últimos artigos

Mary Ventura e o Nono Reino: um conto sombrio de Sylvia Plath

Escrito quando Sylvia Plath tinha vinte anos, Mary Ventura e o Nono Reino é um conto sombrio, repleto de metáforas que conversam com a chegada à vida adulta e a morte. Inédito no Brasil até o ano passado, foi publicado pela Biblioteca Azul em uma edição especial que, embora conte apenas com 48 páginas, dá ao trabalho da autora o merecido destaque. 

Nele, conhecemos Mary, uma jovem - tanto quanto a própria Plath era ao escrevê-lo - que encontra-se ansiosa na estação de trem, insistindo com seus pais que não precisa viajar, que ainda é cedo demais para tal, que pode ficar só mais um pouquinho. Eles não retrocedem, contudo, e ela logo embarca em uma viagem cujo destino ela desconhece, sabendo apenas que descerá no Nono Reino, a estação final. 

O conto começa com diálogos simples, que não parecem muito cativantes. Entretanto, em duas ou três páginas, já é impossível largá-lo. A agitação de Mary e as falas enigmáticas de seus pais nos levam a perceber que há algo de muito errado com aquela viagem. 

"A hora da partida chega para todos. Mais cedo ou mais tarde, todos vão embora."
Mary está atônita, mas tenta manter-se estável e cumprir seu compromisso. No entanto, ela nem ao menos sabe por que precisa fazer tal viagem e está mergulhada em confusão, ainda que mantenha uma postura adulta e responsável. 

Dentro do trem, ela encontra uma mulher que senta-se ao seu lado e começa a conversar. A princípio, não percebemos nada de intrigante naquilo, mas logo torna-se visível o quão significativa é a presença daquela mulher misteriosa ali, ao lado de Mary. Os diálogos ficam intensos e, aos poucos, a protagonista passa a se dar conta de que aquela não é uma viagem ordinária. 

Ninguém volta do Nono Reino. Ninguém pode descer antes. O trem não fará mais paradas e não há nenhum que retorne do lugar para onde ela está indo. Há diversas interpretações para esse conto, sendo aquela que diz Mary Ventura e o Nono Reino tratar-se de uma fábula acerca do início da vida adulta a mais popular. Entretanto, ainda que seja possível encará-la dessa maneira, existem elementos suficientes ali para que o leitor seja levado a pensar que a aventura de Mary é, na verdade, uma metáfora para a morte. 

O trem sem retorno; o nervosismo da mulher de batom vermelho, que tenta não descer, mas é colocada para fora por um trabalhador do trem, que deixa bem claro o quão impossível é escapar de seu destino; as faces pálidas e encovadas dos outros passageiros, vistos por Mary assim que ela consegue sair do trem, ao acionar a saída de emergência; a persistente tentativa da mulher que sentara-se a seu lado, tentando fazer-lhe enxergar que ela não podia cair na apatia, que precisava lutar contra aquela ida sem volta; a existência de duas escapatórias, uma porta com uma luz intensa e uma escadaria sinistra e assustadora, mas que conduziria à liberdade... Todos esses são elementos associados à morte e, ainda mais, à luta para manter-se vivo, para sair do trem que só conduz a um lugar. 

Talvez seja mórbido associar essa metáfora, escrita por uma Sylvia Plath de apenas vinte anos, com a própria luta da autora para manter-se viva. No entanto, é difícil não fazê-lo, já que a primeira tentativa de suicídio de Plath aconteceu justamente pouco menos de um ano depois de ter escrito o conto. É bem verdade que a insistência dos pais da protagonista para embarcar no trem e os diálogos sinistros podem ser interpretados como um pontapé para que a filha abandone a adolescência e adentre a vida adulta. Porém, também é possível que se trate de uma espécie de uma culpabilização que a escritora direcionou aos pais, dizendo, indiretamente, que eles eram os causadores de sua infelicidade, do trágico destino em que embarcou. 

É interessante também observar que a protagonista não consegue descer do trem sozinha. Embora a decisão final tenha de partir dela, ela conta com o apoio da mulher misteriosa durante todo o tempo, que tenta fazer-lhe enxergar qual é o destino a que está indo e que ela ainda pode mudar de ideia. 

Mais do que isso, Mary Ventura e o Nono Reino é um grito de independência, uma declaração de que, não importa o rumo que você está tomando, ainda há uma saída. Basta correr, correr, correr e não olhar para trás, não importa o que aconteça. Ao final, a protagonista está a salvo, numa superfície onde o ar não é denso e existem amigos que podem ampará-la. 



Se interessou pelo livro? Você pode encontrá-lo clicando aqui!

(Participamos do Programa de Associados da Amazon, um serviço de intermediação entre a Amazon e os clientes que remunera a inclusão de links para o site da Amazon e os sites afiliados. Ao comprar pelo nosso link, você não paga nada a mais por isso, mas nós recebemos uma pequena porcentagem que nos ajuda a manter o site.)
Mia Sodré
Mestranda em Estudos Literários pela UFRGS, pesquisando O Morro dos Ventos Uivantes e a recepção dos clássicos da Antiguidade. Escritora, jornalista, editora e analista literária, quando não está lendo escreve sobre clássicos e sobre mulheres na história. Vive em Porto Alegre e faz amizade com todo animal que encontra.

Comentários

  1. Acabei de ler o livro Mary Ventura e o Nono Reino; li-o, não; devorei-o. Que livro brutal, visceral, vira-nos do avesso. É uma leitura espetacular e a sua análise dele foi ótima. Parabéns!

    ResponderExcluir
  2. Sua análise é tão boa quanto a obra sobre Mary Ventura e sua jornada ao fim ou ao começo do fim. Adorei!

    ResponderExcluir

Formulário para página de Contato (não remover)