A Era Vitoriana (período de reinado da rainha Vitória na Inglaterra, de 1837 a 1901) foi uma época de destaque especialmente para a moda, literatura, música e artes visuais. Dentre os movimentos artísticos vigentes no período estava a Irmandade Pré-Rafaelita, fundada em 1848 por John Everett Millais (1829-1896), William Holman Hunt (1827-1910) e Dante Gabriel Rossetti (1828-1882). Os Pré-Rafaelitas, por serem adeptos ao conceito da arte pela arte, são até hoje considerados revolucionários e irreverentes, pois desafiaram as normas acadêmicas ao romper com os princípios estéticos tradicionais.
Em meio às inspirações dos artistas que compuseram o movimento, está o poeta inglês John Keats. Os Pré-Rafaelitas, em particular, reconheceram nele um espírito radical semelhante aos seus, e foram profundamente tocados por seus versos e sua visão poética. Eles viram nele um colega que compartilhava de sua paixão pela representação artística verdadeira e autêntica, livre das restrições das convenções estabelecidas. Dentre todas as obras inspiradas em Keats, está "La Belle Dame Sans Merci" (“A Bela Dama Impiedosa”, em tradução livre), do também inglês Sir Frank Dicksee.
O simbolismo e Romantismo das palavras de Keats representados em uma tela
“La Belle Dame sans Merci”, pintada por Dicksee em 1901, é uma das várias representações visuais do poema homônimo escrito em 1819. Na balada escrita por Keats, é narrada a história de um cavaleiro que em uma de suas andanças encontra uma mulher exuberante e extremamente atraente. Chamada de “Bela Dama Impiedosa”, ela o seduz com sua beleza e o leva até sua morada. No entanto, após uma noite de paixão, o cavaleiro acorda sozinho e enfraquecido em uma colina.
La belle dame sans merci, por Frank Dicksee (1901) |
A narrativa aborda temas como paixão e desencanto. A Bela Dama representa a sedução e a ilusão do amor que podem levar os homens à sua ruína. O cavaleiro, inicialmente atraído pela beleza da dama, acaba sendo abandonado, pálido e enfraquecido.
A atmosfera do poema é melancólica e misteriosa, e transmite sensações que remetem à desolação e ao abandono. A personagem principal é retratada como uma figura sedutora, uma entidade sobrenatural que, com delicadeza, leva os homens à perdição.
Levou-me ela a uma encantada grutaE lá chorou, arquejou dolorida,Assim lá cerrei-lhe a visão ferinaCom somente quatro beijos.E lá ela me deixou adormecidoEm devaneios— ah! desditosamente!Nunca mais sonharia novamenteNesta encosta fria do monte.(Trecho de La Belle Dame sans Merci, de John Keats)
Dicksee retrata, além do contexto, toda a simbologia que o poema carrega consigo. Tanto o visual quanto as técnicas dão à obra o mesmo tom utilizado por Keats na obra original. A ambientação montanhosa, cercada por árvores e grama, a inquietação no olhar do cavaleiro, a sedução delicada da dama e a indumentária representada nos levam para o exato lugar imaginado e descrito pelo poeta. As pinceladas suaves que dão sensação de leveza e movimento, simultaneamente mostram a precisão no traço de Dicksee, o que é tão complexo quanto o vocabulário rebuscado utilizado por Keats.
A expressão do personagem masculino transmite sensações de pavor, espanto e encanto, que, por mais impossível que possam parecer, acontecem simultaneamente. Tais sentimentos são de grande contraste quando comparados à sensação de leveza no olhar e no gestual da personagem principal, retratada a poucos centímetros de distância do cavaleiro.
A femme fatale como objeto de culpabilização feminina pelo declínio masculino
Tanto a pintura de Dicksee quanto o poema de Keats podem ser lidos, dentre tantas interpretações, como uma representação sexista do declínio masculino. Isso porque a Bela Dama, descrita como sedutora e impiedosa, pode ser vista como uma caricatura da femme fatale, reforçando estereótipos de gênero em que a mulher é responsável pela queda do homem. A passividade do cavaleiro, seduzido pela beleza da dama e deixado enfraquecido e abandonado, pode ser entendida como uma reflexão do patriarcado, no qual, quando o homem expressa traços de fraqueza e vulnerabilidade, utiliza-se como justificativa a manipulação feminina.
Nas sombras vi-lhes os vorazes lábiosAbertos em horríveis advertênciasE acordei, reavendo-me nesta senda,Nesta encosta fria do monte.E por tais razões permaneço cáSozinho, pálido e tão fustigado,Embora esteja seco o junco ao lagoE nenhuma ave gorjeie.(Trecho de La Belle Dame sans Merci, de John Keats)
No entanto, essa perspectiva levanta questões pertinentes sobre a representação de gênero nas artes e na literatura. Alguns podem argumentar que a representação da Bela Dama como uma figura sedutora e manipuladora não necessariamente reflete uma visão negativa das mulheres, mas sim uma expressão artística de temas universais como desejo, tentação e mortalidade. Por outro lado, também existe a interpretação de que tais representações contribuem para a objetificação das mulheres e perpetuam padrões de comportamento prejudiciais, como a culpabilização feminina pelos erros e fracassos masculinos.
O estereótipo da femme fatale acabou se tornando prejudicial ao universo feminino, ao passo que perpetua a ideia de que a feminilidade está intrinsecamente ligada à manipulação e à destruição do outro. Essa representação reducionista coloca as mulheres em uma caixa em que sua individualidade, complexidade e autonomia se limitam. Além disso, ao promover a noção de que as mulheres são naturalmente perigosas predadoras sexuais, tal estereótipo justifica e normaliza comportamentos misóginos. Essa visão distorcida não apenas desumaniza o feminino, mas também contribui para a desigualdade de gênero e a perpetuação de normas sociais opressivas.
A influência de Keats no Pré-rafaelismo
A influência de John Keats para com os artistas pré-rafaelitas foi vasta e multifacetada, deixando uma marca permanente no movimento artístico do século XIX. Keats, um poeta Romântico, explorava temas como o amor, a natureza e a mortalidade de uma maneira profundamente pessoal e lírica, de modo a conquistar a imaginação e os corações de seus leitores.
Os pré-rafaelitas, buscando romper com as convenções artísticas estabelecidas pela Academia Real, encontraram no poeta uma fonte de inspiração e validação para sua busca por uma expressão artística mais autêntica e emocional. O trabalho de Keats oferecia um refúgio de idealismo e beleza em um mundo em rápida industrialização, proporcionando ao grupo uma base filosófica e estética sobre a qual construir suas próprias obras.
A intensa conexão com a natureza e a busca pela verdade emocional encontradas na poesia de Keats foram refletidas nas pinturas dos pré-rafaelitas (a exemplo de La Belle Dame sans Merci), que muitas vezes retratavam paisagens naturais e figuras mitológicas com uma precisão e detalhamento sem precedentes.
O amor de Keats pela linguagem rica em descrições e simbolismo também influenciou a narrativa visual dos pintores, que frequentemente incorporavam elementos literários em suas obras, como referências a poemas e mitos.
Referências
- Selected Poems (John Keats)
- Pré-rafaelitas (Enciclopédia Itaú Cultural)
- John Keats and the Pre-Raphaelites (Art UK)
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