern Library – atual Random House. Faulkner produziu uma obra composta por dezenove romances e mais de setenta e cinco contos.

O autor escreveu Enquanto Agonizo em oito semanas, sem mudar uma palavra durante o processo. Antes de escrever o romance, disse a si mesmo: “Eu vou escrever um livro graças ao qual, em caso de necessidade, eu possa me manter ou cair sem eu nunca tocar na tinta de novo”. A única tradução disponível da obra no Brasil está na edição para livros de bolso da editora L&PM.

William Faulkner recriou o sul dos Estados Unidos em toda sua decadência, com todas as implicações socioeconômicas da herança da Guerra de Secessão. O escritor apresenta um quadro vasto da condição humana a partir de uma matéria simples: a vida comum em versão literária, ganhando contornos profundos de conflitos humanos mergulhados na demonstração destes personagens pelo fluxo de consciência. A obra transforma a vida comum sulista estadunidense em um conflito psicológico que revela as entranhas da alma humana ao enfrentar diversas intempéries.

Faulkner manipula com maestria as diversas vozes de diferentes personagens, com contrastes constantes, e nutrindo tudo isso com uma riquíssima capacidade de rememoração que nos conduz na complexidade narrativa do fluxo de consciência até o desenlace do romance. Harold Bloom deu uma boa definição da força desta obra: “De todos os romances americanos do século XX, este é o que tem o começo mais brilhante. [...] O início pressagia a originalidade do livro que mais surpreende de seu autor”.

A família Bundren 

Enquanto Agonizo é um título retirado da Odisseia, de Homero, que começa com o trágico fim da matriarca da família Bundren. No início deste romance já sabemos que ela está moribunda e que irá morrer, e ela pede para ser enterrada em Jefferson, sua terra natal, ao lado de seus parentes. Então, seguimos a peregrinação dos Bundren até Jefferson e todos os conflitos e intempéries que eles enfrentam neste caminho.

A narrativa começa abruptamente num clímax, já com um corte seco, que vai desvelando, em seguida, feridas pretéritas das personagens, com marcações de idiossincrasias de cada uma, e o começo abrupto se resume no seguinte: alguém lamenta que uma mulher desistira de comprar alguns bolos que foram encomendados. E isto poderia ter dado um mísero dinheiro para auxiliar a família Bundren no enterro da mãe – assim tem início a história.

O romance pode ter uma certa aparência de narrativa epistolar, pois cada capítulo revela o monólogo de uma personagem. Entretanto, aparecem relatos isolados e contrastantes, com cada visão particular de uma personagem conflitando e contrariando outras. Cada capítulo leva o nome de uma personagem e carrega uma versão da realidade, e a personalidade de cada um é delineada pelo "outro", pois nenhum deles fala de si mesmo.

Uma vez apresentadas as personagens, o foco se volta ao mote do romance, o caminho para Jefferson para enterrar a mãe. Na sequência, a família Bundren parte, com pouco dinheiro, em uma carroça que caía aos pedaços. Assim, enfrentam percalços e intempéries diversas como pontes caindo, incêndios e cavalos sendo levados pela correnteza. Não temos qualquer ideia de redenção nesse romance. A penúria das personagens revela um mundo embrutecido e sem perspectiva de superação material ou psicológica, com a viagem ou travessia para Jefferson podendo ser livremente associada à nossa travessia enquanto leitores desse livro.

William Faulkner

No romance de Faulkner, também temos a tensão entre o que é pensado e o que é dito. A riqueza narrativa dos pensamentos das personagens contrasta com a pobreza da comunicação entre elas, com a assertiva de Addie de que "palavras são apenas palavras", em que a fala nunca expressa totalmente as ideias e emoções, refletindo esse clima de desconfiança do romance em relação à comunicação verbal. Os diálogos são, em geral, breves, hesitantes, irrelevantes e inconstantes. Ao passo que os monólogos interiores, enriquecidos pela técnica do fluxo de consciência, são o motor do romance, em que versões da realidade se entrechocam e se contradizem.

Enquanto Agonizo é um dos melhores trabalhos literários que empregam a técnica literária do fluxo de consciência com seus parágrafos complexos de extensas orações, com uma clareza de fundo na narrativa. No entanto, isso veio da intensa preparação prévia de anotações que Faulkner fez antes de começar o trabalho, ao contrário da concepção dispersa de outras obras do autor.

O fluxo de consciência na literatura 

William James, filósofo e psicólogo estadunidense, foi quem primeiro teorizou o chamado fluxo de consciência, que definia como o que dava essa característica contínua de nossos pensamentos, sua intercalação imprevisível, que se define, sobretudo, como fluxo, e que teve uma influência intensa na literatura moderna do século XX, com muitos herdeiros pós-modernos no século XXI. Historicamente, James é o responsável pela introdução da expressão "fluxo de pensamento" na psicologia. O teórico usou essa expressão, primeiramente, no capítulo IX de seu livro Princípios de Psicologia, no fim do século XIX.

