Ao mergulharmos na leitura de livros, sejam eles físicos ou digitais, é possível que nossa atenção não seja sempre capturada pela forma dos caracteres do corpo do texto e pela maneira escolhida para desenhá-los; na verdade, o foco do leitor parece recair sobre o significado que as palavras são capazes de exprimir. Mas não haveria uma materialização gráfica do conteúdo textual sem a existência do design de tipos; sem a construção visual das letras que ocupam a predominância da superfície das folhas. Antes dos livros impressos, que vieram à tona por volta de 1450, já utilizando os tipos móveis e o formato códice — com páginas costuradas de modo a formar cadernos folheáveis —, o espaço era dos livros manuscritos, desenvolvidos por profissionais como copistas, miniaturistas e escribas.
A produção de livros manuscritos se deu de forma intensa entre monges, que buscavam reunir exemplares e destiná-los à divulgação, sobretudo no âmbito de comunidades religiosas, como Emanuel Araújo nos explica em A Construção do livro. O nome da rosa (Il nome della rosa), de Umberto Eco, nos mostra o ofício de monges no scriptorium de uma abadia italiana por meio do olhar do então noviço Adso de Melk:
“Cada mesa tinha todo o necessário para miniaturar e copiar: chifres-tinteiro, penas finas que alguns monges estavam aparando com uma faca estreita, pedra-pome para alisar o pergaminho, réguas para traçar as linhas sobre as quais seriam traçadas as letras. Junto a cada escriba, ou no topo do plano inclinado de cada mesa, ficava uma estante, sobre a qual ele apoiava o códice por ser copiado, com a página coberta por máscaras que enquadravam a linha que estava sendo transcrita no momento, e alguns tinham tintas de ouro e de outras cores (...) Os monges que trabalhavam no scriptorium estavam dispensados dos ofícios da terça, da sexta e da nona para não precisarem interromper o trabalho nas horas de luz.” (p.106-107)
Nota: Terça, sexta e nona se referem aproximadamente aos horários 9h, 12h e 14h, nesta ordem.
Os copistas, que transcreviam o texto ditado por uma pessoa, somavam a predominância numérica dos trabalhadores envolvidos na produção dos livros manuscritos. A eles se deve a caligrafia utilizada nas páginas e é sobre este aspecto que nosso texto se concentrará: a escrita gótica.
Origens da escrita gótica e anatomia do tipo
Ao nos voltarmos às escritas antecessoras da gótica, é possível observar que o desenho desta se assemelha em partes ao traçado das letras unciais, surgidas por volta do século IV, cujo uso se estendeu até o século VIII. Além delas, ainda há semelhanças com a forma semiuncial, ativa até o século IX, por também ter conquistado espaço nos scriptoria dos mosteiros, exercendo, assim, influência em escritas da Idade Média, e com a escrita carolíngia, largamente utilizada até o século XII. Argumentamos que o formato das famílias dos caracteres góticos, da forma que os conhecemos hoje, carrega, como resultado, a combinação de elementos das escritas que a precederam, mais evidenciados pelas letras ”a”, “e”, “r” e “t”:
Legenda: As escritas uncial, semiuncial, carolíngia e gótica textura. Fonte: elaboração própria a partir de Araújo (2008).
A escrita gótica surge no século XII e é referida como a contraparte do estilo arquitetônico gótico por Robert Bringhurst em Elementos do estilo tipográfico. Dada a reprodução mais numerosa de textos religiosos durante o período — marcado pela devoção, pela importância dada à honra e pela falta de questionamento direcionada ao clero por parte das camadas populares —, a associação entre esse tipo de conteúdo textual e o estilo de letras gótico, que esteve em vigor durante a mesma época, se mostrou inevitável. Até este momento, os caracteres eram fruto do trabalho manuscrito, mas passaram a ser gravados como tipos móveis — letras individuais e reutilizáveis, produzidas em metal ou madeira —, com criação creditada a Johann Gutenberg, embora haja controvérsias em relação à atribuição dele como inventor da imprensa. A própria maneira de operar o tipo móvel para a impressão do texto (pressionando-o contra o papel para obter a impressão) bebe diretamente da influência da xilogravura, recurso de origem chinesa popularizado na Europa a partir do século XV na forma de xilotipia, que se mostra distinta por utilizar os caracteres fixos em um bloco de madeira, sendo, portanto, não reutilizáveis. A China também foi o berço da criação do papel, produzido originalmente por farrapos e fibras naturais (louro, amora e grama chinesa), e este, associado aos caracteres móveis, proporcionou custos bastante reduzidos para a produção de livros anteriormente manuscritos. A palavra escrita culminou em uma grande disponibilidade de livros e encorajou uma maior alfabetização entre as pessoas comuns; os livros não eram mais uma exclusividade da nobreza.
