O amor sempre foi palco de discussão na literatura. Seja tomado por um discurso idealizado, por uma perspectiva cética e pessimista ou pela mais completa indiferença, ele está presente em (quase, acredito) todas as peças literárias já escritas. Ao longo do tempo, movimentos literários surgiram em contraposição aos seus antecessores e ressignificaram vários temas constantemente em pauta na sociedade, tais como o amor.
Independentemente de oposições e críticas, existem filosofias e narrativas que deixaram sua marca tão profundamente fundida na sociedade que ainda nos envolvem, continuando a ressoar na vivência e escrita dos artistas contemporâneos e em nós como seres humanos sociais, contexto em que se encontra o Romantismo e sua concepção do que seria o amor. O originário do que chamamos de “amor romântico” tem como um de seus ferrenhos representantes o romance que inaugura o movimento romântico no final do século XVIII, Os sofrimentos do Jovem Werther, do escritor alemão Goethe.
Publicado e ambientado no final do século XIII, Os sofrimentos do Jovem Werther segue até hoje considerada uma das maiores obras já escritas do período romântico. A obra narra cerca de um ano e sete meses da vida de Werther por meio de uma narrativa epistolar – cartas endereçadas a seu melhor amigo Wilhelm. Em suas odisseias, Werther se hospeda no pequeno vilarejo de Wahlheim, onde se apaixona por Lotte, uma jovem prometida – e posteriormente casada – a Albert. Frente a um amor impossível de se concretizar, Werther decide tirar a própria vida, conceituando-se assim como uma das grandes obras a abordar o suicídio na literatura.
De fato, Os sofrimentos do Jovem Werther não é a primeira narrativa de um amor impossível que termina em tragédia: temos Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, e até mesmo Guinevere e Lancelot como alguns personagens que seguiram esse fim. Goethe, como o grande escritor que era, construiu uma história tão intensa e repleta de conflitos que ainda é capaz de conquistar os corações dos leitores (dispostos aos clássicos) até hoje. O livro traz à tona um grande conflito para o protagonista, que se encontrou numa disputa entre seus sentimentos por Lotte e as convenções sociais que regiam as relações entre indivíduos, referindo-se particularmente à instituição do casamento, que colaboram para a ruína do personagem.
Mas quando nos deparamos com uma obra e leitura que se aprofunda não somente a uma crítica social, e sim aloja-se profundamente na interioridade do sujeito e na complexidade de suas emoções, de certa forma seria superficial afirmar que essas convenções foram de todo responsáveis pelo desastre do personagem principal porque isso o isentaria da própria culpa. Como o típico herói romântico, Werther constrói uma imagem completamente idealizada sobre sua amada Lotte, que caracteriza o papel arquetípico da mulher do Romantismo: um ser delicado e angelical, tímido e amoroso, cuja adoração glorifica o homem e o purifica aos olhos de Deus. Se Goethe apenas nos apresenta em mãos o testemunho de Werther, em juízo dominado pelos próprios sentimentos, logo não conseguimos inferir nenhuma confirmação de que seus sentimentos são realmente correspondidos, nem conhecermos o caráter da própria Lotte, plantando assim a semente da dúvida na percepção do leitor.
Quando falamos de literatura e Romantismo, é interessante vermos através do sentimentalismo exacerbado e entendermos a razão da sua existência em um contexto sociocultural. A idealização exagerada da mulher no Romantismo é uma questão que perpassa por meandros de insatisfação social, ansiedade em relação às mudanças seculares e estereótipos em relação à superioridade masculina. A idealização exacerbada do amor e, por consequência, da mulher, surge para os escritores como a solução para um relacionamento estável em meio ao caos da Modernidade.
Com essas reflexões, surge o seguinte problema: um amor pautado somente na ilusão é, de fato, real?
A reflexão amplia-se para como Werther continua a ressoar em nosso inconsciente coletivo. Apesar de atualmente a ideia de amor estar ligada à independência e liberdade individual, ainda existe uma parte de nós que se relaciona com o personagem e nos torna minimamente Werthers. E isso não é de todo um problema: não é errado desejarmos um amor intenso, que mexe com nossos corações e nos deixa temporariamente prisioneiros de nossos sentidos; o problema reside quando, assim como Werther, passamos a idealizar nossas relações, transformamos nosso objeto de afeição numa fantasia e interpretamos erroneamente certas situações, já que certas ações de Lotte alimentaram a fantasia de Werther, o que só tornou a verdade mais insuportável de digerir.
Ieda Tucherman em seu livro Arqueologia do Discurso Amoroso afirma que um dos inimigos do amor é o próprio imaginário do amor. Apesar de as coisas acontecerem com uma velocidade maior nos dias de hoje, a lógica continua sendo a mesma: vemos o que queremos ver. Como sempre, temos que concordar que a realidade é um soco no estômago e, assim como para Werther, difícil de superar.
A narrativa de Werther é intensificada pelo exagero romântico, mas sua essência resiste. Nas nossas realidades, provavelmente as vivências wertherianas teriam seu fim com o mergulho no que é concreto, na distância e no tempo, mas essas são histórias ainda em processo, esperando para serem contadas mais de duzentos anos após Werther e o abismo do desespero que é o amor romântico.
Necessitamos discutir mais a história de Werther. Uma obra tão rica em questões que vão desde a subjetividade do ser humano a críticas sociais pertinentes merece estar presente em debates e discussões, e o fato de não haver discussões suficientes sobre esses temas mostra a necessidade de serem reconhecidos e até mesmo contestados. Werther merece ser lembrado.
Referências
- A concepção do amor e idealização da mulher no Romantismo (Emília Vietti da Costa)
- Arqueologia do Discurso Amoroso (Ieda Tucherman)
- Os sofrimentos do Jovem Werther (Johann Wolfgang von Goethe)
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