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O estranhamento do eu: metamorfose e não pertencimento em Kafka e Fisher


Durante a infância, me recordo de ler algumas vezes a versão em quadrinhos da obra de Kafka, A metamorfose, adaptada e ilustrada por Peter Kuper; o contato direto com o texto integral da novela só viria anos mais tarde e, em todas essas ocasiões, os exemplares me chegaram às mãos graças às bibliotecas de escolas públicas em que estudei. Naquela época, o gosto pelo estilo das ilustrações da HQ e o temor de acordar sob a forma de um inseto (risos) se definiam como as características da obra que me saltavam aos olhos e que consigo, neste momento, resgatar da memória. Embora não seja possível reconstruir uma experiência em sua totalidade após vivenciá-la - podemos nos valer de palavras para descrevê-la, mas o próprio condicionamento do momento vivido ao significado que as palavras conseguem alcançar limita a plenitude do sentido atrelado à ocasião -, ainda nos resta uma espécie de reconstrução da situação, que guarda, porém, certa distância do real, fornecendo apenas algumas pistas das circunstâncias experienciadas. E é, a princípio, motivada por uma releitura recente do quadrinho e da novela que escrevo este texto.

Uma outra releitura - retorno a ela sempre que necessário - também guiou minhas mãos durante a escrita deste texto. Não prestar para nada (Good for nothing), artigo de Mark Fisher publicado no Brasil como apêndice de Realismo capitalista, também presente na coletânea K-Punk e originalmente escrito para The occupied times, trata, de forma aberta e sincera, sobre a depressão de seu autor. O filósofo e crítico cultural demonstra a angústia mental não enquanto aspecto limitado ao domínio individual: aponta, também, causas para os sentimentos de não pertencimento e de inferioridade nas formas de poder social - classe, gênero, raça. Escrevo este texto na intenção de relacionar pontos comuns entre novela e artigo que abordem circunstâncias externas ao indivíduo percebidas como aptas a incutir sofrimento mental, visitando passagens de ambos os textos. Este escrito também surge a partir de um impulso, da emergência que cobrou o registro de ideias impalpáveis sob a forma de caracteres materializados graficamente num editor de texto, na tentativa de dar-lhes forma antes que o arrebatamento provocado pelas releituras se vá.

Ungeziefer

No QC, temos o texto Kafka: A Metamorfose e a agonia do ser, enquadrando questões que aproximam Gregor Samsa e Kafka - e, nesse sentido, As metamorfoses de Franz Kafka, posfácio de uma das edições brasileiras do livro, ainda aponta uma analogia entre os sobrenomes do personagem e do escritor: as sílabas “sa” e “ka” se repetem, respectivamente, à esquerda e à direita das letras “m” e “f”.  Embora aqui nos concentremos em tratar das questões apresentadas a partir dos limites delimitados pela novela, lembramos da interpretação que coloca A metamorfose enquanto narrativa que relaciona a agonia comum a ambos - aquele posicionado na ficção e aquele que a concebeu.

Naquela manhã, durante o despertar, não conseguimos tomar conhecimento sobre a causa da transformação de Gregor, embora seja possível vislumbrar algumas possibilidades ao tomá-la num sentido metafórico ao longo da leitura. Também não descobrimos qual é a natureza do inseto monstruoso - e mesmo as palavras utilizadas para designá-lo são passíveis de discussão. Raquel Abi-Sâmara defende o uso de bicho em vez de inseto, dada a particularidade do termo Ungeziefer, utilizado para descrever Samsa logo nas primeiras linhas da novela e cujo emprego encontra-se envolvido na intenção de exprimir uma imprecisão sobre o que o personagem se tornou:

A palavra Ungeziefer, no uso cotidiano e atual do idioma alemão, e conforme apresenta a maioria dos dicionários de alemão, significa um pequeno e indesejável animal, que pode transmitir doenças e/ou pode despertar nojo e repugnância. 

Origina-se do alto alemão médio ungezibere e ungezibele, e, associado à palavra zebar, do alto alemão antigo, que denota animais sacrificiais, contém a ideia de “‘animal impuro’ [unreines Tier], um animal talvez não adequado para o sacrifício”. O prefixo “un” da palavra “Ungeziefer” contém a ideia de oposição ou de negação da palavra arcaica e em desuso, “Geziefer”, que significa vítima (Opfer), e, por extensão, vítima sacrificial, ou animal digno de ser oferecido a divindades em ritos e festividades religiosas.

