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Tartini e seu sonho diabólico

O sonho é uma arte poética involuntária, era isso que Immanuel Kant dizia. Todavia, discordamos um pouco, pois o sonho pode sim vir até você apenas quando ele bem entender, ele não precisa respeitar suas vontades a respeito disso; acredito que o que sentimos viver no nosso sono mais profundo é apenas um mero prelúdio do que ainda está por vir. Sonhar é algo tão incrivelmente pessoal que é difícil acreditar que há algo mais nosso que os próprios sonhos  creio que não exista algo tão revelador quanto eles também. 

Mas o melhor de tudo é que o ambiente onírico conseguiu alcançar dimensões para além do sono, virando fonte de inspiração para os artistas. Hoje em dia, chamar alguém de sonhador chega a ser considerado uma ofensa em certos ângulos, existe uma falta de compreensão das pessoas acerca de todos os outros significados que o sonho pode ter além da alucinação da realidade. Porém para a nossa sorte ainda existem pessoas extraordinárias que amam fazer um mergulho em si mesmas, pessoas como Giuseppe Tartini, que, ao se deitar em mais uma noite comum teve um sonho que se transformou na sonata mais bela que um homem poderia compor. Perdão, quis dizer na verdade que Tartini trouxe ao mundo a beleza de uma sonata que só poderia ser esculpida pela próprio Diabo.

Giuseppe Tartini nasceu em Pirano, na antiga República de Veneza e atual Eslovênia. Desde cedo foi um certo ímã para confusões; seu casamento por exemplo, ocorreu de forma tão conturbada que teve de passar meses fugindo de um canto para outro. Por outro lado, foram essas mesmas fugas que permitiram ao italiano se apaixonar pela arte do violino e posteriormente se aprimorar nela. Se formou em direito, mas nunca nem ao menos chegou a exercer a profissão; talvez algo no íntimo de Tartini soubesse que a sua vocação não ficaria presa às leis e tribunais, mas sim ao sentimentalismo exacerbado que suas sinfonias apresentavam.

Durante sua juventude, temos apenas informações vagas sobre suas atitudes; algumas pessoas alimentam boatos de Tartini ter tido um comportamento inconsequente e vagabundo que desprezava ordens de seus pais e superiores por puro entretenimento. Porém é difícil acreditar nisso levando em conta toda a dedicação que o autor teve na música, sempre focado em estudar cada vez mais o assunto, aprimorando suas técnicas sob a influência de outros nomes homéricos como Vivaldi, Locatelli e Geminiani. Os especialistas no ramo musical afirmam que o próprio Tartini possui um estilo muitíssimo pessoal, e é preciso penetrar com muita profundidade em sua vida para ligar todas as pontas que o artista possui.

O italiano se enquadrou no período da música barroca, no qual a moda era rebuscar as suas partituras, a ornamentação necessária para se alcançar o sucesso. Recheado de polifonias, Tartini se popularizou compondo mais de cem concertos para violino; escreveu também sonatas, quartetos, sinfonias e obras sacras. Sua fama foi tamanha que até mesmo realizou uma espécie de turnê por toda a Itália, onde ia levando uma orquestra sob seu comando, encantando a todos que tivessem a sorte de ouvir as belas habilidades do violinista. Quando retornou a Pádua, cidade na qual se instalou com sua mulher, resolveu criar uma escola de artes voltada ao violino e aos estudos da composição musical; de acordo com uma das cartas que trocava com amigos, uma das poucas coisas que Giuseppe gostava mais do que tocar era ensinar como tocar.

Embora tenha feito inúmeros sucessos como “L’arte del arco”, outro trabalho excepcional do seu violino, o que realmente eternizou Giuseppe Tartini foi “O trilo do Diabo”. É importante destacar que o nome "trilo" é um tipo de melodia na qual há uma alternância veloz entre duas notas vizinhas que criam uma espécie de semitom; parece complicado quando você lê dessa forma, mas se ouvir algum irá perceber que faz total sentido.

