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Razão e Sensibilidade e a questão da propriedade em Jane Austen

Já dizia Karen Joy Fowler que “cada um de nós tem uma Austen particular”. E ela não poderia ter sido mais assertiva nessa afirmação, pois ao longo dos séculos a escritora inglesa Jane Austen foi lida e reinterpretada dentro da ótica de cada leitor e seu tempo. Sua escrita universal, seus personagens complexos e sua habilidade em atingir as emoções do público a tornaram não apenas popular, como fizeram com que cada pessoa se sentisse próxima dela de um jeito particular. Cada romance foi lido de acordo com as ansiedades e as expectativas das décadas e, por isso, possibilidades continuam a aparecer. 

Razão e sensibilidade, seu primeiro romance, publicado em 1811, é um bom exemplo dessa constante reinterpretação. Desenvolvido provavelmente durante a década de 1790, foi escrito no formato epistolar (intitulado “Elinor e Marianne”), e posteriormente passou por revisões até ser transformado em uma narrativa em terceira pessoa. O livro que trazia no cerne o relacionamento de duas irmãs parecia seguir a tradição dos romances didáticos e de contrastes, tão comuns naquele momento, pois colocava sob jugo do olhar dos leitores duas mulheres jovens de perfis aparentemente opostos que passariam, ao longo das páginas, por provações diversas que colocariam o caráter de ambas em evidência. Para a sociedade inglesa do início do século XIX, que se preocupava muito com as influências libertárias negativas e “jacobinas” que vinham do Continente e da Revolução Francesa, Razão e sensibilidade foi lido por muitos como um romance moralizante satisfatório, pois parecia apresentar para as jovens leitoras o perigo dos excessos (Marianne) e a importância da racionalidade (Elinor). 

Essa interpretação de contrastes ainda hoje é bastante difundida, mas não é a única a ser considerada quando lemos a história. A despeito de suas diferenças, quando somos apresentados às duas protagonistas é possível perceber que ambas experimentam no decorrer do livro momentos de reflexão racional e de devaneio sentimental quando são confrontadas com os problemas de família, amor e amizade. Nada é estático e nem Elinor é o tempo todo sensata em relação aos próprios sentimentos, nem Marianne é plenamente tola em suas crenças românticas. Como bem aponta Susan Greenfield, as duas também se apaixonam por homens que as encorajam e abandonam, causando dores semelhantes com as quais precisam lidar. Outra leitura igualmente interessante, e que evidencia muito bem o conhecimento que Austen tinha do seu meio social, é a recorrente perda de propriedade, física e emocional, que assombra Marianne e Elinor e pode ser destacada como uma das questões mais relevantes de Razão e sensibilidade e uma das aflições similares nas duas irmãs.

O fantasma da perda do lar era um assunto que Austen conhecia bem de perto. Filha solteira de um clérigo, ela tinha ciência de que, assim que o pai morresse, a reitoria do qual ele era responsável passaria para outro homem e ela se tornaria dependente da caridade de algum membro masculino da família. E assim foi. Quando o pai faleceu subitamente em 1805, Jane, a irmã Cassandra e a mãe delas, começaram um período seminômade, mudando-se com frequência até finalmente fixarem residência em Southampton, na casa de Frank, um de seus irmãos. Apesar de ser criada no seio da classe média, Austen não possuía os recursos, nem os meios, de se manter, mesmo escrevendo. Não foi à toa, portanto, que essa vulnerabilidade financeira e social das mulheres acabou se tornando um ponto constante na sua ficção. Em quase todos os seus romances, Austen articula a insegurança e angústia das mulheres que são ameaçadas com a perda ou o deslocamento forçado de seus lares. 

“as heroínas de Austen demonstram que a condição das mulheres - em termos materiais, pelo menos - é de dependência precária.”

(Vivien Jones)

Em Razão e Sensibilidade, esse drama se desenrola já nas primeiras páginas quando descobrimos que as mulheres da família Dashwood (a mãe e três filhas), apesar de pertencerem a uma linhagem antiga e estabelecida há gerações na região, não têm direito de permanecer na propriedade que consideram seu lar, pois a sucessão após a morte do patriarca é destinada ao parente homem mais próximo do falecido.  Desta forma, as terras e a casa de Norland são transmitidas para o meio-irmão mais velho de Elinor e Marianne. Este logo se revela uma pessoa mesquinha, egoísta e avarenta e oferece tão pouco às mulheres, e de forma tão fria e hostil, que elas percebem que talvez o melhor seja se mudar para longe em busca de uma nova vida. 