A escrita agora surgia na forma de tipos baseados em caracteres anteriormente desenhados à mão. Devido a essa origem das typefaces, há uma tensão entre a mão e a máquina: os caracteres eram anteriormente obtidos por meio dos gestos das mãos e, embora os primeiros tipos recebessem suas formas a partir da caligrafia, as letras, agora, assumiam a forma de imagens destinadas à repetição infinita e uniforme, maquínica. O orgânico e o geométrico, o corpo humano e o sistema abstrato, questões nutridas desde o início dos caracteres impressos, como nos traz Ellen Lupton em Thinking with type, ainda figuram na tipografia contemporânea. Também podemos mencionar que a construção da forma dos tipos implica em uma linguagem visual aplicada em um contexto também visual, embora as letras impressas nas páginas de livros não pareçam demonstrar esses aspectos para olhares desatentos ao desenho dos caracteres. A exemplo disso, apontamos que, gradativamente, em nossa vida escolar, somos estimulados a acompanhar a complexidade do conteúdo verbal, mas não a complexidade gráfica dos elementos pictóricos, que passam a surgir em quantidades reduzidas nos livros dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, como nos revela a pesquisa de Maíra Lacerda e Jackeline Farbiarz sobre o design na leitura e a formação visual do leitor — e é possível que a desatenção à visualidade dos elementos e seu contexto tenha este fator como uma de suas causas.
No caso dos tipos góticos, utilizados em países como Inglaterra, França, Hungria, Polônia, Portugal, Holanda, Espanha, Itália, e, de forma mais vigorosa, na Alemanha (ativos até 1900), há uma divisão convencionalmente atribuída à construção visual dos caracteres que resulta em quatro famílias principais: textura, fratura, bastarda e rotunda.
Legenda: Letras “o” nos formatos típicos da textura, fratura, bastarda e rotunda. Fonte: Bringhurst (2018).
As diferenças entre os desenhos dos caracteres são perceptíveis especialmente ao observarmos a letra “o” minúscula: na textura, as formas são mais verticalizadas; na fratura (assim chamada pela “quebra” na continuidade dos traços), temos um lado achatado e outro curvo; a bastarda (também designada por Schwabacher) nos apresenta um bojo de extremidades verticais pontudas; e a rotunda é oval ou arredondada. Os caracteres bastardos surgiram como uma fusão entre a rotunda e a textura, que recebe esse título por sua disposição nas páginas dos livros manuscritos: as letras eram concebidas com precisão e uniformemente espaçadas, a ponto de tornar a textura da página parecida com um tecido de pano. Apesar do esmero na caligrafia das palavras, devido ao espaço reduzido entre elas, a legibilidade de um texto composto dessa maneira se mostra comprometida sob o olhar contemporâneo, como indicam Kate Clair e Cynthia Busic-Snyder em Manual de tipografia.
Legenda: Bíblia de 42 linhas impressa por Gutenberg e composta na textura. Fonte: Morgan Library & Museum.
A fratura ainda se encontra inserida em outro contexto: ela cumpriu o papel de fonte oficial do Terceiro Reich. Até o século XX, as letras góticas ocorriam principalmente na literatura alemã e nas bíblias, sendo consideradas símbolos do nacionalismo germânico. Os nazistas abandonaram a fratura por acreditarem que os caracteres góticos tinham origem judaica, como pontua Ruben Pater em Políticas do design. Após a Segunda Guerra Mundial, o uso da fratura ainda era tabu na Alemanha e só gradativamente tem perdido seu estigma, passando a remeter à ideia de “tradição” exemplificada por seu uso em cabeçalhos de jornais, na letra inicial de capítulos de livros (as letras capitulares) ou para remeter aos temas influenciados pela estética gótica abordada por determinadas bandas.
Legenda: Logotipos das bandas The Gazette e Moi Dix Mois. Nos dois casos, há presença de caracteres no estilo fratura: pontudos, angulosos.
Mas há questões especificamente relacionadas à maneira de designar o caractere gótico. Discutiremos a respeito disso na seção abaixo.
