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Virginia Woolf: literatura e denúncia

“A Doença é parte da experiência de todo ser humano. Ela intensifica nossas percepções e reduz nossas auto-consciências. É a grande confessionária; coisas são ditas, verdades escondidas pela saúde são reveladas.”

(On being ill, Virginia Woolf)

Assim escreveu a célebre Virginia Woolf em seu ensaio On being ill (Sobre estar doente, em tradução livre), publicado pela editora Hogarth Press, comandada pela autora em conjunto com seu marido, Leonard Woolf, no ano de 1930.

Do aspirante ao leitor árduo, qualquer admirador dos escritos de Virginia reconhece as vestes de uma guerreira, militante de um futuro óbvio para ela, mas invisível aos olhos do seu tempo. A militância explícita de gênero por vezes ofusca outro aspecto que aparece sublimemente em seus romances, tal aspecto que denunciava um problema social sintomático em sua vida que, consequentemente, também moldou a sua escrita.

Uma breve história sobre a loucura


Em virtude da minha abordagem, a história — contextualização — sobre os transtornos mentais (anteriormente condensados como loucura) será brevíssima e priorizará os eventos que mais se relacionam com a vida e a escrita de Virginia Woolf.

Para começar, os distúrbios da mente sempre existiram, apenas com nomes diferentes. Michel Foucault, em sua obra História da Loucura (1978), destrincha as diversas percepções sociais pelas quais perpassou o que ele chamou de loucura. Antes do que ele considera Idade Clássica, a loucura era considerada uma expressão do sobrenatural, sinais de bruxaria. Com a instauração do cartesianismo, intituição do método científico e o nascimento da psiquiatria, os traços sobrenaturais ganharam uma nova roupagem: a bruxaria transforma-se em histeria.

Passou-se o tempo; permaneceu, porém, o arquétipo de quem mais foi atacado pelas percepções sociais. As mulheres sempre foram vítimas do sistema de seu tempo histórico, tachadas por qualquer comportamento "fora do padrão". No século XIX, as mulheres consideradas histéricas eram trancadas em manicômios e feitas de cobaias pelos estudiosos da psiquiatria.

No entanto, Foucault também considerou em seus estudos a histeria como uma possibilidade de fuga da estrutura normativa a qual as mulheres eram submetidas. Infelizmente, a maioria que desafiava tal estrutura recebia o enclausuramento, fosse doméstico ou manicomial, como punição  ou "tratamento".

Apenas Virginia: por trás da grande artista


É nesse contexto histórico que se situou uma das maiores personalidades do século XX, e uma das maiores referências literárias deste período. Adeline Virginia Stephen Woolf, nascida em 1882, na Inglaterra, filha do escritor Sir Leslie Stephen e da filantropa Julia Stephen. Negligenciada pelos pais, a infância de Virginia foi solitária, não fosse pela vasta biblioteca do seu pai. Como se não bastasse, Virginia era constantemente abusada pelos meios-irmãos durante todo esse período.

Os livros, porém, não lograram em preencher o vazio que se agravaria mais tarde, com a morte de sua mãe e meia-irmã em um intervalo de poucos anos. As contínuas tragédias e a repressão do luto de Virginia desencadearam as primeiras crises de depressão. Alguns estudiosos da autora consentem na probabilidade desta ter desenvolvido o Transtorno de Personalidade Bipolar, seus estados de humor variando entre uma depressão extrema e alegria (também chamada de mania, caso seja sintoma da bipolaridade).

Após a morte do pai, Virginia passa a viver com os irmãos e irmãs na cidade de Bloomsbury, um dos polos intelectuais da Inglaterra. Esse período marcou a continuidade dos surtos psicóticos da escritora, superáveis, porém constantes. Foi nesta época também que conheceu o escritor Leonard Woolf, com quem se casou alguns anos depois.

O casamento dos dois foi considerado, inclusive por ela mesma, um casamento feliz, mas isso não significou o fim das torturas que dominavam sua mente. Os surtos de Virginia continuaram, acompanhados de insônia e anorexia. Seu marido mantinha um diário sobre a condição em que se encontrava, e em uma das ocasiões, ele escreveu que o maior e mais estressante problema era conseguir que ela comesse.

Devido as constantes crises ao longo da sua vida, Virginia foi hospitalizada e enclausurada diversas vezes. Após uma forte crise, quando foi prescrito o tratamento de repouso, ela escreveu o ensaio On being ill, no qual reflete criticamente sobre a relação humanidade-transtornos-linguagem/literatura. 

Em 1941, após uma série de crises que a impossibilitaram de trabalhar, Virginia deu ao seu sofrimento um fim definitivo. Em carta ao marido, Leonard, ela escreveu:

“Acho que não podemos passar por um daqueles terríveis momentos novamente. E eu não conseguirei me recuperar dessa vez. Eu começo a ouvir vozes e não consigo me concentrar. Então, faço o que acho que é o melhor que posso fazer. Eu não posso mais lutar.”

