“Existirá algo mais assustadordo que as pessoas?”(Svetlana Aleksiévitch)
A grandiosidade de Lady Macbeth se torna visível quando analisamos a personagem sob a perspectiva do mal (seria ela uma personagem mais completa e complexa que o próprio Macbeth?). É importante ressaltar que esse estudo é fruto da disciplina Perspectivas hermenêuticas, representações do mal na literatura e imaginação poética de mulheres, que possibilitou a abertura de novos caminhos interpretativos e da complexidade do mal que podemos conhecer e perceber através de teóricos como Ricoeur, Bataille, Girard, assim como a análise do mal em obras de autoras e autores como Kafka, Clarice Lispector, Kate Millet, Sylvia Plath.
A temática do mal na história da filosofia sempre fez com que pensadores buscassem compreender suas origens, manifestações e implicações na existência humana, dando origem a diferentes interpretações que vão desde o campo metafísico até o ético e o simbólico. Para Ricoeur (2013), o mal não está apenas na ausência do ser, mas na sua corrupção, que pode levar à destruição do próprio ser. Em A simbologia do mal, o autor afirma que “sem a linguagem do símbolo, o mal permaneceria na escuridão” (Ricoeur, 2013, p. 14). Aqui então faremos uma análise dos símbolos da mancha, do pecado e da culpabilidade em Lady Macbeth.
A personagem logo no início da tragédia apresenta sua personalidade poderosa, que, ao receber a carta de seu companheiro, deseja:
LADY MACBETH: Vinde, espíritosque os pensamentos espreitais de morte,tirai-me o sexo, me deixando,da cabeça até aos pés, da mais terrívelcrueldade! Espessai-me todo o sangue;obstruí os acessos da consciência,porque batida alguma compungidada natureza sacudir não venhaminha hórrida vontade, promovendoacordo entre ela e o ato. Ao femininopeito baixai-me, e fel bebei por leite,auxiliares do crime, de onde as vossassubstâncias incorpóreas sempre se achamà espreita de desgraças deste mundo.Vem, noite espessa, e embuça-te no mantodos vapores do inferno mais sombrios,porque as feridas meu punhal agudonão veja que fizer, nem o céu possaespreitar através do escuro mantoe gritar: "Pára! Pára!"(Shakespeare, 2004, p. 10,na tradução de Carlos Alberto Nunes).
No trecho acima, um monólogo da personagem (que nas peças shakespeareanas não costuma ter esse momento, aqui seria um outro caminho interpretativo para a tragédia), notamos o mal externado ao ler a carta, “tirai-me o sexo, me deixando, da cabeça aos pés, da mais terrível crueldade!”, então pode-se implicar que Lady Macbeth também já tinha o desejo de ser rainha e iria até as últimas consequências para conseguir a coroa, assim corroborando com Athias (2020), que assinala: “Para tornar-se rainha e apoderar-se da glória real, deve endurecer e renegar as emoções. Parece que é no sufocamento de sua humanidade que Lady Macbeth encontrará os meios necessários para violar radicalmente a ordem social posta: assassinar um monarca, que é reconhecido por ser um rei bom” (Athias, 2020 p. 45).
É notório também no trecho “Ao feminino peito baixai-me, e fel bebei por leite, auxiliares do crime, de onde as vossas substâncias incorpóreas sempre se acham à espreita de desgraças deste mundo” que a personagem não sente remorso ou nutre vínculos e desejos maternais ao desejar que seu leite vire fel, libertando-se, assim, de princípios que toda mulher deveria ter. E aqui levamos em consideração a importância da atemporalidade na obra de Shakespeare, pois até agora, nos nossos tempos contemporâneos, a maternidade é um assunto que gera discussões.
