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Lima Barreto e um projeto (inacabado) de país


A já infinitamente parafraseada definição de Ítalo Calvino nos diz que os clássicos são as obras que nunca terminam de dizer aquilo a que se propõem, seus conteúdos reverberam e se protraem no tempo. Neste sentido, se por um lado os clássicos são então uma fonte inesgotável de conhecimento e entendimento do nosso mundo, eles são, também, um lembrete infeliz e eterno da repetição humana, e talvez, da nossa capacidade limitada de evolução.

Ao lermos um clássico, impressionantemente sempre nos deparamos com algo bastante atual. São obras que aparentemente ainda nos ensinam muito, e que nos escancaram uma realidade tão presente quanto a retratada em suas páginas, muitas vezes escritas há pelo menos 100 anos. Os erros humanos, visivelmente, não mudam. Assistimos alguns progressos? Sim, mas a grosso modo, somos uma máquina de manutenção de status quo.

Lima Barreto foi um autor que nos denunciou isso quando ainda em 1911 publicou, em formato de folhetim, seu Triste Fim de Policarpo Quaresma, marcando para sempre a história da literatura negra no nosso país. Ainda em vida, buscou integrar a Academia Brasileira de Letras por quatro vezes, porém sem sucesso. Lima nasceu em 1881, uma época em que o Brasil ainda ocupava o vexatório lugar de último país do continente a manter o regime escravocrata em suas terras. A Lei Áurea viria apenas sete anos depois, nos propondo este projeto que ainda está em desenvolvimento: o de garantir plenos direitos à nossa população negra. 

Os pais do autor, pessoas negras libertas, a despeito da proibição legal de escravos e negros, mesmo que livres, de frequentarem às instituições educacionais públicas brasileiras, fundaram uma pequena escola, onde a mãe de Lima foi sua primeira professora. Sendo assim, é central recuperarmos sua figura como referência para a compreensão da experiência dos negros no Brasil no contexto pós-abolicionismo, um verdadeiro relato da trajetória e dos obstáculos impostos a estas pessoas.

Desde o romantismo e, posteriormente, com o naturalismo, se buscava a tal da identidade nacional brasileira que levasse nosso país finalmente à modernidade. Para estes movimentos, isto se daria quando nos livrássemos dos aspectos não civilizatórios brasileiros, ou seja, do nosso passado indígena e africano. O cânone literário — branco, vale ressaltar — tratou de criar no imaginário social representações estereotipadas destas presenças no país, fosse de subserviência ou de animalização. Lima, por outro lado, tinha um plano literário próprio, partindo da vivência da população negra, incluindo-a no projeto da Nova República.

Como intenso crítico da estrutura racial base do processo de modernização brasileiro, o autor muito acidamente problematizava a falta de interesse de incluir os negros e negras no projeto de busca da chamada brasilidade, que ignorava as consequência do pós abolicionismo para os periféricos. A intelectualidade dominante e dirigente, afinal, pouco compreendia nossa diversidade de raças e escritores negros.

Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, temos um protagonista visionário, um patriota, como o próprio texto define de forma irônica. A todo momento nos é sinalizado que a idealização desta identidade nacional pura e unívoca é risível. O projeto romântico de Policarpo para a brasilidade fracassa, e é desacreditado ao longo de toda a obra, sendo repetidamente aniquilado tudo aquilo que é proposto como genuinamente brasileiro.

Ilogicamente, sua biblioteca é composta majoritariamente por autores românticos ou estrangeiros. Isto significa que Policarpo estuda a história de seu país por meio de uma base mítica e construída do ponto de vista do colonizador, sem conseguir, verdadeiramente, acessar as nossas origens. Como produzir algo se partimos sempre do repertório cultural europeu?

Nas hilárias tentativas de Policarpo de transformar o tupi guarani no idioma oficial do Brasil, o autor brinca com a impossibilidade de representarmos toda a nação por meio da língua portuguesa culta. Além da obra ter sido elaborada integralmente na forma informal e cotidiana, Lima emprega a todo momento variações e termos que identificam as personagens social e racialmente, inclusive com o uso do discurso direto, demarcando territórios, memórias e histórias. 