A metamorfose: dos traumas à arte


A vida de Virginia Woolf está presente em suas histórias; o sofrimento, entranhado em suas narrativas. No livro As ondas (1931), talvez o seu romance mais experimental, a autora assume uma voz melancólica enquanto imerge nas vidas dos seis personagens cujas consciências percorre. A única constante é o fluxo. Sentimos a passagem do tempo, mas não o suficiente para nos localizarmos em meio à correnteza de pensamentos que formam a leitura. Virginia nos guia entre as profundezas da consciência em meio à inconsciência, e cada ato nos dá a impressão de retorno à realidade após um sono, após algo ter desvinculado nossas mentes do mundo real e, enfim, conseguimos retornar. Esse retorno, digo com pesar, não é epifânico e nem mesmo libertador, e em cada ato Virginia nos desperta com mais uma dose de melancolia, que parece não chegar ao fim.

Em outras obras, Virginia é mais explícita. Apesar de já tê-lo abordado em mais de uma ocasião neste texto, o ensaio On being ill merece uma menção honrosa neste tópico. Nele, Virginia deixa de lado sua roupagem de ficção e critica abertamente a falta de interesse da literatura em retratar histórias com a presença de doenças ou, quando o faz, costuma separar a mente do corpo, como se um fosse independente do outro. Uma crítica deveras compreensível visto que, quando acometida por surtos psicóticos, Virginia se encontrava fora de controle de sua mente e corpo, que também sentia as consequências de seu sofrimento psicológico.

Há um romance, porém, que conecta esta dor de Virginia com a ficção em sua mais pura forma. Sua obra literária Mrs. Dalloway é considerada uma das maiores ficções modernistas já escritas, narrando o dia de Clarissa Dalloway, uma aristocrata de Londres. Em suas andanças, Clarissa cruza com o veterano de guerra Septimus Warren Smith, e sua história passa a ser narrada paralelamente, junto a outros personagens que se relacionam com os dois, tendo como pano de fundo o cenário político e histórico-cultural da magnífica Londres.

Septimus, um remanescente da Primeira Guerra Mundial, sofreu do chamado shell shock, atualmente conhecido como transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), pelos horrores do conflito. O personagem era acometido por vários surtos e alucinações ao longo do romance, sendo seu transtorno e as péssimas normas de tratamento de transtornos psicológicos as razões do personagem cometer suicídio, o manifesto de um desafio às imposições. Septimus, em uma atitude movida pela culpa e sofrimento, casa-se com a italiana Lucrezia, e sua condição nunca foi compreendida pela esposa ou pelos médicos que o trataram. Lucrezia expressa constantemente ao longo do romance sua insatisfação com a situação de Septimus:

"[...] mas Septimus havia lutado; havia sido corajoso; agora, porém, não era mais o mesmo Septimus. Quando ela vestia a gola rendada ou um chapéu novo, ele mal notava; estava feliz sem ela. Mas ela jamais poderia ser feliz longe dele! Jamais!"

(Mrs. Dalloway, Virginia Woolf)

A situação de Septimus reflete os péssimos cuidados com os portadores de transtornos psicológicos em pleno início do século XX, visto que eram frequentemente considerados lunáticos e então enclausurados em hospitais psiquiátricos. A abordagem a qual Septimus foi submetido em relação a uma cura reflete o tratamento que a própria Virginia sofreu durante sua luta contra o transtorno de bipolaridade, tanto dos "especialistas" quanto dos seus entes queridos.

Mrs. Dalloway proporciona uma narrativa peculiar dos personagens, contando uma mínima fração de suas vidas: um dia normal. Ainda assim, os paradigmas sociais de início de século estão bem delineados, assim como a interpretação da autora sobre o panorama psicossocial — e manicomial: a superestigmatização dos transtornos mentais e a negligência das condições de tratamento.

O legado das palavras: a maior arma


Desde a infância, Virginia Woolf se resguardou na literatura em busca de conforto, de escape, como devoradora de histórias, e como criadora delas. Podemos entender a obra de Virginia como um manifesto de sua vida, separadamente fragmentado nos contos, romances e ensaios. Feminista, crítica do mundo ao seu redor — e além —, ela questionava as convenções de seu tempo histórico como mulher e portadora de um transtorno em um século tradicionalmente patriarcal e manicomial.

Para isso, ela escrevia. Desafiava as normas em seus ensaios, e doava a si própria para seus personagens. Enquanto olhava para si a partir de suas criações, ela denunciava as condições de sua existência — como produto do espaço-tempo da História — e consequentemente dos grupos que compartilhavam os sofrimentos de ser. Não é a toa que seus personagens são também construções arquetípicas de sua época, sendo até hoje objetos de análises de estudiosos da psicologia e da literatura. Virginia encapsulou em si o ambíguo poder da arte em sua mais completa forma: acolher e incomodar.

Referências 




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