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O calcanhar de Aquiles


A batalha travada na vasta Ílion, o poema épico escrito por Homero, a Ilíada é o alicerce de nossa literatura ocidental. Como dito por Frederico Lourenço, tradutor português da obra:

“Ler a Ilíada é reclamarmos o lugar que por herança nos cabe no processo de transmissão da cultura ocidental: cada novo leitor acrescenta mais uma etapa, ele mesmo um novo elo.”

Entre os vários elementos presentes nessa “guerra lacrimosa” descrita por Homero, a de mais destaque no poema é o herói grego Aquiles (também conhecido como Pelida). Para além da história de sua vida, a morte de Aquiles ficou tão ou mais famosa do que as conquistas do herói. Homero não escreve sobre a morte de Aquiles, a mitologia grega já era bem completa neste quesito e algo tão óbvio não carecia de ser mencionado. Embora na própria mitologia vejamos diferentes versões de como o fato se deu, o resultado é sempre mesmo: graças ao deus do sol,  Apolo, uma flecha perfura a única parte vulnerável do corpo de Aquiles, seu calcanhar, daí a expressão “calcanhar de Aquiles”. Além das considerações de sua morte física existem elementos que compõem também a morte psíquica de Aquiles e que a tornam brilhante em vários sentidos; seu significado é muito mais denso do que se possa imaginar e carece de um olhar bem abrangente a várias questões presentes na Ilíada.

Para o início desta análise é interessante observar que o livre-arbítrio na Ilíada é, para com os mortais, inexistente. Na mitologia grega, acredita-se que o destino seja inteiramente controlado pelas Moiras; três irmãs que teciam o fio da vida que se enlaçava em todos os indivíduos. Para os gregos, todo o destino vem delas.

Os deuses são igualmente dependentes do destino das Moiras, que abrange até as criaturas imortais. Mas como manteriam seu imaculado posto de deuses se não tivessem nenhum controle sobre o destino? Embora os deuses não possam alterar o resultado final já previsto, eles, se o destino não se apresenta da maneira que gostariam, tentam interferir no fato em questão e mudar apenas a consequência ao seu favor ou, na maioria dos casos, apenas atrasam o inevitável.

Presos na maldição de suas imortalidades, os deuses fazem dos mortais o seu tabuleiro de jogos; escolhem favoritos, roubam quando lhes é conveniente, ajudam em troca de oferendas, tomam lados. Sendo Zeus o “jogador” mais velho, as decisões devem sempre passar por ele, e suas decisões contam acima das outras, o oposto trazendo resultados horrendos para aquele deus que, no momento, se apresentar como digno de uma opinião divergente.

Isto posto, é visto que os deuses, além das Moiras, também usam as brechas deixadas por elas para mudar o destino dos mortais ao seu bel-prazer. Diferentemente de provocar um evento à parte para gerar uma consequência, as brechas deixadas pelas irmãs permitem sim que os deuses, e até os mortais, se pudessem competir com os primeiros, alterem o resultado final.

Quando Aquiles nasceu mortal, sua mãe o mergulhou no rio Estige e mudou sua condição. Quando Pátroclo quase invade as muralhas de Troia, é Apolo que o impede:

“Cede, ó Pátroclo criado por Zeus! Não está fadado que pela tua lança seja destruída a cidade dos altivos Troianos, nem sequer pela de Aquiles, que é muito melhor guerreiro que tu.”

Aqui, Apolo cita o destino já escrito pelas Moiras, mas apenas porque tal destino se apresentava da maneira que ele desejava. Se Hera ou Atena, por exemplo, que estavam do lado dos Aqueus, estivessem nessa cena, elas provavelmente teriam interferido a favor de Pátroclo, mesmo com seu destino já selado.

