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A criação do mito de Jane Austen

Em uma carta endereçada para seu irmão Frank, em 23 de setembro de 1813, Jane Austen disse que “uma coisa uma vez posta em movimento – sabe-se como ela se espalha!”. A linha se referia ao fato de seu outro irmão, Henry, “no calor da sua vaidade e amor fraterno”, ter deixado escapar para alguns espectadores na Escócia a verdadeira identidade da autora de Orgulho e Preconceito. A fala bem-humorada pareceu quase antever o movimento de criação do mito austeniano que foi elaborado após a morte dela: depois que a imagem de uma Austen modesta, inconsciente e apolítica foi posta em movimento, espalhou-se rapidamente e cimentou como fato algumas características ou ideias que vinham mais de sua família do que dela própria.  

Após a sua morte, ocorrida em 18 de julho de 1817 em Winchester, tudo que sabemos de uma das maiores escritoras inglesas de todos os tempos advém de uma construção familiar consciente e planejada. Pertencente à pequena nobreza no campo, os registros de Austen sempre estiveram ligados às cartas, bilhetes, rascunhos e manuscritos - e tudo o que ela deixou que não foi destruído ou editado passou por uma rigorosa gestão organizada por membros da família. 

“a família faz, herda e transmite o que conhecemos como sua vida; é tudo familiar. Refratada pelo prisma da família, a vida dela também é a vida deles.”

(Sutherland)

Esse gerenciamento, que se estendeu ao longo de todo o século XIX, aconteceu por mais de um motivo e buscou preencher agendas e necessidades específicas ao longo dos anos. Pode-se dizer que o mito austeniano começou, de fato, em 1818, com a publicação póstuma de A Abadia de Northanger e Persuasão. No “Aviso biográfico da autora” escrito pelo irmão de Jane, Henry, os primeiros contornos de uma Austen pública começaram a ser delineados e a imagem dela passou a ter traços definidos pela voz de outros. Nesse texto, Henry primeiramente identificou Jane para o público como a autora de Orgulho e preconceito e os demais romances e depois, esforçou-se para expor aos leitores uma Jane modesta, desinteressada por lucro, que escrevia apenas por prazer, sem intenção de obter fama ou prestígio. “Nem a esperança de fama, nem de lucro se misturaram com suas motivações iniciais”, disse ele. 

Esse discurso não é despido de intenção e se assemelhava a um tom de defesa familiar que se tornaria constante nos anos subsequentes. Ele demonstrava não só o desejo de Henry de criar uma reputação ilibada para a irmã, mas também adequava Austen ao discurso vigente de feminilidade burguesa que dizia que mulheres de boa índole não se expunham por dinheiro e não deviam ter ambições públicas. O fato de os romances de Austen serem adquiridos principalmente pela nobreza, pela classe média emergente, além de fazerem parte de bibliotecas circulantes, tornava importante que ela fosse vista dessa forma. 

Isso, por conexão, também elevava a moral da família de Austen, de posição conservadora e os afastava de qualquer conexão com a mácula do comercialismo, tão malfalado pela nobreza antiga e estabelecida. Ao expor Austen para o público pela primeira vez como uma dama do campo familiar e doméstica, Henry, por consequência, também criava um senso de adequação para todos os que a ela estavam relacionados. 

“as biografias são construídas mais a partir de interpretações do que fatos. No caso de Jane Austen há tão poucos fatos que quase tudo o que podemos saber são as consequências narrativas de diferentes tipos de interpretação”

(Sutherland)

Outro movimento familiar que criou uma curadoria de imagem para a autora de Razão e sensibilidade foi a destruição de suas cartas feita pela irmã, Cassandra. Apesar de as cartas serem hoje a única evidência pessoal e mais íntima de Jane, elas também passaram por um gerenciamento que, ao mesmo tempo, preservou e criou lacunas propositais na biografia da escritora. Estima-se que durante toda a sua vida Austen tenha produzido cerca de 3 mil correspondências, dentre envios privados, bilhetes e mensagens. Destas, restam hoje apenas 160 (mais o seu testamento). De acordo com Caroline Austen, a destruição e recorte de correspondências feito por Cassandra aconteceu em algum momento da década de 1840 (Cassandra faleceu em 1845). Vale lembrar que destruir as cartas de figuras públicas não era uma exceção durante o período vitoriano e muitas eram queimadas por ordem da própria pessoa falecida. No caso de Austen, não temos como afirmar se a ação foi um pedido pessoal dela ou uma atitude apenas de Cassandra, mas é inegável que esse cerceamento e transmissão seletiva da vida privada de Jane alimentou a especulação sobre ela e abriu espaço para interpretações ou suposições ao longo dos séculos além de reafirmar uma Jane familiar, amorosa e reservada.

“a intervenção de Cassandra - seja de destruição ou disseminação – fragmentou o registro textual ao mesmo tempo em que resguardou e preservou a memória de sua irmã para a próxima geração Austen”

(Sutherland)

Mas foi em 1870 que o mito austeniano foi selado através da publicação da biografia Memoir of Jane Austen, escrita por James Edward Austen-Leigh, filho do irmão mais velho de Jane e que havia convivido com ela durante a infância. Ele foi o principal responsável por estabelecer em definitivo a ideia de que Jane Austen tinha levado uma vida apolítica e sem eventos. Tal imagética vinha de encontro ao constructo burguês de modéstia ideal para uma mulher lida pelas classes médias e principalmente pelas jovens vitorianas. A biografia de Austen-Leigh também preenchia uma necessidade cada vez mais crescente de saciar a curiosidade do público sobre ao autores que liam. O período vitoriano viu nascer e alimentou a ideia do escritor-celebridade que se tornou, junto com seus livros, uma mercadoria a ser negociada. Pipocavam os eventos, a compra de autógrafos e mementos e a busca por fofocas íntimas sobre eles. O Memoir ajudou a gerenciar e inflamar o nascimento da celebridade Jane Austen, uma matrona afetuosa, que tinha escrito livros apenas para entreter a família e que havia sido publicada pela ação e incentivo dos irmãos bondosos. 

“Austen-Leigh também não era cego ao valor de mercado de homenagear um talento feminino despretensioso, mas notável, outra modesta filha solteirona de um pároco do campo”

(Sutherland)

Hoje em dia, apesar de as evidências escritas da vida de Austen serem poucas (e recortadas), os estudos austenianos demonstram que é possível entrever uma Jane Austen mais dinâmica, independente e agenciadora da própria carreira do que fizeram crer os relatos familiares ao longo do tempo. Através de seus livros também podemos perceber que ela não era um ser apolítico, alheio à guerra e às mudanças sociais que fizeram a Europa estremecer durante a passagem do século XVIII para o XIX. Muito pelo contrário, Austen se divertia com as especulações sobre a autoria de seus livros, estava constantemente informada sobre política e sociedade através dos familiares que faziam parte do círculo militar e gerenciava os valores e lucros de publicação de seus romances. Isso não significa que ela não foi, como frisou sua família, uma tia e irmã amorosa, discreta em sua vida pessoal e conservadora em relação a algumas questões, mas nos faz enxergar uma mulher ainda mais complexa, multifacetada e talentosa, que foi capaz de criar histórias tão eternas quanto o seu nome. 

Referências

  • 30 Great Myths About Jane Austen (Claudia Johnson e Clara Tuite)
  • The Publishing World (Kelly J. Mays)
  • The literary marketplace (Jan Fergus)
  • A Vida e as Cartas de Jane Austen (Kathryn Sutherland)




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