O mal em Lady Macbeth também a faz persuadir Macbeth quando ele tem um momento de questionamento a respeito de se o assassinato de Duncan, o rei, seria certo. Ainda inseguro diante o plano tramado pela esposa e ele, Lady Macbeth diz:
LADY MACBETH: Que animal foi, então, que teve a idéiade me participar esse projeto?Quando ousastes fazê-lo éreis um homem,e querendo ser mais do que então éreistanto mais homem a ficar viríeis.Lugar e tempo então não concordavam;no entanto desejáveis ajeitá-los;e ora que se acomodam por si mesmos,essa boa vontade vos abate!Já amamentei e sei como é inefávelamar a criança que meu leite mama;mas no momento em que me olhasse, rindo,o seio lhe tirara da boquinhadesdentada e a cabeça lhe partira,se tivesse jurado, como o havíeisem relação a isso(Shakespeare, 2004, p. 12,na tradução de Carlos Alberto Nunes)
A ambição e força de Lady Macbeth são expostas nesse fragmento da tragédia, assim como a profundidade da personagem que não foi representada apenas como um suporte para o marido, mas como companheira e incentivadora maior da ação que fez a profecia se cumprir. Mais uma vez também é apresentada a questão da maternidade, em que Lady Macbeth sabe que “é inefável amar a criança que meu leite mama; mas no momento em que me olhasse, o seio lhe tirara da boquinha desdentada e a cabeça lhe partira, se assim tivesse jurado”. Pode-se interpretar esse fragmento como a certeza absoluta que a personagem tinha a respeito de seus atos e até que ponto ela iria para realizá-los. O que lhe cabia no contexto da tragédia seria jurar matar a própria cria caso tivesse prometido algo grandioso, como sacrificar um rei para assim tornar-se rainha. Porém, Macbeth ainda reluta em executar o assassinato, mas a insistência de sua esposa o fez corajoso para tal ato.
LADY MACBETH: Bastará aparafusardesvossa coragem até o ponto máximo,para que não falhemos. Quando Duncanse puser a dormir - e a rude viagemde hoje o convidará para isso mesmo -ambos os camareiros de tal mododominarei com vinho, que a memória,essa guarda do cérebro, fumaçatão-somente será e o receptáculoda razão, alambique. E quando os corposnesse sono de porco se encontrarem,como se mortos fossem, que de coisasnão faremos em Duncan indefeso,que culpas não imputaremos a essesservidores-esponjas, por que fiquemresponsáveis por nosso grande crime?(Shakespeare, 2004, p. 13,na tradução de Carlos Alberto Nunes)
O exemplo acima nos convida a refletir sobre a consciência do mal, desenvolvida por Ricoeur (2013), que dialoga sobre a existência do mal ao longo da história da humanidade e que a tríade simbólica da mancha, do pecado e da culpa acaba criando a consciência do mal.
Para Ricoeur (2013), o símbolo da mancha é o mais antigo que existe e a problematização desencadeada pelo teórico foi a questão de “ficar manchado”, podendo ser compreendido como a perda de algo importante, como a pureza. Após o assassinato do rei, Macbeth é atormentado pelo espírito de Banquo enquanto Lady Macbeth tenta acalmá-lo do tormento (trecho 1) e em seguida, podemos ver os momentos finais de Lady Macbeth na tragédia (trecho 2):
Trecho 1:
LADY MACBETH: Quem gritavapor esse modo? Ora, meu digno thane,relaxais vossas nobres energiasconsiderando as coisas por maneiratão doentia. Arranjai um pouco de água,para das mãos tirardes todas essastestemunhas manchadas. Por que causatrouxestes os punhais de onde se achavam?Precisam ficar lá. Tomai a pô-losem seus lugares e sujai de sangueos criados que ainda dormem(Shakespeare, 2004, p. 16,na tradução de Carlos Alberto Nunes)
Trecho 2:
LADY MACBETH: Sai, mancha amaldiçoada! Sai!Estou mandando. Um dois... Sim, já é tempo defazê-lo. O inferno é sombrio... Ora, marido! Ora!Um soldado ter medo? Por que termos medo de quealguém o venha a saber, se ninguém poderá pedircontas a nosso poder? Mas quem poderia imaginarque o velho tivesse tanto sangue no corpo?[...]Aqui ainda há odor de sangue.Todo o perfume da Arábia não conseguiria deixarcheirosa esta mãozinha. Oh! Oh! Oh!(Shakespeare, 2004, p. 41,na tradução de Carlos Alberto Nunes)
No primeiro trecho, notamos que a mancha já atormenta Macbeth, sua consciência está sendo perseguida pela lembrança de suas ações e pelo medo, mas ainda não o consome. Já no trecho 2, é notório que Lady Macbeth sucumbiu à mancha. No contexto do trecho elencado, a personagem tem pesadelos e caminha falando enquanto dorme, como uma sonâmbula. Atormentada pelo sangue do rei em suas mãos, que a lembra do que fez, a macha de sangue é uma experiência do que havia deixado para trás em partes; todavia, uma outra parte manteve-se guardada (Ricouer, 2013). E é justamente essa outra parte que acordava quando Lady Macbeth adormecia.
