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Recepção clássica na poesia contemporânea: De uma a outra ilha, de Ana Martins Marques

A tradição e sua recepção

Que a tradição clássica estruturou e ainda fomenta grande parte do que entendemos por poesia e arte muitos de nós reconhecemos, mesmo que seja nas mais singelas alusões, como as adaptações de Shakespeare em comédias românticas dos anos 2000, ou nas referências clássicas a Homero na literatura contemporânea.

A isso utiliza-se o termo “recepção clássica”: a forma como reconhecemos, entendemos, absorvemos, repensamos e representamos elementos de um passado muito longínquo, mas que se mantêm presentes nas produções de pensamento dos dias de hoje.

A recepção se estabelece como uma conversa entre o passado e o atual, entre o clássico e o contemporâneo, através da valorização, da negação ou da incorporação do elemento daquele com este, e é isso que Ana Martins Marques faz em seu longo poema intitulado “De uma a outra ilha”, explorando aspectos da persona e da poesia de Safo ao dialogá-los com a crise migratória na ilha de Lesbos na contemporaneidade.

Safo de Lesbos

A figura de Safo sempre foi emblemática e misteriosa, não como um enigma a ser resolvido, mas como uma presença por essência que se afirma através da falta, das lacunas e dos fragmentos. Estes, simbólicos de sua persona e, por isso, nem sempre preenchidos. Estudar a poesia de Safo é olhar para a presença e para a ausência ao mesmo tempo, de forma que os espaços em branco possuem tanto peso quanto os preenchidos.

Sabemos que Safo foi uma mulher que viveu na cidade de Mitilene, em Lesbos, no fim do século VII a.C. e começo do VI a.C. Lá, ela produziu inúmeras poesias da tradição grega intitulada de mélica, ou lírica, em que abordava assuntos como amor, perda e espiritualidade que a tornaram prestigiada ainda em vida. A poeta chegou a ser considerada como a Décima Musa nos epigramas da Antologia Palatina, e como “A poeta” pelos gregos, assim como Homero foi “O poeta”.

“Dizem que há nove musas, tão negligente me parece!
Esqueceram a décima, Safo de Lesbos”

(Epigrama 9.506, associado à Platão; tradução de Paulo Massa)

Uma das grandes questões acerca da pessoa de Safo é sua incerteza, muito do que produziu foi perdido, destruído, fragmentado. E, curiosamente, tratando-se de uma cultura arcaica predominantemente oral, grande parte do que se acredita ter sido feito por Safo pode não ter chegado à documentação, ou pode nem ter sido produzido por ela, uma questão vinculada à autoria que se dava de forma completamente diferente de como enxergamos hoje.

“Porque no mundo oral não há como estancar o canto, e Safo só pode ser Safo porque muitos corpos cantaram poemas que remeteram ao corpo de uma Safo; porque muitos corpos cantaram tornando-se essa Safo autoral, mesmo que o poema cantado nunca tenha passado efetivamente pela Safo biográfica.”

(Guilherme Gontijo em Safo, Fragmentos Completos)

Safo, por Ernst Stückelberg (1897)

A essência de Safo, e com isso enxerga-se tanto sua singularidade poética quanto o que sua personalidade representava na sociedade grega, era instrumento do fazer poético e do compartilhamento artístico na Antiguidade clássica. Tal como nas poesias épicas de Homero, quem recitava poderia alterar a musicalidade e, talvez, as palavras e suas intenções; por isso, se torna difícil classificar e determinar completamente o que e quem foi Safo, quando muitas vozes a formaram.

Por tragédias do tempo, grande parte do que chegou a produzir acabou se perdendo, sendo encontrado milhares de anos depois em diversos lugares do mundo, seja em papiros que cobriam uma múmia de um animal a pedaços de cerâmica. Restaram inteiros somente alguns poemas e fragmentos de outros, algo que Ana Martins Marques não deixa passar e utiliza como elemento composicional de sua poética da falta, da ausência das raízes na vivência do exílio.

De uma a outra ilha


Refletir sobre a crise migratória é reconhecer não somente os aspectos sociais e econômicos desses grupos que são forçados a abandonar seus lares, mas também os desencadeamentos psicológicos de uma situação como tal.

“De uma a outra ilha” se trata de um longo poema escrito por Ana Martins Marques, publicado em 2023 pelo Círculo de Poemas. Apesar de ser contemporâneo, a pauta da Antiguidade é mais do que presente ao tratar do passado da ilha de Lesbos e sua figura mais importante, Safo, enquanto denuncia e aponta o aspecto problemático do local.

