“There’s a feeling of dying a little bit, every time I make a record,” she says. “And, this time, I nearly died.”
“Há um sentimento de morrer um pouco, toda vez que gravo um álbum”, ela diz. “E, dessa vez, eu quase morri.”(Florence Welch)
A morte assombrou Florence Welch, vocalista do Florence and the Machine, em seu novo álbum Everybody Scream, lançado, convenientemente, no Dia das Bruxas deste ano. Em algumas das mais pessoais expressões da cantora, as canções desse álbum transcendem a vida e a morte, a perda, o luto, o amor; todos esses sentimentos passam pelas suas músicas, com um toque de literatura e odes às suas inspirações do rock clássico. O misticismo de Welch nunca foi tão forte, tão presente. A cantora sempre se apresentou como um ser quase etéreo, ao mesmo tempo que afirma ser uma pessoa “bem pé no chão”, em entrevista ao The Guardian. Apesar de ser humana como todos nós, Florence conseguiu, metaforicamente, é claro, ser trazida de volta à vida. Em seu álbum anterior, Dance Fever, de 2022, na música Choreomania, ela expressa: "You said that rock and roll is dead/ But is that just because it has not been resurrected in your image?/ Like if Jesus came back, but in a beautiful dress”. Na entrevista, ela cita a ironia de ter algumas de suas músicas como proféticas. Em 2023, a cantora teve uma gravidez ectópica que acarretou um aborto. A operação médica que teve de fazer lhe salvou a vida. A ressureição de Welch veio com um preço e rendeu um dos temas mais centrais do novo álbum. Para além das experiências pessoais, Welch expressou com força e clareza outros temas e inspirações que a levaram à escrita de suas músicas. Misturando os estilos de álbuns anteriores, Everybody Scream parece a culminação de anos de abstração, sentimentos, experiências e também leituras.
Ao longo dos meses que precederam o lançamento, Florence deu dicas através de postagens no Instagram do que lhe parecia mais inspirador. A cantora e compositora não é muito ligada às redes sociais, então toda nova postagem era uma série de enigmas para o que estava lhe servindo de inspiração e quais seriam os temas de suas músicas. Livros de autoras como Sylvia Plath, Mary Shelley e referências a Buffy, The Vampire Slayer, O Bebê de Rosemary e personalidades clássicas da cultura pop como Bob Dylan entregaram alguns dos temas que veríamos em Everybody Scream.
Ressurreição: Plath, Frost e a Morte
Uma das inspirações mais interessantes, e não muito notáveis, a menos que se preste atenção, são as alusões à poesia de Sylvia Plath, principalmente a Lady Lazarus, possivelmente seu poema mais conhecido. A imagética de Plath é de um eu lírico que é trazido de volta à vida por meio de espetáculo e com uma capacidade de morrer e de ser ressuscitada como uma arte que ela nasceu para dominar. Em músicas como One of the Greats, Kraken e You Can Have it All, o espelho reflete Lady Lazarus.
“As I fix you in the gaze of my one unblinking eyeDo I terrify?”(Kraken – Florence and the Machine)
“Peel off the napkinO my enemy.Do I terrify?—The nose, the eye pits, the full set of teeth?”(Lady Lazarus – Sylvia Plath)
Em uma das postagens, Florence aparece com o The Bell Jar, romance traduzido como A redoma de vidro, de Sylvia Plath. A história acompanha uma protagonista espiralando em sua própria mente e nas noções de que teria de tomar decisões sobre sua vida. A metáfora da figueira é uma das mais conhecidas na literatura de Plath, na qual ela deve escolher qual dos figos colher para saciar sua fome, cada um representando uma vida que ela poderia ter: uma mulher de sucesso em sua carreira, casar e ter filhos, ser uma grande artista... Florence foi confrontada com essa decisão e quando pareceu decidir tomar um caminho diferente daquele em que estava, não o pôde vivenciar.
“Did I get it right? Do I win the prize?Do you regret bringing me back to life?Arms outstretched, back from the deadStreetlights bursting overhead[...]I was only beautiful under the lights, only powerful thereBurned out at thirty-sixWhy did you dig me up for this?”(One of the Greats – Florence and the Machine)
“I am only thirty.And like the cat I have nine times to die.[...]DyingIs an art, like everything else.I do it exceptionally well.[...]It’s the theatricalComeback in broad dayTo the same place, the same face, the same bruteAmused shout:‘A miracle!’That knocks me out.”(Lady Lazarus – Sylvia Plath)
“A piece of flesh, a million poundsAm I a woman now?”(You Can Have it All – Florence and the Machine)
"Nevertheless, I am the same, identical woman.[...]Ash, ash—You poke and stir.Flesh, bone, there is nothing there—"(Lady Lazarus – Sylvia Plath)
Mas não é apenas a poesia de Plath a ser referenciada no álbum. Em Witch Dance, faixa três, Florence convida a morte para sua cama, mas não como forma de aceitá-la para si mesma. Em um trecho, remete ao poema Stopping by Wood in a Snowy Evening, de Robert Frost, um poema que traz muitas interpretações ao falar sobre um momento em que o eu lírico se coloca perante a morte, mas percebe que essa talvez não seja sua hora.
“A stranger came to my doorAnd I welcomed him inMy feet are bleedingBut I cannot stop, I have many, many milesYet to cross”(Witch Dance – Florence and the Machine)
“The woods are lovely, dark and deep,But I have promises to keep,And miles to go before I sleep,And miles to go before I sleep.”(Robert Frost)
Florence encontra com a possibilidade da morte, ou, também, com o fim de sua carreira como cantora e compositora. Mas decide que não é sua hora. Ela ainda tem muito a caminhar.