Para Ricoeur (2013), a consciência do pecado está ligada a algo da ordem do divino, algo que é inimigo de um deus. Mas para o autor, a ideia de pecado não está associada a um conceito ético, mas religioso, ou seja, pecar não seria a transgressão de um valor, porém, é o rompimento de um acordo pessoal. A consciência de tal rompimento, da falta produzida pela quebra do elo com um deus, transmuda para a consciência do pecado. No trecho 2, caracterizamos como consciência do mal adquirida por Lady Macbeth seu desabafo: “O inferno é sombrio... Ora, marido!”, pois a ideia da existência de um inferno concomitantemente nos leva à ideia de paraíso onde existe um deus. É nesse momento em que Lady Macbeth cria a última consciência que está vinculada à simbologia da culpa.
O sentimento da culpa, segundo Ricoeur (2013), está conectado à questão da mancha e da consciência do pecado; a culpa é a concretização da interiorização do pecado (Ricoeur, 2013). A exemplificação veremos no trecho elencado, no qual Lady Macbeth, agora sonâmbula, é espionada pelo médico e pela criada:
O MÉDICO: Circulam por aí terríveis boatos,feitos contra a natura sempre engendramconseqüências doentias. As consciênciasmanchadas descarregam seus segredosnos surdos travesseiros. Mais de padretem ela precisão do que de médico.Deus, Deus que nos perdoe! Acompanhai-a.Deixai bem longe dela quanto possacausar-lhe qualquer dano. E ora, boa noite.Ela deixou-me o espírito confusoe a vista absorta com tamanho abuso.Penso, mas não me atrevo a dizer nada.(Shakespeare, 2004, p. 42,na tradução de Carlos Alberto Nunes)
Assim, a tríade de Ricoeur, os símbolos primários que representam o mal, é apresentada: a mancha como alguma coisa que foi feita pelo homem (no nosso caso, o assassinato do rei por Macbeth e Lady Macbeth), a consciência do pecado do qual o ser humano sente culpa. Além do exposto, Lady Macbeth tem um fim trágico no enredo.
SEYTON: Um grito de mulher, meu bom senhor. (Sai.)MACBETH: Quase esqueci que gosto tem o medo.Já houve tempo em que um só grito, à noite,gelados os sentidos me deixava,e a relação de qualquer fato horrendoeriçar os cabelos me fazia,como se vivos fossem. Entupi-mede tal modo com coisas pavorosas,que o horror, já agora familiar das minhascogitações de morte, não consegueabalar-me no mínimo.(Volta Seyton.)Que houve?SEYTON: A rainha morreu, senhor.(Shakespeare, 2004, p. 45,na tradução de Carlos Alberto Nunes)
Uma vez que a nossa personagem passa por todos os símbolos do mal e que confessa a sua culpa, ela torna-se mais poderosa que o próprio Macbeth. Sua morte foi mais do que uma punição, mas uma libertação da culpa do mal. Lady Macbeth transfigura-se em uma personagem complexa, mais profunda. Por muito tempo, as mulheres mais poderosas são representadas com personagens como as bruxas, as culpadas, as madrastas ruins, a mulher invejosa, estereótipos esses que perduram nas representações literárias. Apesar da problemática do mal ser um tema que podemos elencar para analisar personagens femininas, há o perigo de se fazer da mulher um símbolo do mal, ocorrendo assim um processo de diabolização da mulher. Assim salientamos também o perigo da vitimização da mulher, ao qual a crítica feminista já vem falando sobre a representação do mal com a figura da mulher.
Referências
- ATHIAS, Cecília. Solilóquio em boca de mulher: a fala de Lady Macbeth como recurso de (des)construção de subjetividade. In: SALGUEIRO, Maria; HARRIS, Leila. Escritos discentes em literaturas de língua inglesa, volume XIII. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2020. p.42-49.
- GRONDIN, Jean. Hermenêutica. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.
- RICOEUR, Paul. A simbólica do Mal. Tradução de Hugo Barros & Gonçalo Marcelo. Lisboa: Edições 70, 2013.
- SHAKESPEARE, William. Macbeth. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Brasília: Ministério da Educação, 2004. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br.
Comentários
Postar um comentário