A autora enxerga o sentimento de orfandade que abandonar sua terra pode criar, e absorve essa essência como uma vida em fragmentos, como a poesia de Safo, e posiciona seu olhar para um local preciso: a ilha de Lesbos, o paraíso da poesia clássica e o inferno dos imigrantes que buscam uma vida de qualidade atravessando o mar Egeu.

Lesbos foi o lar da criação das mais belas poesias da Grécia clássica, mas, hoje, habita a impossibilidade de vidas precarizadas pelo descaso, tornou-se a prisão de milhares de imigrantes, impedindo sua passagem à vida digna, ou o sonho dela. Determinado pela União Europeia em acordo com a Turquia, a ilha se tornou um impedimento e um exílio forçado. Quando pegos tentando atravessar o mar, os imigrantes são obrigados a lá permanecerem até segunda ordem, sem quaisquer tipo de estruturas de auxílio suficientes, se abrigam em contêineres frágeis e aguardam pelo melhor enquanto vivem o pior.

Ana Martins Marques articula essas duas faces de um mesmo lugar através do exercício da recepção clássica da figura e da poesia de Safo de Lesbos, dialogados com a atual situação da ilha. De uma a outra ilha se trata da locomoção dos exilados de sua terra para Lesbos, mas também do deslocamento rígido de representação de um mesmo lugar de um tempo para outro. Aqui, Safo representa o possível, o ideal poético, a beleza eterna da arte, enquanto a realidade, o atual cenário, é dilacerante e cruel.

O longo poema inicia-se apresentando o local: "a ilha é verde / esmeralda; a situação: Nos botes/ os emigrantes sonham/ calçar a relva tenra/ com seus pés molhados; e o artifício de apresentação, o legado de Safo, seus fragmentos: queimam de desejo / e anseiam por []"

Na configuração do texto, há partículas representando, em grande parte, fragmentos dos poemas de Safo, aqui, absorvidos e transmitidos enquanto dialogam-se com o poema. Nele, são encontrados trechos da vida de Safo e os fragmentos de suas obras, bem como notícias da situação da crise imigratória em Lesbos e seu desencadear nocivo. Dessa forma, os dois lados conectam-se por esse espaço físico e metafísico: a ilha de Lesbos é o berço de vidas fragmentadas, tidas como perdidas e indigentes. Ambos, os imigrantes e Safo de Lesbos, são reconhecidos como personas dilaceradas, mas, é claro, esta pela ação do tempo e aqueles pela crueldade humana.

"- em março de 2019, uma menina morreu
em um contêiner queimado
em setembro, duas pessoas morreram
em um incêndio"

Partindo desse pressuposto, a autora traça três panoramas principais: o exílio, a ilha e a poesia, interseccionando-os pelo aspecto da falta e da fragmentação.

"- onde estão
após abandonar
a terra onde nasceram
ou após terem sido
abandonados por ela
tendo ela ido embora dizendo
como a virgindade a Safo:
Nunca mais voltarei para ti, nunca mais."

Nesse trecho, nota-se que o movimento da causa do exílio e da migração sustenta-se pela figura e o poema de Safo, comparando a terra com a virgindade, ambos incapazes de um retorno. O trecho em questão se trata do fragmento 114 que acredita-se ter sido textualmente corrompido.

Com esses recortes, fica claro que a poeta recorre a fragmentos retirados da obra de Safo, recebe-os e associa-os ao factual da ilha de onde, provavelmente, esses pedaços de poesia e de sonhos nasceram inteiros. Hoje, é lá em que muitos são destruídos. Ocorre, aqui, uma dialética da fragmentação misteriosa e bela em sua efemeridade com a perdição de identidade forçosa.

"Seus poemas nos chegaram
em pedaços
quebrados como vasos de cerâmica
ou conchas espatifadas na praia
palavras como ilhas
cercadas de silêncio
por todos os lados"

Logo mais, a autora elenca o fato de que, por razões políticas, acredita-se que Safo, junto a sua família, teve de se exilar na Sicília. No entanto, opositando-se completamente da situação de exílio em que o poema se debruça, sua imigração foi adequada e luxuosa perante o que se enxerga hoje. 

"de uma a outra ilha
cercada de água e luz
como uma cabeça por uma grinalda"

Essa comparação é imprescindível para o diálogo do passado com o atual, reconhece-se que os exilados hoje se deslocam por temência à vida, e não somente por discordâncias políticas, e, por não serem a Décima Musa / segundo Platão, viajam em condições subumanas.

O caráter documental da poesia de Ana Martins Marques marca uma denúncia para além da subjetividade poética: elencando notícias factuais ela escancara o que aponta, abre a ferida do real dentro do poema.

“ - em março de 2019, uma menina morreu
em contêiner queimado
em setembro, duas pessoas morreram
em incêndio.”