O (terceiro) olho que olha a si mesmo: referência a álbuns anteriores
A magia da autorreferência também aparece. Florence cresceu como musicista durante sua carreira e sua evolução tem se mostrado através do diálogo de um álbum com outro, de uma música com outra. Dez anos atrás, em 2015, o How Big How Blue How Beautiful (o álbum favorito da vida desta que vos escreve) descreve a catarse e a odisseia de Florence através de sua própria consciência, começando um processo que, pode-se argumentar, culminou no Everybody Scream. Florence buscou em Third Eye, do HBHBHB, uma saída para o destino que parecia lhe imposto, procurando ver uma beleza naquilo que a cercava e deixando o luto de lado.
“(I'm the same, I'm the same)(I'm trying to change)That original lifeline”(Third Eye – Florence and the Machine)
“Am I so different? Have I changed?I do not recognise my face”(Sympathy Magic – Florence and the Machine)
“Will you see me through the pain?Have you changed? Well, so have I”(Kraken – Florence and the Machine)
Catarse e ocultismo: todos gritem!!
Os livros de ocultismo, esoterismo e literatura gótica a seguiram pelos caminhos mágicos de Everybody Scream. Finalmente, os estudos de medievalismo e renascentismo que a circundaram por toda a vida, por ser o tema que sua mãe, professora da Universidade de Bristol, ensina, chegaram em total acordo com a proposta de Welch para esse álbum. Ela utilizou-se de referências ao folclore britânico em Drink Deep, descrevendo um encontro com seres que, pela descrição, seriam fadas. Nos mitos saxões e irlandeses, os seres da floresta dariam de comer aos visitantes fazendo com que assim eles ficassem presos ali, com eles, pela eternidade. Porém, Florence percebe estar bebendo de si mesma no decorrer da música, consumindo a si mesma, como uma serpente que devora a si mesma, o ouroboros. Talvez, ao encontrar o povo escondido da floresta, ela tenha encontrado a si mesma, chegando ao fim de um ciclo.
Florence vivencia uma experiência mística de êxtase e catarse através de sua música. Vê sua própria fragilidade, mas também sua força. Empurra seu luto para fora pelo grito e pede a todos que a acompanhem. Everybody Scream é uma magia coletiva, é o reconhecer-se de Florence como quem ela se tornou (ou, melhor, o reconhecimento de quem sempre foi): mulher, artista, bruxa.
Em mais uma dica em postagem no Instagram, Florence colocou uma página do livro Lolly Willowes, de Sylvia Townsend Warner, um livro que merece muito mais atenção do que recebe. A narrativa fantástica de Townsend nos coloca na perspectiva de Laura “Lolly” Willowes, uma mulher que não tem interesse em casamento e cuida de seus familiares. Um dia, ela se torna uma bruxa através do selo de um pacto com o Diabo, que aparece ele mesmo para ela. Witch Dance é claramente uma ode a esse livro (além de ser, de certa forma, uma referência ao próprio Dance Fever de Florence). Tendo isso considerado, a leitura do livro e a atenção à música são fortemente encorajadas.
Florence, como dito, sempre se mostrou como muito aberta ao misticismo, mas nesse álbum, depois que seu interesse por magia e folclore cresceu, se consolidou sua feitiçaria. Músicas como Perfume and Milk, Drink Deep e Sympathy Magic são claramente invocações e orações de magia. The Old Religion fincou a pedra que marca Florence se voltando para as raízes das tradições de sua natal Bretanha.
Robert, Patricia, Florence
Não se pode deixar de considerar o louvor às figuras clássicas da música que acompanharam Florence em toda sua vida. Em One of The Greats, a compositora encarna Bob Dylan, grande exponencial do rock clássico dos anos 1960-1980, e faz um tipo de mistura com a figura de Patti Smith, a quem ela também admira muito, tendo escrito Patricia do álbum High as Hope (2018) em sua homenagem, como sua estrela guia.
As demais referências indiretas do álbum tangenciam para a série Buffy, The Vampire Slayer, em que (possível spoiler) a personagem principal é ressuscitada na sexta temporada. “Why did you dig me up for this?” em One of the Greats é uma das principais pontes de tal referência. Também O Bebê de Rosemary aparece nas entrelinhas, com o tema da gravidez. Sobre esse, realmente não falaremos muito, pois é também recomendado que vejam o filme.
Além de todas as maravilhosas referências, não se pode deixar de citar que algumas de suas músicas foram escritas com outra cantora poderosa e influente: Mitski Miyawaki, também muito recomendada por esta que vos escreve.
A magia e o mistério
A beleza de Everybody Scream vai para além de suas referências literárias, musicais, pessoais, dentre outras. É um álbum que marca uma cantora que já está na indústria há mais de 20 anos e que parece atingir seu pico de maturidade artística e intelectual a cada novo álbum, sempre trazendo mais surpresas, mais nuances, mais magia e nos urgindo a pensar sobre nós mesmos em uma perspectiva tão pessoal. Um álbum que celebra o eu lírico com todo o louvor merecido e proporciona uma nova trilha sonora para as noites de magia, feitiços e gritos. Florence diz que a medicina moderna a salvou, mas também sua própria magia.
“The witchcraft, the medicine, the spells and the injectionsThe harvest, the needle protects me from evilThe magic and the misery, madness and the mysteryOh, what has it done to me?Everybody scream!”(Everybody Scream – Florence and the Machine)
Referências
- Entrevista de Florence Welch ao The Guardian
- Poems (Sylvia Plath)
- Poems (Robert Frost)
- The Bell Jar (Sylvia Plath)
- Lolly Willowes (Sylvia Townsend Warner)

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