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O fluxo de consciência joyceano no conto Eveline

O escritor irlandês James Joyce é um dos principais nomes da literatura modernista da segunda década do século XX. Mundialmente conhecido por ser o autor de Ulysses, Joyce tem o fluxo de consciência quase que atrelado ao seu nome. Certamente não foi o primeiro a utilizar-se do método: a descrição de percepções e pensamentos, dotada de um cunho psicológico, introspectivo, em formato de memórias absorvidas em uma mente dúbia, consciente e ao mesmo tempo inconsciente, inquieta, que constantemente produz, produz, pensa, pensa, sem nunca cessar, é uma ferramenta de narrativa literária utilizada desde o século XIX. Tal qual Joyce, Virginia Woolf, também modernista, também adepta do fluxo de consciência, possui sua aclamada Mrs. Dalloway como uma das principais obras do movimento artístico, alinhada a Ulysses. Outros autores igualmente importantes que utilizaram o fluxo de consciência em suas produções foram Guimarães Rosa, William Faulkner, Clarice Lispector, dentre outros. 

“A aflição que sentia lhe provocava náuseas e ela continuava a mover os lábios rezando fervorosamente em silêncio.”

(Dublinenses, James Joyce, na tradução de José Roberto O’Shea)

O conto Eveline, presente no livro Dublinenses, publicado em 1914, é mais um dos 15 contos apresentados na obra que busca retratar uma Dublin em decadência e a vida daqueles que lá vivem. Narrado em cerca de 5 páginas, trata-se da história de Eveline, uma garota que, apesar de não sabermos sua idade exata, podemos julgar ainda bastante jovem, para quem, após a morte de sua mãe, a vida tornara-se um fardo: “Trabalhava pesado para manter a casa em ordem e garantir às duas crianças que haviam ficado sob os seus cuidados a oportunidade de frequentar a escola devidamente alimentadas”. Além disso, Eveline trabalhava em uma loja e tinha de lidar com os abusos frequentes de um pai alcoólatra. Mas desde que conhecera o marinheiro Frank, e que ele lhe fizera promessas de levá-la junto consigo para Buenos Aires, ela passou a sonhar com as possibilidades de explorar uma nova vida em terras desconhecidas, onde ninguém saberia de seu passado. 

De modo que Eveline é uma história sobre essa personagem que lida com conflitos, dúvidas, incertezas e instabilidade, torna-se uma escolha adequada para nós, leitores, a possibilidade que James Joyce nos dá de ler seus pensamentos mais profundos no lugar de apenas suas ações com o subsídio de um narrador em terceira pessoa. Como o centro da história é o que acontece na mente, o uso da técnica de fluxo de consciência torna possível evidenciarmos os sentimentos dúbios da protagonista sobre a sua possibilidade de escapar de seu destino. Tal elemento torna-se perceptível ainda nos momentos iniciais de leitura, quando o autor desloca a estrutura narrativa do exterior da casa para o interior – tanto do lar quanto psicologicamente. 

No entanto, o sonho de deixar tudo para trás começa a tornar-se um pesadelo após meados do texto, quando Eveline lembra das últimas palavras ditas pela sua mãe em seu leito de morte: Derevaun Seraun, uma maldição originária do gálico cujo significado traduz-se por algo como “as escolhas feitas visando o prazer levarão à dor”. E é a partir de então que a história muda também para nós, uma vez que a narrativa torna-se um emaranhado de pensamentos guiados pelo medo e desespero:

“Levantou-se num sobressalto de pavor. Fugir! Precisava fugir! Frank a salvaria. Daria uma vida a ela, talvez, quem sabe, até amor. E ela queria viver. Por que haveria de ser infeliz? Tinha direito à felicidade.”

(Dublinenses, James Joyce, na tradução de José Roberto O’Shea)

Ela afirma repetidamente que Frank a ama, que Frank a salvaria de seu sofrimento futuro, quase que como em uma tentativa de fazer acreditar que essas palavras eram reais, e que, portanto, a ideia poderia ser real. 

Algumas sentenças ao longo da história reafirmam o uso do fluxo de consciência para o leitor como uma ferramenta narrativa para acessar o conflito de Eveline. Elas se dão ao final do conto, quando a personagem está para embarcar na doca de North Wall; primeiro, Joyce escreve: “Sentia o rosto pálido e frio e, num labirinto de aflição, rezou pe­dindo a Deus que lhe guiasse, que lhe apontasse o caminho”, de modo a retratar, através de um narrador onisciente, que seus sentimos estão tão corrompidos pela angústia que a única saída é clamar a Deus.

“As passagens dos dois já estavam compradas. Seria possível voltar atrás depois de tudo o que ele fizera por ela? [...] Um sino repicou em seu coração. [...] Todos os mares do mundo agitavam-se dentro de seu coração.”

(Dublinenses, James Joyce, na tradução de José Roberto O’Shea)

Essas frases finais nos mostram o quão ambivalentes são os pensamentos de Eveline. Ela titubeia sobre sua vida não ser tão melancólica no fim das contas, que talvez a melhor coisa a se fazer seja ficar. Ela também lembra da promessa feita a sua mãe de “preservar o lar unido enquanto pudesse”. Como ela poderia faltar com sua palavra? Como Eveline poderia ter tanta certeza de que sua vida com Frank diferiria de fato das suas obrigações já impostas? 

De modo geral, o estilo de narrativa de Joyce faz com que as dificuldades de seus personagens sejam tangíveis e palpáveis, possibilitando ao leitor uma aproximação com os dilemas mundanos e hesitações diárias. 

Assim como nos demais contos de Dublinenses, em Eveline Joyce toma para si as ideias de nacionalismo e identidade e aplica-as em sua escrita. A Irlanda, ainda colônia da Inglaterra no início do século XX, buscava não apenas alcançar sua independência como almejava construir uma noção plena de identidade nacional não mais vinculada às terras britânicas. Eveline propõe, em seu plano de fuga, escapar das incertezas que permeavam os cidadãos de Dublin, à época “centro da paralisia irlandesa”

Referências

Ana Júlia Neves
Pernambucana nascida em 2003, amante dos clássicos da literatura, de todas as vertentes do rock e do cinema como um todo – pura cultura pop. Estudante de História pela Federal da Paraíba, vivendo sua fase "Rory Gilmore em Yale". Obcecada por um artista diferente a cada semana.

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