A única maneira de roubar no tabuleiro das Moiras é preenchendo as lacunas deixadas por elas e, com alguma sorte, a consequência desse movimento interfere no fio da vida, favorecendo o deus em questão. O ponto aqui é: Entre as vontades imortais, como nos posicionamos com a conduta das marionetes em questão (os mortais) se, sem nenhuma interferência, elas já contavam com a imprevisibilidade de suas ações? Neste caso, quem realmente é Aquiles?

Se um homem é o conjunto de suas ações e todas as ações de Aquiles foram, desde seu nascimento, ditas pelas Moiras e completas pelos caprichos pessoais dos deuses, quem é ele de verdade? Talvez nós só tenhamos um vislumbre de quem Aquiles é em suas interferências. É quando Aquiles interferia e era visto como mimado, caprichoso ou rancoroso que vemos a manifestação de sua verdadeira personalidade.

Quando Aquiles decide não voltar à guerra, Agamêmnon manda Ulisses, Ájax e Fênix à sua tenda, para tentar convencê-lo de não deixar sua cólera o afastar do conflito; Aquiles responde a essa intervenção dizendo que, embora estivesse sim ofendido pelas ações provocadas por Agamêmnon, ele tinha ouvido de sua mãe, Tétis, que dois destinos diferentes estavam à sua frente. Aquiles pensava que só tinha uma escolha: ir para a guerra em Troia, morrer nela, e obter a glória imortal; quando Tétis o informa de que ele tem sim a escolha de se afastar do conflito e que, se o fizer, embora perca sua glória, ele gozará de uma longa vida, Aquiles escolhe e diz que se afastará da guerra com seu companheiro Pátroclo, Fênix, o homem que o criou, e os Mirmidões, e aproveitará sua longevidade.

Aquiles se mostra extremamente firme em sua decisão, mas, ao deixarem um poder de decisão para Aquiles, as Moiras também deixaram uma brecha, brecha esta que não concedeu o poder de decisão do destino só ao seu portador, mas também aos deuses, que a utilizaram para seu objetivo.

The three Fates, por Alexander Rothaug (1910)

Zeus já tinha prometido a Tétis a glória para Aquiles, glória essa que só seria alcançada por intermédio da guerra; o destino dele poderia estar incerto nos fios das irmãs, mas estava certo com o portador da égide. Sabendo que a única coisa capaz de fazer Aquiles voltar à guerra seria tirar um de seus motivos para se abster dela; Zeus sela o destino de Pátroclo e, na morte do amigo, o Pelida volta ao conflito para se vingar. A reação vingativa de Aquiles foi intencionalmente provocada por Zeus.

Aquiles, além de Heitor, é um dos únicos que mostra sua revolta quanto à perda de tempo e sangue provocados por uma guerra que teve seu início pautado em um mulher e na falta de honra de Páris (ou Alexandre). Ele não via sentido em arriscar seu exército em um conflito que em nada lhe dizia respeito. Heitor também não via, e diz isso ao seu próprio irmão causador do conflito, Alexandre. Quando Zeus mata Pátroclo, ele empurra Aquiles para a guerra e, consequentemente, empurra Heitor para a morte. Ora, ambos queriam destinos diferentes, um deus provocou as ações de ambos; então será mesmo que podemos utilizar o ponto de vista existencialista para julgarmos os mortais presentes na Ilíada?

Quando Pátroclo está para matar o filho de Zeus, Sarpédon, o imortal pensa no que fará:

“Ai de mim, pois está fadado que Sarpédon, a quem mais amo dentre os homens, seja subjugado por Pátroclo, filho de Menécio.
Duplamente se divide meu coração enquanto penso:
Se arrebatando-o vivo da batalha pródiga em lágrimas o levarei para a fértil terra da Lícia;
Ou se o subjugarei agora às mãos do Menecida.”