Trechos como esse são encontrados por todo o poema, deixando claro que o propósito-denúncia não deve ser deixado de lado perante a configuração estética da poesia, em que se resgata a ideia de memória, de ausência e de passado, tanto de Safo como das vidas de exílio. Muito pelo contrário, a autora articula essa dicotomia de tal forma que, esses dois lados da poesia, o ético e o estético, são dependentes um do outro na incorporação da fragmentação como aspecto de vivências, clássicas ou contemporâneas.

Por trás de trechos como este:

"Em 2015,
cerca de 800 mil refugiados
em sua maioria sírios e iraquianos
transitaram por Lesbos
com a esperança de chegar aos países
da Europa setentrional
As praias de Molinos, Etfalou
e Skala Sikamia
ficaram cobertas
de coletes salva-vidas"

Observa-se a objetividade da crítica concomitante ao olhar sensível sobre a situação.

"Quando a fronteira é o mar
movente
verde violento
subindo e descendo
com a maré
quando uma árvore não pode crescer
sobre a fronteira
quando não só a nuvem não só o pássaro
também o peixe pode atravessá-la
e uma jovem com os cabelos
flutuantes
num colete salva-vidas
que não atendia
às normas de fabricação"

Além de falar da crise migratória e dos aspectos físicos da ilha, a autora também insere tons metalinguísticos para abordar as várias faces da poesia de Safo, incluindo os artifícios linguísticos para indicar a fragmentação de determinado trecho. 

"Nos poemas
colchetes indicam
que algo falta
no começo no meio
ou no fim do verso

o que se coloca dentro do colchete
é uma conjectura
o que se supõe que poderia
estar no trecho que falta"

Utilizando, também, das últimas descobertas das obras de Safo, como o papiro encontrado embalando uma múmia na Universidade de Colônia que abrigava alguns fragmentos, a poeta reflete sobre todas as particularidades presentes em um poema antigo e da própria poesia, mantendo essa configuração metalinguística que dá todo um tom reflexivo da obra:

"Uma dificuldade
com os poemas antigos
é às vezes saber
onde começa e onde termina um poema
se um fragmento faz ou não
parte de um determinado poema
ou se é um novo poema
que não havia sido encontrado
se estamos diante de dois poemas diferentes
ou de uma variação de um mesmo poema"

Nessa ótica, a autora não deixa de relacionar essa indeterminação dos poemas antigos de início e fim, de entrada e saída, com as dificuldades de se sair de um país e desembarcar em outros, impossibilitado de entrar como se entra no mar.

"entrar e sair de um poema
não é como entrar e sair de um país
mas antes como entrar e sair do mar
também os poemas têm fronteiras
e nem sempre é fácil atravessá-las [...]

Porque não são como as árvores
presas a um lugar
partiram porque tiveram que partir
tiveram uma casa pais paisagens
são comerciantes costureiros engenheiros pianistas
não são como as árvores
ainda menos como árvores calcinadas
arrancaram com as mãos as próprias raízes
e com dificuldade partiram, carregando-as
como mulheres levando a barra dos vestidos.

quase tudo perderam
mas não a memória do tempo
em que algo ainda tinham
e a carregam consigo
como um segundo coração

enraizados na errância
e com quase só as vagas
por valises

Mas tudo se deve suportar
porque [ ]"

Utilizar-se de elementos passados, de figuras ou culturas, e até mesmo de ideias e estados antigos sempre foi produtivo para concepções atuais; é, pois, olhando para trás que se reconhece o atual e reflete-se sobre o futuro. Charles Martindale, um estudioso da recepção clássica, diz que “a recepção é configurada dialogicamente, como um processo de duas vias de entendimento, para trás e para frente, que ilumina tanto a Antiguidade quanto a Modernidade”; afirma também que é preciso ir ao passado para produzirmos o futuro.

Ana Martins Marques, uma poeta contemporânea, olha para Safo, uma poeta da Antiguidade, e constrói uma ponte aos leitores: explora, denuncia e escancara o factual ao observar o passado ao passo que reflete, resgata e articula o passado ao observar o factual.

Referências

  • Fragmentos completos de Safo (Safo, na tradução de Guilherme Gontijo Flores)
  • Eros, tecelão de mitos (Joaquim Brasil Fontes)
  • A  dubiedade da persona de Safo (Rafael Guimarães Tavares da Silva)
  • Violência, silêncio e revolta velada nas leituras de Safo (Rafael Guimarães Tavares da Silva)
  • De ecos, elos, laços: recepções de Safo, recepções de clássicos (Giuliana Ragusa)
  • Como os poemas de Safo foram recebidos ao longo do tempo (Sara Anjos e Rafael Silva)
  • De uma a outra ilha (Ana Martins Marques)



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