Gótico, blackletter e a questão da nomenclatura
Apesar de ser possível identificar a divisão em famílias de caracteres góticos propostas por pesquisas acadêmicas (com algumas variações na nomenclatura), essas classificações de tipos possuem limitações e problemas, pois são elaboradas posteriormente à criação das letras e correm o risco de tornarem-se datadas e parciais, como nos traz a pesquisadora e professora Priscila Farias em Um panorama das classificações tipográficas. O próprio termo “gótico” se tornou uma palavra genérica atribuída a uma grande variedade de formas originadas principalmente no continente europeu. Além de gótico, esses caracteres são também chamados por blackletter, tipos espessos e preenchidos, em oposição à whiteletter (humanista ou romana): letras mais leves, derivadas das maiúsculas romanas e das minúsculas carolíngias e preferidas pelos escribas nos séculos XV e XVI:
Legenda: Exemplo de caracteres com eixo humanista (oblíquo). Fonte: Bringhurst, 2018.
Mas outros tipos de caracteres, bastante diferentes destes que tratamos neste texto, também são conhecidos como “góticos” nos Estados Unidos (e como “grotescos” na Europa), assim nomeados devido a impressão que muitos tiveram no contato com essas letras, considerando-as de aparência “bárbara” e “estranha”. A exemplo, temos os tipos desenvolvidos por William Caslon IV em 1816. Eles diferem dos demais caracteres produzidos na época pela não usual ausência de serifas (terminais, traços e prolongamentos existentes nas extremidades das letras de fontes como a Times New Roman, diferentemente da Arial, que não possui tais características e faz parte do conjunto de fontes designado como sem serifa). Curiosamente, em 1832, a “estranheza” em torno da recepção dos sem serifa se dissipou e tais tipos passaram a atingir popularidade — vigente até hoje.
Legenda: Caracteres desenvolvidos por William Caslon IV. Fonte: Clair e Busic-Snyder, 2009.
Além da própria configuração visual, a nomenclatura dos tipos ainda pode decorrer de fatores como os processos de impressão e tecnologia gráfica disponíveis no período contemporâneo à criação dos caracteres. As famílias de impressores também objetivavam analogias entre a história e a herança de seu ofício e é comum encontrarmos tipos que levam o sobrenome de seus criadores como seus títulos (Bodoni, Garamond e Baskerville são alguns exemplos).
Ainda é importante lembrar que as tipografias contemporâneas que se propõem a ser digitalizações de caracteres feitos à mão, como a Fette Fratura e a Goudy Text, podem perder determinadas características manuscritas das letras — seja pela própria natureza irregular do traçado manuscrito ou pela não-preservação de glifos originais dos tipos —, assim como também podem acrescentar elementos inicialmente não integrantes dos tipos, como a introdução da variação em negrito à Trajan, digitalização baseada nas inscrições da base da Coluna de Trajano. Devido a isso, é possível que não saibamos como vinha a ser a aparência de determinados tipos móveis com exatidão, mas as digitalizações nos ajudam a visualizar suas formas essenciais, a preservar esses caracteres ainda tão influentes, a utilizá-los em nossos projetos e a repercutir a história da parcela visual pertinente ao conteúdo textual.
Legenda: Fette Fratura e Goudy Text, digitalizações dos caracteres fratura e textura, respectivamente. Fonte: Bringhurst, 2009.
Neste texto, tivemos a intenção de conduzir um breve passeio à caligrafia gótica, à sua origem e à constituição de seus aspectos formais. O trabalho dos caracteres não é apenas de materializar o conteúdo textual e torná-lo passível de leitura; sua presença em páginas ou telas também carrega seu contexto de origem traduzido a partir de sua configuração gráfica. A própria mudança na maneira de produzir os caracteres góticos — antes feitos à mão e depois construídos como tipos móveis — impactou na recepção dos impressos que os continham: combinados à introdução do papel, possibilitaram o acesso de mais pessoas aos livros. As letras têm história, que espera por nós para ser (re)conhecida.
Referências
- A Construção do Livro (Emanuel Araújo)
- Design na Leitura e multimodalidade: complexidade gráfica na formação visual do leitor (Maíra Lacerda e Jackeline Farbiarz)
- Elementos do Estilo Tipográfico (Robert Bringhurst)
- História da Leitura (Steven Roger Fischer)
- Manual de Tipografia: a história, a técnica e a arte (Kate Clair & Cynthia Busic-Snyder)
- O Nome da Rosa (Umberto Eco)
- Políticas do Design (Ruben Pater)
- Thinking with type (Ellen Lupton)
- Tipografia e design na construção da linguagem visual da letra (Marcelo José da Mota & Mariangela Fazano Amendola)
- Um panorama das classificações tipográficas (Priscila Farias)
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