Na literatura, temos uma associação direta do fluxo de consciência à técnica literária do monólogo interior ou interno, em que a narrativa simula ou imita este fluxo contínuo de pensamentos, refletindo numa forma ou estilo literário de orações extensas e sem pontuação ou mesmo parágrafos. Tal técnica, na literatura, varia em sua aplicação de acordo com o autor, e ainda entre diferentes obras de um mesmo autor ou de vários autores. A narrativa pode tanto aparecer em primeira pessoa, como com uma terceira pessoa onisciente, em que esta pode ter acesso total aos pensamentos do protagonista, por exemplo.

Os principais expoentes desta técnica literária são James Joyce, da Irlanda, Virginia Woolf, da Inglaterra, T. S. Eliot, o poeta e editor, e Faulkner, ambos dos Estados Unidos, e temos um grande monumento à memória de Marcel Proust, autor francês, em seus volumes de Em Busca do Tempo Perdido. No Brasil, podemos citar escritores como Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Temos outros autores conhecidos que herdaram a técnica do fluxo de consciência como Albert Camus, Hermann Hesse, J. D. Salinger, o dramaturgo Samuel Beckett (herdeiro direto de Joyce), William Burroughs e vários outros autores da geração beat, Milan Kundera, Julio Cortázar, e muitos autores do chamado boom latino-americano. No Brasil, podemos citar ainda, depois de Clarice e Rosa, o poeta Paulo Leminski e o romancista Graciliano Ramos.

Portanto, a literatura se apropriou da teoria de William James e criou um tipo de ficção que coloca o psiquismo das personagens em destaque, produzindo uma literatura psicológica que pode ser associada a essa ideia de James, mas também às descobertas sobre o inconsciente na psicanálise freudiana. Na literatura, o fluxo de consciência torna as camadas mais profundas da mente em um tipo de pré-discurso.

Robert Humphrey escreveu um livro intitulado O Fluxo da Consciência, um estudo sobre James Joyce, Virginia Woolf, Dorothy Richardson, William Faulkner, entre outros, no qual delimita com precisão o papel do fluxo de consciência na literatura desses autores. Ele nos diz: “Podemos definir o fluxo de consciência ficcional como um tipo de ficção no qual a ênfase básica está na exploração dos níveis de consciência pré-discursivos, com o propósito, principalmente, de revelar o ser psíquico das personagens”.

Os níveis pré-discursivos aqui tematizados podem ser definidos como algo que antecede o discurso verbal, num mundo mental em que não há censura e controle racional ou lógico. Humphrey demonstra um uso diferente do fluxo de consciência para a literatura, o qual na ficção literária temos a fusão de um caráter psicológico originário, que agora se associa a um caráter epistemológico.

A vivência humana, na literatura do fluxo de consciência, aparece para além de uma atividade puramente mental, mas como testemunho de uma vida espiritual, onde aparecem as faculdades da intuição, da visão, e toda uma carga de histórias das personagens, o que se reflete em seus estados mentais e espirituais e resulta nesse grande edifício da literatura erguido durante o século XX. A técnica transforma o inconsciente em material discursivo e estético, com o uso de diversos recursos verbais, alcançando esse estilo literário o status de um verdadeiro objeto estético.

O fluxo de consciência foi utilizado primeiro por Édouard Dujardin, em 1888, e temos que, ao fim, diferenciar o fluxo de consciência do monólogo interior, que já tinha sido utilizado anteriormente por autores como Fiódor Dostoiévski e Liev Tolstói. Por exemplo, Raskolnikov, do romance Crime e Castigo, de Dostoiévski, tem uma intensa atividade mental e conflitos psíquicos dolorosos.

O autor russo reúne o conhecimento científico de sua época e produz uma personagem psicologicamente complexa e conflitante, que se julga num estado de superioridade moral e intelectual que se encontra subjugada na mediocridade de uma vida comum. Em Dostoiévski, podemos dizer que o fluxo de consciência está em crisálida, num estado embrionário; com Raskolnikov temos mesmo é o monólogo interior.

Alguns autores informam que o fluxo de consciência é também o monólogo interior. Contudo, diversos escritores separam os dois conceitos, em que o monólogo interior é uma camada da mente humana, e o fluxo de consciência vai mais fundo, como uma radicalização do monólogo interior, em que o leitor pode se colocar dentro do puro ato de pensar da personagem, em um fluxo imprevisível de pensamentos.

James Franco e seu filme As I Lay Dying (2013)

Em 2013, o ator e diretor James Franco fez uma adaptação do livro para o cinema, As I Lay Dying (em português traduzido como Último Desejo). O filme reproduz o livro, não se trata de uma adaptação, e se revela problemático em sua intenção e ambição, pois a contemplação dos fluxos de consciência e os contrastes do romance original aparecem na filmagem como objeto de técnicas, como a do split screen, que dificultam a compreensão da trama filmada. Outro ponto a salientar é que James Franco teve de transformar as várias vozes das personagens do livro em uma única voz que narra o filme.

O filme coloca uma narrativa linear, cortando personagens secundários, e o espírito do romance de Faulkner é todo diluído numa tentativa pretensiosa que resulta em algo forçado para narrar a história, colocando os atores como títeres que declamam o texto diante das câmeras. Franco, por fim, reduziu o romance à sua anedota, que é a narrativa da viagem de uma família pobre do Sul dos Estados Unidos para enterrar sua matriarca.



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