Esse primeiro movimento da trama já demonstra de forma inteligente e com o humor velado e assertivo de Austen a infelicidade que podia acometer até mesmo mulheres como as Dashwood, que viviam em condições confortáveis, quando suas vidas passavam a depender do capricho de um parente. Apesar de ter feito uma promessa no leito de morte do pai de cuidar da madrasta e das irmãs, o sr. John Dashwood, quando seduzido pela ganância, provoca o deslocamento e a ansiedade da perda do lar a todas elas. 

Na sequência, as Dashwood alugam um chalé de propriedade de um primo e se mudam para longe do meio-irmão, tentando dessa forma se afastar das pequenas humilhações diárias que sofriam em sua companhia. Mas um chalé alugado continua a ser uma condição temporária e insegura para um grupo de mulheres que não tem a condição e nem pode, por convenção social, pensar em aumentar os próprios rendimentos. As constantes aparições do primo para visitas, além de incômodas, também sinalizam uma invasão ao espaço pessoal das protagonistas, que não são donas do próprio tempo e nem da própria privacidade. Não é uma surpresa, portanto, que a personagem de Elinor seja fechada mentalmente e reticente em relação às suas emoções, e Marianne, depois de uma desilusão amorosa, se recolha em sua melancolia: destituídas de privacidade física, tudo que lhes resta é a privacidade mental, e mesmo esta é constantemente violada ou interrompida. 

“Tanto Elinor quanto Marianne acreditam ter propriedade total sobre suas próprias pessoas. Mas tal crença se prova pouco mais do que uma fantasia compensatória pois as irmãs são tão invadidas e confiscadas como as casas que nunca possuíram.”

(Susan Greenfield)

Quando pensamos nesse sistema impiedoso, que impossibilitava as mulheres de terem segurança de futuro, torna-se evidente também o peso do casamento – ou a busca dele – na narrativa de Razão e sensibilidade e nos demais livros de Austen. Nos romances, o casamento, além de uma conclusão geralmente satisfatória para as histórias, também é um passo em direção à prosperidade e à segurança das mulheres jovens como Elinor e Marianne, ou ainda as irmãs Bennet em Orgulho e preconceito. Como bem cita Vivien Jones: “para as heroínas financeiramente precárias de Austen, o casamento, com sua promessa de segurança torna-se a grande característica de suas vidas”

Apesar desse ponto ser destacado muitas vezes como uma estratégia conservadora de apoio à continuidade de possíveis estruturas tradicionais por parte da autora, não podemos esquecer que Austen era uma observadora sagaz da realidade e seus enlaces também demonstram que o casamento gerava, para muitas, estabilidade e o direito ao próprio lar e privacidade (pelo menos enquanto o marido vivesse, deve-se destacar). Quando levantamos a problemática da perda de propriedade física e mental das mulheres e a instabilidade a que todas estavam sujeitas, entendemos melhor, por exemplo, o desespero da Sra. Bennet em casar suas cindo filhas em Orgulho e preconceito, o porquê de a Sra. Dashwood encorajar o romance quase indecoroso de Marianne com Willoughby ou ainda a necessidade de Charlotte Lucas em aceitar o pedido de casamento do enfadonho Mr. Collins. 

Quando olhamos com atenção para os cenários domésticos da autora, percebemos que por trás da aparência romântica se escondem também as agruras da realidade. E para as mulheres da realidade de Austen, o poder de escolha (ou a ilusão de escolha) muitas vezes se dava dentro de um espectro totalmente limitado. Ler Jane Austen, para além dos cenários bonitos, dos bailes recheados de danças e das cartas de amor, nos torna conscientes do quão importante ela foi naquele momento por já apontar, com seu olhar aguçado, o quanto a nossa liberdade ser e estar já foi limitada, o que nos faz apreciar ainda mais a possibilidade de sermos cada dia mais donas de nossas próprias escolhas. 


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Referências

  • Feminisms (Vivien Jones)
  • Moving In and Out: The Property of Self in Sense and Sensibility (Susan C. Greenfield); Introdução, (Margaret Anne Doody)
  • Razão e sensibilidade (Jane Austen)
  • Jane Austen and the War of Ideas - Sense and Sensibility (Marilyn Butler)



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