O que se sabe por trás da composição dessa sonata é apenas o que foi dito pela carta que Giuseppe mandou ao seu amigo, o astrônomo francês Jérôme Lalande, que depois de alguns anos divulgou a história para a mídia. O músico conta que ao cair no sono se viu diante de uma figura diabólica oferecendo seus serviços eternos em troca de sua alma. Giuseppe concordou sob uma condição: queria que o Diabo tocasse o violino. Oferecer o instrumento ao Cão pode ter sido talvez uma tentativa de caçoar dos dotes malignos da entidade, afinal, acredita-se que as artes puras e belas como a música estão mais atreladas ao divino do que ao profano.

Doce engano.

“Quão grande foi meu espanto ao ouvir uma sonata tão maravilhosa e bela, tocada com tanta arte e inteligência, como eu jamais havia concebido, nem sequer nos meus mais ousados voos de fantasia.”

(Giuseppe Tartini)

Foi dito que assim que as mãos endiabradas pousaram no instrumento, uma lira orfeônica foi produzida. Tartini diz ter ficado totalmente enfeitiçado, nunca havia ouvido algo tão único, difícil e extraordinário em toda a sua vida. E de repente, tão rápido quanto começou, o sonho terminou. Ele relata que assim que despertou tentou reproduzir a melodia que havia acabado de ouvir, mas não importava quantas vezes ele passasse a noite tentando, nada que ele produzia se comparava ao que tinha ouvido pelas mãos do Diabo.

Por um tempo, Giuseppe Tartini se viu ali, atormentado pela ausência da perfeição, e por mais que fosse aplaudido por todos pela sua criação (ou devo dizer reprodução?), ele ainda se mantinha fiel à ideia de que seu trilo não chegava aos pés do que ouvira no sonho.

Um fato interessante sobre tal composição é que a música começa calma e graciosa, com melodias que passam a sensação de tranquilidade e harmonia; mas ao decorrer dos minutos um ritmo mais triste e mórbido toma conta dos seus ouvidos, e, no fim, um tom repleto de movimentos rápidos encerra a canção numa onda barulhenta. Se você notar, é possível criar um paralelo entre a sonata e a própria história de Lúcifer. O ritmo tranquilo do início retrata sua vida ainda como um anjo do Senhor, logo depois nos deparamos com as ações que resultaram em sua queda com um tom mais melancólico pela sua inveja, até que o anjo caído termina sentido um misto de ira e dor, o chamado inferno.

A música até mesmo ganhou uma pintura em sua homenagem, o pintor francês Louis-Léopold Boilly pintou “O sonho de Tartini”. Na obra, o italiano esta deitado na cama enquanto o Diabo, exposto em sua forma horrenda, está sentado no canto tocando o violino. Hoje, O Trilo do Diabo é estudado por todo estudante de música como um dos trabalhos mais excepcionais da Idade Moderna pela sua inteligência, beleza e dificuldade de execução, servindo de inspiração para inúmeros compositores da atualidade.

Le songe de Tartini, por Louis-Léopold Boilly (1824)

É indiscutível que a sua obra alçou voos quilométricos, fazendo com que ele fosse conhecido ainda em vida pela corte russa. Ele teve uma vida recheada de sucesso, tanto profissional quanto pessoal. Muitos acreditam que toda a sua glória se deu graças ao suposto pacto realizado em seu sonho, afinal, as línguas diziam que o seu toque era tão belo que parecia que o seu violino era tão vivo quanto qualquer outro homem. Teria então o próprio Giuseppe realmente vendido sua alma e em troca recebido o reconhecimento com o qual tanto sonhou? Seu triunfo milenar teria sido apenas uma das recompensas pela venda de sua alma?

Bem, para isso, receio não possuir uma resposta, mas posso prometer que perguntarei isso ao Diabo quando for dormir esta noite.

Referências



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