Esta ferramenta, mais do que uma mera ruptura estética com o formalismo ditado pela nossa antiga metrópole, representa a ambição do autor de difundir a influência da cultura africana e indígena no nosso idioma, ao mesmo tempo em que combatia a academia e a literatura linguisticamente rebuscada. Lima buscou sempre a comunicação entre todas as vozes e histórias brasileiras, sem o usualmente adotado referencial europeu como parâmetro de realização e civilidade.

Um aspecto também bastante forte na obra é a convivência das variadas formas de cura. Temos um intercâmbio entre a crença na medicina ocidental institucional e os saberes ancestrais africanos, que atendem igualmente à população, com clientes migrando de um saber para o outro de acordo com suas necessidades. Apesar de o texto destacar a existência da desigualdade social, explicitando que o personagem médico atendia majoritariamente às pessoas ricas, resta claro que nenhuma esfera apaga a outra e que a riqueza está exatamente na tensão social dos repertórios culturais.  

Outra dura crítica à exclusão da população negra recentemente liberta se dá pela questão da improdutividade da terra, bastante forte no enredo da obra. Em uma sociedade que tentava se adaptar ao fim da escravidão, paradoxalmente, se investia preferencialmente na vinda da mão de obra estrangeira, que passou a disputar este novo mercado de trabalho, deslocando os negros ao subúrbio e os estereotipando por meio de discursos meritocratas e culpabilizadores. 

Curiosamente, as personagens, mais de uma vez, só entram em contato com o passado por meio da memória e da oralidade negra, seja nas cantigas para festas, seja nos saberes da mata. Lima festeja todas as formas de conhecimento, ao mesmo tempo em que ironiza a suposta superioridade da erudição. Nas diversas dimensões da rotina, todas as habilidades são igualmente úteis e limitadas.

Lima Barreto, portanto, não acreditava nos projetos de identidade nacional românticas e naturalistas, que desembocavam igualmente no apagamento do nosso passado indígena e negro, por meio de uma suposta miscigenação racial harmônica com o branco colonizador. O autor propôs um caminho alternativo, no qual todas as variáveis coexistiriam, sem se anularem reciprocamente.

Lima Barreto
Em síntese, a ausência de pureza deveria nos levar à aceitação da potência desta multiplicidade como um valor étnico positivo de produção cultural. Encontraríamos a unidade nessa mistura não hierarquizada de todos os repertórios culturais presentes na sociedade, convivendo sem falsas pretensões de igualdade, como prega o mito da democracia racial, mas com respeito a todos estes valores, em um consenso moral e não racial. Caso contrário, nosso destino seria, profeticamente, sucumbir à eterna busca por uma semelhança que não existe.

Literalmente em um "triste fim", a denúncia mais grave e mais atual de Lima é a de que este projeto, pelo qual tão apaixonadamente Policarpo pensava lutar, só é possível por meio do uso da força monopolizada pela elite dirigente. Produzir esta unidade de pertencimento ignorando a pluralidade étnica brasileira é perpetuar a eterna promessa de democracia e igualdade, que quanto mais a humanidade avança, mais se mostra violenta e excludente.

"E era assim que se fazia a vida, a história e o heroísmo: com violência sobre os outros, com opressões e sofrimentos."

Mais presente que nunca, Lima Barreto era um revolucionário invisível, assim como seu personagem, que longe de uma simples caricatura, propunha radicalidade, ou nos termos atuais, uma utopia absurda. Ao ridicularizar esta cultura nacional, conceitos como nação e patriotismo perdem materialidade, afinal se estamos tão descolados do aspecto social, amamos a pátria, mas odiamos aqueles que nela vivem. A definição de nacionalidade formulada na Nova República certamente reverbera suas consequências até os dias de hoje, nos quais ainda tentamos finalizar este projeto inacabado de garantia da plena cidadania às populações indígenas e quilombolas.

Em 1911, há mais de um século, portanto, Lima Barreto, já como desafeto público, denunciava estes mecanismos estruturais de exclusão da negritude, garimpando seu espaço no mercado editorial   que até hoje deixa a desejar quando tratamos de literatura afro-brasileira  —, o que certamente também contribuiu para a estranha alocação de sua obra neste entre lugar que chamamos de pré-modernismo. Apesar de claramente nos brindar com uma nova proposta de produção identitária e, consequentemente, com uma das primeiras manifestações do modernismo brasileiro, Lima é mantido em uma classificação neutralizante e que o reduz às superficialidades repetidas nas aulas do Ensino Médio: alegoria de um nacionalismo ingênuo, primeiros anos da República, crítica às escolas literárias anteriores, ao positivismo, a questão rural e a crítica ao funcionalismo público. 