Ao que Hera interrompe:

“Crônida terribilíssimo, que palavra foste tu dizer!
A homem mortal, há muito fadado pelo destino, queres tu salvar de novo da morte funesta?
Faz isso. Mas todos nós, demais deuses, não te louvaremos.
E outra coisa te direi; tu guarda-a no teu espírito:
Se tu mandares Sarpédon vivo para sua casa, reflete se em seguida outro deus não quererá tirar o seu filho amado dos potentes combates.
Pois muitos são os filhos de imortais que lutam em torno da grande cidadela de Príamo: entre eles raiva terrível porás.”

É Hera quem impede que Zeus, além de já controlar o destino do filho de Menécio, controle a consequência desse ato, por salvar seu favorito que será subjugado por Pátroclo. Hera também mostra como os outros deuses só não interferem na guerra, pois também possuem seus motivos, por causa do Crônida que, além de controlar o destino dos mortais controla os deuses e diz quando eles podem ou não podem fazer o mesmo.

Em outro verso, Atena o condena pela mesma vontade:

“A ele deu resposta a deusa, Atena de olhos esverdeados:
'Pai do candente relâmpago, deus da nuvem azul! Que disseste!
A homem mortal, há muito fadado pelo destino, queres tu salvar de novo da morte funesta?
Faz isso. Mas todos nós, demais deuses, não te louvaremos.'
Respondendo-lhe assim falou Zeus que comanda as nuvens:
'Anima-te, ó Tritogênia, querida filha. Não é com séria intenção que falo; pelo contrário, quero ser-te favorável.
Faz como te indicar teu ânimo; já não precisas de te refreares'.”

Quando Zeus se vê obrigado a interferir demais, ele autoriza os filhos a fazerem o mesmo. É possível notar os nós dados pelos deuses nos já tecidos fios das Moiras. 

Quando todas as inferências de Aquiles, em meio a teia de seu destino, eram expressadas e imediatamente descartadas por um poder maior, sua personalidade ia se esvaindo, provocando sua morte antes mesmo desta acontecer. Aquiles deixava de ser Aquiles para se tornar um receptáculo, um peão.

Homero mostra compreender este fato quando, mesmo sendo um narrador onisciente, não denota nenhuma opinião acerca de seus personagens e suas histórias. As únicas opiniões vistas no atualmente livro são as proferidas por outros personagens sobre seus contemporâneos. Não há como dar opiniões se todos os seus personagens são controlados por outros. Em vista disso tudo, e voltando ao assunto principal, Aquiles, tal questionamento se faz presente: Se os deuses podiam interferir até minimamente no destino dos homens, e se Zeus precisou tanto de Pátroclo para poder manobrar Aquiles, até onde a relação dos dois não foi manipulada? O que fez Aquiles trazer glória e justiça aos Aqueus foi a morte de Pátroclo. E se ambos tivessem se desentendido antes mesmo de chegarem a Ílion? E se a relação dos dois não tivesse sido construída? Nada poderia ter sido usado para tirar Aquiles de sua tenda, e a parte cerne da guerra dos deuses não teria acontecido. Então quanto da vontade dos dois está presente em sua relação?

No entanto, é notável que, com interferências ou não, o amor da vida de Aquiles era Pátroclo, e a jogada de mestre foi fazer deste último o maior peão da guerra de Troia. Maior até mesmo que Aquiles que, embora foi tão usado quanto, teve sua glória alcançada ao fim. Para os heróis gregos essa era a única compensação possível e, embora Aquiles já nem se importasse com ela, os deuses acreditavam que sim.

Quando Zeus prometeu esta glória a Tétis ele só tinha uma única opção, o Pelida teria de morrer na guerra. Embora a morte mental de Aquiles já estivesse ocorrendo, a gota d'água se deu com a morte de seu escudeiro. A morte física de Aquiles, com a flecha em seu calcanhar, a única parte em que ele podia ser ferido, foi uma consequência do verdadeiro golpe em tudo o que Aquiles mais amava. Pátroclo é o verdadeiro calcanhar de Aquiles. A flecha do Crônida atingiu a única parte exposta do coração de Aquiles, ao passo que a flecha de Apolo, mais tarde, atinge fisicamente a parte representada. A última apenas em decorrência da primeira.