A ideia de asco inerente à palavra Ungeziefer, utilizada ao longo dos dois primeiros capítulos para aludir a Gregor, talvez não seja plenamente capturada pelo termo “inseto”. Também é válido interpretar o vocábulo inseto como apto a invocar imagens mentais usualmente atribuídas a tal grupo de invertebrados, alcançando certa distanciamento da ideia inicial de não delimitação da forma de Samsa. Essa indeterminação do Gregor transformado é ressaltada em carta enviada por Kafka ao editor Kurt Wolff, quando o autor, ao descobrir que haveria uma ilustração na capa do livro, rejeita a possibilidade de um desenho de Samsa metamorfoseado - embora se refira ao personagem como inseto na carta:

Ocorreu-me o seguinte, uma vez que Starke vai certamente fazer a ilustração, pode ser que ele queira desenhar o inseto de fato. Isso não, por favor, isso não! Não quero restringir seu [de Ottomar Starke, o ilustrador] poder de atuação, mas apenas solicitar isso, a partir do meu conhecimento naturalmente maior da história. O inseto mesmo não deve ser desenhado. Mas ele não pode ser mostrado nem mesmo de longe.
(na tradução de Raquel Abi-Sâmara)

A própria ideia de imprecisão da forma de Gregor trazida intencionalmente pela redação da narrativa, além de demandar a participação ativa do leitor na construção de significados pela necessidade de se colocar a imaginação em jogo para formular uma possível feição de Samsa, pode atuar como elemento que colabora com a desumanização estendida ao personagem não apenas por sua aparência, mas pelo tratamento dispensado a ele por seus familiares a partir daquela manhã - especialmente quando passa a ser referido como isso, e não mais ele. Sua fala não é mais compreendida e o que ele anseia comunicar se perde, restando recolher suas questões somente a si. Também não há muito esforço das pessoas que orbitam sua vida para compreender a condição recaída sobre ele; há repulsa e um abandono gradativo de Gregor às quatro paredes de seu quarto.

Nenhum pedido de Gregor adiantou, nenhum pedido também foi entendido; por mais humilde que inclinasse a cabeça, com tanto mais força o pai batia os pés (p. 245).

As realizações futuras planejadas por Gregor - a demissão de um ambiente de trabalho nada saudável após a quitação da dívida dos pais ou o custeio de Grete no conservatório - são atropeladas pela mudança que toma o caixeiro-viajante de assombro. Transformado, ele já não se encaixa, não presta para nada. A convicção de não servir é apresentada por Fisher, a partir de sua vivência pessoal, como resultado de um pensamento que leva o sujeito a se visualizar como o tipo de pessoa que não é capaz de desempenhar papéis destinados a grupos sociais dominantes. Os pensamentos de Gregor permitem fazer aproximações entre seu mal-estar e as necessidades demandadas pela posição que ocupa na estrutura social, embora não aparentem indicar uma autopercepção de incapacidade dentro da ocupação de caixeiro-viajante - mesmo porque a profissão não parece distante da classe social ocupada pelo protagonista e por seus familiares. Porém, é quando o Gregor transformado não mais consegue produzir, não mais contribui financeiramente para seu lar, que sua leitura como alguém inutilizado vem à tona. Sua validação é também medida conforme seu corpo e sua vitalidade são empregados como ferramentas para geração de renda. Mesmo após a metamorfose, as primeiras questões trazidas por ele são apreensões relacionadas a seu ofício, antes mesmo de enxergar a totalidade de sua nova condição:

Me é imposta essa canseira de viajar, a preocupação com a troca de itens, as refeições irregulares e ruins, um convívio humano que muda sempre, jamais perdura, nunca se torna caloroso (p. 228). 

As questões em torno das subjetividades que caracterizam as relações humanas mencionadas acima já não tinham mais espaço no convívio de Gregor com as demais pessoas devido ao ritmo imposto pelo emprego - e as circunstâncias só pioraram posteriormente com a transformação (ou foi ela que não só deu ainda mais fôlego à situação, mas converteu o desconforto em algo tátil, manifestado pela aparência de Samsa? Antes da metamorfose, o pesar trazido pelo emprego recaía diretamente sobre o personagem; a ele cabia diretamente o impacto. É somente após a mudança de aparência que a família vem a sentir uma parcela de incômodo, não exatamente por uma inquietação com o bem-estar de Gregor, mas pela impossibilidade de manter a vida - confortável para eles e já desassossegada para Samsa - como ela usualmente corria). A princípio, há certa preocupação com Gregor no que diz respeito às atividades que ele não mais consegue realizar - preparo de refeições, limpeza do ambiente - desempenhadas especialmente por Grete. Isso não dura muito e essa atenção passa a não se fazer mais presente. Em vez disso, o abandono dele à própria sorte ganha espaço, enquanto a despersonalização do personagem se expande conforme sua aparência humana se vai e marcas de sua identidade no ambiente - os pertences e a mobília - são retirados do cômodo sob a justificativa de conferir mais espaço para a locomoção de Gregor nas paredes e no teto. Mais tarde, quando o quarto termina por se tornar uma espécie de depósito, comportando móveis, ferramentas e demais itens sem uso pelos residentes da casa, Samsa ainda está lá, sendo evitado, junto a objetos enjeitados.