Triste Fim de Policarpo Quaresma antecipa em 17 anos o projeto posteriormente encarnado nos efetivamente considerados modernistas brasileiros, adotando aqui como marco inicial a publicação de Macunaíma, de Mário de Andrade. Considerando que a Semana de Arte Moderna de 1922 pouco contou com participações negras, o cânone lá formado acabou por repetir os mesmo estereótipos criados no século XIX, tema este antecipado por Lima, inclusive.

A impossibilidade do alinhamento de Lima Barreto com os modernistas paulistas se dá na insistência destes pelo mito da democracia racial e harmônica, silenciando as desigualdades que permaneciam na sociedade, ao mesmo tempo que, convenientemente à elite dominante, afirmavam uma igualdade simbólica, promovendo ao mesmo tempo a exclusão do negro do espaço público. Este imaginário é o que, até hoje, permite e dá credibilidade a discursos meritocratas, em uma manobra dissimulada que mantém o negro na periferia.  Novamente, o povo indígena e africano são apagados da sociedade, do trabalho e da legislação, na medida em que a mestiçagem aparece como meio de promover o equilíbrio da população, fazendo sua tão sonhada ascensão ao mundo civilizado europeu ocidental.

No caminho oposto, Policarpo e Lima nos mostram que tudo é polissêmico e dinâmico, de forma que nada deve ser negado para nos levar à uma hipotética modernização. Como construir uma democracia sem antes ter superado o racismo? Como criar essa identidade nacional, sem superar as estruturas de poder do Brasil colônia? Os grupos dominantes e reguladores eram os mesmos.

"Cada terra tem a sua nobreza; lá, é visconde; aqui, é doutor, bacharel ou dentista."
A história do cânone literário brasileiro é também a história do nosso povo: se primeiro o negro foi apagado da formação desta terra, pois representava a inferioridade civilizatória do país, idealizamos as figuras do indígena e do bom selvagem, nos permitindo contar uma história independente de Portugal, excluindo o negro e o período colonial das origens da nação. Posteriormente, este apagamento foi reformado, forjando a figura do negro como empecilho à modernidade, com um governo que investe da vinda do estrangeiro, minando a cidadania negra e institucionalizando de vez o racismo.

Lima Barreto brilhantemente nos mostrou a contradição e a irracionalidade deste projeto de nação moderna tal qual idealizada pela sociedade dominante, que exclui grande parte de sua população em nome de uma noção precária de pátria, cujo único parâmetro referencial é o europeu. 

Uma operação de troca e não de reprodução ou subtração é o que poderíamos chamar de nação, abraçando a pluralidade racial que construiu este país, sem hierarquização étnica cultural e sem falsas harmonias silenciadoras da violência histórica experimentada pelos povos indígenas e negros brasileiros todos os dias, até hoje. 

Podemos ver, então, que Triste Fim de Policarpo Quaresma, seja negando a possibilidade de um projeto único de nação, seja nos mostrando que apesar de realizável, ele não deve se utilizar da violência para ser concretizado, conclui pelo total fracasso da proposta moderna cultural fundamentada em uma visão etnocêntrica europeia, que nega a nossa multiplicidade racial   esta sim base cultural brasileira. O verdadeiro valor civilizatório é polissêmico e dinâmico, e usa a diferença como potência de relacionamento com a modernidade por meio da experiência diversa.



Texto: Mirella Pistilli
Arte: Tati Ferrari
Mirela Pistili
Advogada de formação, porém leitora de coração. Moradora do centro de São Paulo, há quase 30 anos vive o paradoxo de garimpar todo este caldeirão cultural ofertado pela capital, ao mesmo tempo em que só quer fugir pro sossego do litoral mesmo.

Comentários

  1. Texto muito bem elaborado! Aborda os pontos relevantes da obra e traduz as convicções do autor em relação ao seu público. Uma pena a discriminação sofrida por Lima, claramente sintomática de tudo o que foi reportado nessa resenha.

    Parabéns!

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