Opiniões divergem entre estudiosos e leitores quando se trata da natureza da relação entre Pátroclo e Aquiles, e opiniões divergem até hoje entre historiadores e estudiosos sobre tudo envolvendo a Ilíada, sua origem, seu(s) escritor(es) e etc. Assim como no mundo científico, para esses casos, a única conduta plausível é a mente aberta; nesse meio, somos sempre surpreendidos por evidências muitas vezes contraditórias com nossa opinião inicial. Se nem mesmo a origem exata da Ilíada pode ser vista, que cultura utilizaremos como base para analisarmos as relações presentes na história?

Nascemos de um país alicerçado, pois assim foi colonizado, em costumes conservadores cristãos. Mesmo que não se concorde em nada com estes princípios, ainda somos influenciados desde nosso íntimo a observar tudo por este prisma. É desnecessário, portanto, dizer que o ponto de vista de grande parte dos estudiosos e leitores brasileiros, portugueses, ingleses (estes últimos os próprios colonizadores) e demais países com essa formatação de pensamento, acertam ao afirmar que, embora tenham opiniões sobre a origem exata da história, em nada podem confirmar e pecam logo após ao analisar a relação de dois gregos presos em uma guerra por dez anos, inseparáveis, e que pedem para serem depositados na mesma urna para passarem a eternidade juntos como o mais lindo poder da amizade. Claro que, para nossa cultura, não existiria outra análise.

Dante Alighieri, ao escrever A divina comédia, inteiramente cristã, se depara com os personagens da Ilíada no inferno. Por serem de crenças opostas, ele imediatamente os condena:

“Helena vi, a causa fementida
De tanto mal, e Aquiles celebrado
Que teve por amor a extrema lida.”

Isso apenas mostra como devemos estar totalmente despidos de conjecturas pessoais e de nossa cultura pré estabelecida ao esbarrarmos na Ilíada. Olhar uma história dita por uma civilização da qual não possuímos um nível de conhecimento necessário, com os nossos olhos modernos, é um erro. Até porque é na própria Grécia antiga que um homem mais velho se deitava com um mais novo para propagar o seu conhecimento, sendo isso uma tradição para a sociedade helênica. A diferença entre a cultura daquela civilização e a nossa é abismal.

É importante ressaltar que, se era algo tão comum para aquele povo, Homero não sentiria a necessidade de ressaltar explicitamente algo do tipo em sua obra, até porque, na visão dos antigos, se acreditava que nós evoluiríamos dali para a frente, e não que ele precisaria explicar o óbvio para uma civilização que se tornou mais retrógrada que a sua própria.

Na Ilíada, Pátroclo e Aquiles estão além de qualquer relação sexual. Mas não só ambos como o resto dos personagens. As únicas relações presentes que podem ser interpretadas como tal são usadas para demonstrar uma outra face da guerra, a conquista, a subjugação pelo e no prêmio; se torna um outro aspecto tão lacrimoso quanto o resto da guerra quando lembramos que as poucas relações citadas acontecem com mulheres que foram feitas cativas.

Isto posto, nada mais justo que, por exemplo, nunca vermos uma passagem dizendo que Heitor se deitou com sua esposa, Andrômaca. Toda a atmosfera de amor dos dois, intensa e extremamente íntima, teria ido por água abaixo no momento em que Homero descrevesse o ato sexual. As relações sexuais homéricas estão longe de representar algo positivo. Homens “namoravam” (analogia utilizada por Homero) com homens em guerra e se matavam; homens sequestravam e deitavam com mulheres e as matavam aos poucos. Logo, o amor romântico, para abrir uma brecha em meio a sangria miserável, nunca teria sido fisicamente explicitado na história.