Gregor empurrava as tralhas e as colocava em movimento, a princípio forçosamente, pois não havia mais espaço livre para rastejar, mas depois também com prazer cada vez maior, mesmo que, após essas perambulações, ele ficasse imóvel por horas, morto de cansaço e de tristeza.

A partir do enquadramento relacionado a grupos sociais trazido por Fisher, enxergando as formas de poder e as impressões deixadas por elas sobre os indivíduos, compreendemos, como uma das motivações para a ideia de não servir depositada sobre Samsa, a crença que ocorre a partir da associação da importância do sujeito ao seu fazer profissional e à renda obtida a partir dele; nesse sentido, quando esses dois aspectos se ausentam, o indivíduo não possuiria mais valia. Nos valemos de tais características das obras para refletirmos sobre o emprego enquanto esfera também apta a causar sofrimento mental. No caso de Gregor, chama ainda atenção o papel da família como a parte que reforça essa convicção e coloca o personagem dentro desse cenário - algo esperado quando tomamos conhecimento de textos de Kafka como Carta ao Pai. A metamorfose ocorreria se os familiares pensassem diferente? O ofício é a parte principal das propriedades que tornam um sujeito humano?

Era ele um animal, já que a música o comovia tanto? (p. 280)

Fisher traz, ainda, mais uma ideia que podemos encontrar ao longo dos últimos dias de Gregor: a responsabilização.

"Gregor passava os dias e as noites completamente sem sono"

Assim como acontece com o não servir, Fisher posiciona a responsabilização dentro do contexto social, explicando que "os indivíduos culparão a si mesmos antes de culparem as estruturas sociais; estruturas que, em todo caso, foram induzidos a acreditar que não existem" (p. 140). No enquadramento proposto por A Metamorfose, uma das situações nas quais a figura da responsabilização se manifesta ocorre conforme Gregor é levado a acreditar que o desconforto despertado por sua transformação - seu sofrimento - em seus familiares foi causado por ele. Aqui, não há uma preocupação com seu próprio estado, seu próprio adoecimento; antes de ver a si, o personagem se importa mais com as reverberações geradas pela sua transformação em seus familiares:

Ali permaneceu a noite toda, que em parte passou em semissono, do qual era despertado no susto pela fome, mas em parte envolvido em preocupações e esperanças indistintas que o levaram à decisão de que, por ora, precisava se comportar com tranquilidade e, com paciência e máxima consideração pela família, tornar suportáveis as vexações que ele, em seu estado atual, era forçado a lhes causar.

É possível identificar Gregor como alguém inserido em uma lógica estrutural que opera de forma a resultar numa angústia mental. Essa angústia é expressa pela maneira como lhe são colocadas as atividades laborais - e, na extrapolação que tomamos a liberdade de desenhar neste texto, entendemos essa angústia enquanto metáfora para a transformação. A Samsa coube o sustento de toda sua família - também impulsionado pela ideia de compensar sua família pelo prejuízo de um empreendimento não bem-sucedido, e, quando não se encontra mais apto para tal, ele incorpora, como sua responsabilidade, os desdobramentos relacionados a essa ausência - evidenciados nas ações praticadas e nas palavras ditas por seus parentes. A tristeza já proveniente das práticas exigidas por seu ambiente de trabalho se sobrepõe àquela incitada pela reação dos parentes não apenas pela sua aparência, mas pela cessão das atividades que a presença dela implica. 

Foi só quando a dor terminou por se tornar aparente, palpável, que ela se fez notar por quem se beneficiava dos produtos gerados pelo ofício - aquele que iniciou o sentimento de desconforto, aquele que trouxe o pesar a um e o conforto a outros (e é bem assim a estrutura que permite o giro das engrenagens). Ainda assim, as reflexões do personagem nem mesmo incluem uma preocupação consigo: o zelo cabe aos seus parentes, que não correspondem da mesma forma. Gregor não é presenteado com atenção, dedicação, amor - e talvez isso pudesse ter mudado o curso das coisas. Os últimos momentos de Gregor acompanham alguns trechos sensíveis da novela, como quando, atraído pela música do violino, Gregor é avistado pelos inquilinos, que passam a ocupar um quarto no apartamento para que a família possa ter mais uma fonte de renda, e mal consegue retornar ao quarto devido à fraqueza causada pela fome:

Mas Gregor não tinha a menor intenção de causar medo a ninguém, muito menos à irmã. Simplesmente havia começado a girar o corpo para voltar ao seu quarto e isso de qualquer modo chamava a atenção, uma vez que, em consequência do seu estado enfermiço, precisava, na difícil manobra, ajudar com a cabeça, que ele levantava várias vezes e batia contra o chão (p. 184).

