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O Iluminado: estigmas de saúde mental no terror


O Iluminado é um dos meus filmes preferidos. Dirigido por Stanley Kubrick, teve sua estreia por aqui em pleno Natal, há 40 anos, em 1980. Baseado no livro homônimo de Stephen King, trata-se de um marco cultural no cinema de horror - ainda que o próprio autor do livro não goste do filme. 

Mas, ainda que O Iluminado figure na minha lista de filmes preferidos, há algo nele que me incomoda. Não é exclusivo dele, contudo: muitas narrativas de terror abusam da mesma fórmula. Para haver uma história de assombração, é preciso haver alguém assombrado. E, embora Jack Torrance (Jack Nicholson) seja assediado pelos espíritos presentes no Overlook, ele já era assombrado por si mesmo. 

Faz parte do gótico personagens com um passado que os atormenta. Algo misterioso, que leva a diversos momentos de desespero e culpa, são temas comuns. E, assim como Doutor Sono, sua continuação, O Iluminado é uma história com elementos góticos. Se o gênero lida com a ambiguidade de personagens que não são simples vítimas, mas também agressores ativos dentro de cenários, e é possível fazer uma leitura repleta de piedade de tais criaturas, também há algo de inquietante nessa escolha. 

Por muito tempo, foi feita a associação entre problemas psicológicos com vulnerabilidade no mundo espiritual. Ser uma pessoa com um psicológico delicado parecia ser, dentro do universo do terror, o equivalente a ser uma grande lâmpada na escuridão, atraindo todo o tipo de insetos. Há diversos relatos históricos de pessoas que sofriam de algum distúrbio, como bipolaridade e esquizofrenia, que foram tratadas com exorcismos e violência por serem habitação do Mal - o que podemos ver em Os Demônios (1971), por exemplo. Se o estigma de lidar com um distúrbio psicológico já é grande, quando o colocamos dessa maneira, como porta de entrada para espíritos, demônios e assombrações, estamos, na verdade, fazendo um grande desserviço e sendo capacitistas. 

Em Midsommar, por exemplo, há todo um arco narrativo baseado no capacitismo, que ali, naquela sociedade fechada, parece ser intencional. Os habitantes do local acreditam que uma pessoa com deficiência é mais propensa a receber iluminação espiritual do que outras. O mesmo diretor, Ari Aster, desenvolveu outro filme inteiramente baseado nessa ideia: Hereditário mostra como pessoas psicologicamente (e fisicamente) diversas podem ser o centro de atividades sobrenaturais. 

É muito difícil olhar para esses filmes de forma positiva quando me deparo com tais escolhas narrativas. Por mais que O Iluminado já tenha 40 anos de existência, e seu protagonista não seja uma pessoa que particularmente desperte afeto, o cerne da história ainda é sobre um homem, passando por muitas dificuldades psicológicas e materiais, que é levado a uma loucura assassina após passar alguns meses em isolamento com sua família num hotel assombrado. Acredito que agora, mais do que nunca, conseguimos entender os efeitos negativos que o isolamento pode ter sobre uma pessoa. Mas essa fragilidade, que transforma homens em monstros, precisa estar associada a questões de saúde mental? Não sei até que ponto isso é bom. 

Não sabemos ao certo qual era o estado da saúde mental de Jack ao adentrar o Overlook. O livro, nesse caso, nos dá mais pistas do que o filme - embora saibamos que ele é alcóolatra e tem tendência a depressão e à violência. Entretanto, fica claro que ele está passando por uma situação difícil e não lida com isso da maneira apropriada. Uma análise do filme, feita sob uma perspectiva psicológica, nos apresenta a seguinte conclusão: "Elementos sobrenaturais são evidentes no caso de Jack, mas ele não sucumbiu ao mal. Jack Torrance desenvolveu esquizofrenia paranoide, e, se houvesse sido tratado, teria vivido uma vida relativamente normal". 

Não sei até onde tal análise está correta, mas é visível que Jack sofre de alguma coisa, e o sobrenatural presente no Hotel Overlook apenas adentra nas brechas deixadas por isso. E, por mais que O Iluminado seja um dos meus filmes preferidos, ver a construção de Jack Torrance sob esse olhar só me deixa triste. O verdadeiro terror é viver num mundo onde problemas psicológicos são tratados como grandes setas para o Mal. Eu gostaria que os filmes de terror não aderissem mais ao tropo da pessoa com problemas psicológicos que ou é vítima ou vilã. 


Texto: Mia Sodré
Imagem de destaque: Sofia Lungui

Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

Comentários

  1. Achei incrível esse ponto de vista. Eu lembro de ter lido o livro e, quanto mais leio Stephen King, mais acho que é mais drama do que terror. Não que eu negue o gênero, mas é que, o que me afeta mais nas leituras, o que fica mais "iluminado" no texto (kkkk desculpa), são os dramas familiares, as violências domésticas. Em tudo: Carrie (que mãe!), It (não lembro o nome dos personagens, mas o drama da moça desde pequena, com o pai e depois com o marido? pra não falar do menino que estudava pássaros...) e todos os contos de As Quatro estações, além de o Iluminado. Acho que peguei essa visão porque Conta comigo (Outono da inocência) pra mim sempre foi um drama, por falar de morte não só de um corpo, mas de amizade, de infância, de um período da vida. E talvez o terror esteja mais nisso do que no sobrenatural, que no caso do SK vejo como uma vestimenta mágica, digamos assim, para temas reais, como se ele desse corpo ao problema que ninguém quer comentar (tipo transformar os medos em coisas engraçadas, na aula das trevas la do Harry Potter da J.K.R., ou o próprio Pennywise ser uma materialização de problemas que a cidade toda fingia não existir); e sim, concordo que temos que parar de estigmatizar a saúde mental. Por causa dessas ideias muitas pessoas criminosas deixam de ser punidas para receber tratamentos sem terem de fato alguma condição (as brechas da lei que os brancos ricos e poderosos adoram adentrar), ou pessoas com reais condições deixam de ser tratadas porque pais religiosos tratam tudo pela fé.

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