É claro que as opiniões sobre a natureza da relação de Pátroclo e Aquiles podem e devem ser estudadas e consideradas por todos os prismas, mas não apenas as que nos soam convenientes. Se lembrarmos que foi há pouco tempo que a Ilíada era vista como confusa e mal-escrita, temos a obrigação de acatar e respeitar novas opiniões para com a história.

Madeline Miller, em 2011, lançou o livro A canção de Aquiles. Baseado na Ilíada, o livro é contado pelo ponto de vista de Pátroclo, e narra o amor romântico e recíproco dele e de Aquiles. É interessante ver, considerando a Ilíada construída por mais de um autor, como o mesmo processo não é mais bem visto hoje em dia. A autora, embora tenha voltado os olhos dos adolescentes da nova geração para este livro, foi alvo de duras críticas por basear a história em uma das várias teorias envolvendo a Ilíada. Embora o livro seja controverso, a obra de Miller fez um ótimo trabalho em mostrar uma faceta de Aquiles que é facilmente ignorada na Ilíada. A Ilíada fala sobre a ira de Aquiles; A canção de Aquiles fala sobre seu amor.

Briseida sendo levada de Aquiles, afresco em Pompeia (séc. I)

No quesito amor também encontramos Briseida, o prêmio de uma das batalhas dado a Aquiles que, ao ser roubado por Agamêmnon, dá início à ira. Ao ser questionado por sua cólera repetidas vezes, Aquiles esclarece que o motivo não reside em Briseida, mas sim em sua honra:

“Alguns despojos ele (Agamêmnon) deu como prêmios a nobres e reis, que ficaram com eles, incólumes. Mas dentre os Aqueus só a mim tirou o prêmio e ficou com a mulher que me agradava. Que durma com ela e tire o seu prazer. [...] Agora que me tirou o prêmio da mão e me ludibriou [...] Não deliberarei com ele conselhos, nem façanha alguma. Totalmente ele me enganou e me ofendeu.”

Alguns alegam que mesmo assim Aquiles amava Briseida romanticamente, de forma diferente que seu amor por Pátroclo. Vemos o que Aquiles pensava disso claramente:

“Todo aquele que é bom homem e no seu perfeito juízo ama e estima a mulher, tal como eu amava aquela, apesar de ela ser cativa da minha lança.”

Aquiles amava Briseida, mas, visto ser ele por ele mesmo bom e em seu perfeito juízo, esse amor vinha naturalmente, uma obrigação, porém, uma obrigação agradável. A honra de Aquiles era seu bem mais valoroso na guerra; quando Agamêmnon a insulta, não é por amor que Aquiles se ressente, mas por indignação pessoal. Já a visão de Briseida para com Aquiles tem a obrigação de ser considerada.

Se um pode considerar uma relação romântica profunda entre Aquiles e seu prêmio objetificado, Briseida – por mais docemente que Aquiles possa tê-la tratado, ela continua sendo tão humilhada quanto as outras mulheres feitas escravas nos acampamentos dos Aqueus –, deve-se considerar uma relação com Pátroclo, que teve sua relação com Aquiles tratada, não com a mesma clareza, porque nada com Aquiles ficava claro, mas com a mesma delicadeza e nuances de escrita que Homero empregou ao descrever Heitor e Andrômaca. Se consideramos o amor com Briseida, Pátroclo se torna óbvio. Daí a importância da neutralidade para com a Ilíada.

Quando Pátroclo morre, Briseida, que era próxima dele, diz:

“Pátroclo que sempre mais encantaste meu pobre coração!
Vivo te deixei quando parti desta tenda, mas agora encontro-te morto, ó condutor de homens, ao meu regresso.
Deste modo sempre para mim o mal se segue ao mal.
O marido, a quem meu pai e minha excelsa mãe me deram, vi-o à frente da cidade, golpeado pelo bronze afiado;
E meus três irmãos, que minha mãe dera à luz, irmãos adorados, todos eles encontraram o dia da morte.
Mas tu não me deixaste, quando Aquiles veloz matou o meu marido e saqueou a cidade do divino Mines, não me deixaste chorar, mas prometeste que me farias a esposa legítima do divino Aquiles e que ele me levaria nas naus para a Ftia, para a festa nupcial dos Mirmidões. Morto te choro sem cessar, tu que foste sempre tão brando.”