Quando consegue adentrar o cômodo e a porta é rudemente fechada:

Mal estava dentro do seu quarto, quando a porta foi batida na maior pressa, travada e fechada a chave. Gregor assustou-se tanto com o súbito barulho atrás dele que suas perninhas se dobraram (p. 185).

Quando percebe a iminência da morte:

Logo descobriu que não podia absolutamente mais se mexer. Não se admirou com esse fato, pareceu-lhe antes pouco natural que até agora tivesse conseguido se movimentar com aquelas perninhas finas (...) Na realidade tinha dores no corpo todo, mas para ele era como se elas fossem ficar cada vez mais fracas e finalmente desaparecer por completo. A maçã apodrecida nas suas costas e a região inflamada em volta, inteiramente cobertas por uma poeira mole, quase não o incomodavam. Recordava-se da família com emoção e amor. Sua opinião de que precisava desaparecer era, se possível, ainda mais decidida que a da irmã.

E a primeira frase do pai de Gregor ao constatar a morte:

- Bem - disse o senhor Samsa -, agora podemos agradecer a Deus.

Quando Gregor falece, o comportamento - e a fala de seus familiares - mudam e parecem guardar esperança nos acontecimentos futuros. Mesmo os empregos deles, antes não tão vistos como cômodos, são encarados de outra forma:

Recostados com conforto nos seus bancos, conversaram sobre as perspectivas de futuro, elas não eram de modo algum más, pois os três tinham empregos muito vantajosos e particularmente promissores (p. 290).

Gregor parece ter se tornado a nuvem pesada que pairava sobre seus parentes e, quando não mais se fez presente, o tempo nublado se desfez. Neste momento, não percebemos algum nível de estima cultivado por sua família; isso não aparentava atravessá-los, nem reflexões sobre a parcela que lhes coube pelo mal-estar que abateu o personagem. A seu corpo não foi concedido um repouso digno, sendo descartado, de maneira ocultada pelo texto, pela faxineira.  

Antes do fim, mesmo o ambiente avistado pela janela do quarto parece estar em sintonia com o momento vivido por Samsa, enquanto sua visão gradativamente enfraquecia. O sol, a luz, não estavam mais lá: 

Ele voltava os olhos com a maior intensidade possível para a janela, mas, infelizmente, pouca confiança e pouco entusiasmo vinham da visão da névoa matutina, que encobria até o outro lado da estreita rua [...] ou então não se furtava ao grande esforço de arrastar uma poltrona à janela para depois rastejar até o peitoril e, recostado na poltrona, inclinar-se na janela e observar lá fora, evidentemente apenas por revisitar qualquer lembrança da liberdade que antes sentia de olhar pela janela. Pois, de fato, dia após dia, ele via as coisas cada vez mais nebulosas, inclusive as que não ficavam tão distantes assim [...] poderia jurar estar olhando para um deserto além da janela, no qual o céu e a terra cinzentos se misturavam indistintamente.

A janela também parecia ser uma das conexões existentes não só entre Gregor e o mundo além de seu quarto, mas entre o Gregor pré e pós-transformação. O momento anterior à metamorfose se tornava mais difícil de reconhecer a cada dia e o ambiente lá fora parecia refletir as circunstâncias vividas por ele. A falta de contato com pessoas é novamente vista por ele como uma variável que afetou sua percepção: antes da transformação, era consequência da rotina demandada pelo emprego, e após a transformação, decorre de sua clausura:

Gregor reconheceu que a falta de qualquer atenção humana direta [...] devia ter bagunçado seu juízo. 

A tristeza, a exclusão do convívio humano, a fome, a responsabilização, o emprego, o não se encaixar, os maus-tratos: essas questões abateram Gregor antes mesmo do fim de seu corpo físico.

"A cabeça afundou completamente e das suas ventas fluiu fraco o último fôlego"

Neste texto, utilizamos as ideias trazidas por Fisher no artigo Não prestar para nada para balizar o enquadramento que propomos aqui para A metamorfose. Buscamos demonstrar alguns fatores externos ao indivíduo capazes de influir num estado de adoecimento mental e, dentre eles, citamos o emprego. Convidamos quem lê este texto não só a uma reflexão sobre os impactos trazidos por essa questão para o sujeito, mas sobre as condições estruturais que sustentam a existência da angústia oriunda da maneira que se convencionou a colocar determinadas condições trabalhistas.

Referências

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