Quando Andrômaca, mulher de Heitor, conta que Aquiles chacinou sua família, nos parece óbvio que ela o odeie. Mas quando ele provoca a mesma dor em Briseida, dizemos que estão apaixonados? Fica claro que Aquiles a tratava bem, e que ambos possuíam sim uma relação, mas algumas cicatrizes e posições impedem certos resultados emocionais. Aqui vemos que, para além das relações sexuais, que não obrigatoriamente estão atreladas ao amor romântico profundo, Briseida, como Aquiles, preferia Pátroclo a todo o resto. Pátroclo teve tanto arrependimento em relação à jovem que foi roubada de seu lar e sua família, que ia casá-la com Aquiles, para proteger a honra e reputação dela e oferecer uma vida extremamente confortável. Assim sendo, quando Agamêmnon rouba Briseida, ele está fazendo o que Alexandre fez com Menelau ao roubar Helena. Não julgamos Menelau por iniciar uma guerra infindável para recuperar Helena, mas julgamos Aquiles cruel e mimado por se abster de uma ao perder Briseida? Se Menelau é considerado um homem digno e honrado, Aquiles também merece metade dessa reputação porque, embora sua ausência tenha sido a causa de alguns homens perecerem, foi a guerra de Menelau e Páris que realmente matou todos eles.

"Nunca tive [Aquiles] vantagem alguma por sofrer dores no coração ao pôr constantemente em risco minha vida na guerra. [...] suportei dias sangrentos em atos de guerra, combatendo homens inimigos por causa das suas mulheres.”

Aquiles, logo ao nascer, já tinha se tornado um mero eco da vontade alheia. O que acompanhamos daí para a frente é apenas a percepção dele acerca disso, a noção de que ele nunca teve ou terá uma escolha sobre sua própria vida.

Ao longo da batalha em Ílion ele não só é atingido frequentemente por essas epifanias, como vê morrer o que lhe restava. Pátroclo foi a pior dor de Aquiles:

“Nada de pior poderia eu sofrer, nem que me viessem dizer que morreu o meu pai, [...] nem que fosse meu filho amado que em Esquiro é criado, se é que ainda vive o divino Neoptólemo.”

A sensibilidade estupenda de Homero foi ao mostrar que um herói grego, destinado a cometer atos horrendos, os cometeria porque do amor fora privado.

Então se Aquiles é na verdade suas revoltas, suas interferências, suas não vontades, ele se torna não um louco desvairado, mas um dos melhores dos Aqueus e, por mais contraditório que seja, ao desistir de guerrear para amar em sua longevidade na amada terra pátria, um dos mais humanos. A única parte mortal de Aquiles era o calcanhar da sua imortalidade, mas isso é mil vezes mental antes de ser físico.

Em vista disso tudo, voltamos ao questionamento inicial: Quem é Aquiles, para além do peão? Onde poderíamos ver um traço da personalidade genuína do herói, sem as milhares profecias, sem a interferência imortal?

A escritora previamente citada Madeline Miller, ao escrever Circe, livro que conta a história da deusa feiticeira grega e que também abrange o encontro desta com Ulisses, faz este último dizer, em determinado momento, a única verdade que podemos retirar do Pelida, em qualquer canto grego, em qualquer parte de sua mitologia:

“Pátroclo era a melhor parte de Aquiles.”

Quando a melhor parte de Aquiles morre, seu íntimo já fora enterrado, Apolo apenas deita sua carcaça vazia na poeira.

Referências




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