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O perfeito isolamento por trás de Pink Floyd - The Wall

...Waiting for the worms to come

"Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado"[...] Tudo o que fosse verdade agora fora verdade desde sempre, a vida toda. Muito simples. O indivíduo só precisava obter uma série interminável de vitórias sobre a própria memória. "Controle da realidade", era a designação adotada. Em Novafala: "duplipensamento".

(George Orwell, 1984)

Acompanhando a trajetória de Roger Waters, senti indignação suficiente para inflamar a necessidade de escrever sobre este filme. Notícias recentes que dizem pedaços de verdades para criar mentiras políticas são o tipo de coisa que considero inadmissíveis, ainda mais porque não falta material de estudo sobre esse clássico da história do rock and roll. Como não gosto de meias palavras, resolvi escrever palavras inteiras sobre este meu querido clássico.

In the flesh?

Essa história começa em 1977, quando o Pink Floyd se apresentava na turnê do disco Animals. Uma estrutura no Estádio Olímpico de Montreal, no Canadá, construída para as Olimpíadas do ano anterior, impedia melhor contato com o público. A atmosfera do concerto estava estranha, segundo a biografia escrita pelo baterista Nick Mason. Naquela noite, até mesmo David Gilmour saiu irritado e se recusou a tocar o bis usual. No meio da apresentação, um grupo de fãs próximos ao palco pedia canções no intervalo entre duas músicas, e um deles gritou “Roger! Cante Careful with that axe!”. O até então paciente Roger Waters lhe respondeu com uma cusparada na cara.

Essa foi a gota d’água para a insatisfação já presente no modus operandi dos grandes concertos. Mesmo com a banda se apresentando para uma grande quantidade de pessoas, não significava que havia uma interação ou comunicação saudável e clara entre artista e público. 

Pouco mais de 40 anos depois do ocorrido, aqui mesmo no Brasil, esse questionamento tomou forma com a história se repetindo “como farsa”*: no ano de 2018, às vésperas das eleições presidenciais, as vaias de parte do público que reproduziram os “dois minutos de ódio” orwellianos no Estádio Couto Pereira em Curitiba — diante da apresentação sempre antifascista de Roger Waters, presente em toda a obra musical solo e com o Pink Floyd — só fortalecem o significado tanto de Animals quanto do disco seguinte, que é tema deste texto.

Is there anybody out there?

Essa sensação de estar só em meio à multidão é frequente e tem sido ilustrada de diversas maneiras ao longo da história. A partir desse incidente com o fã, Roger entrou num intenso fluxo criativo, de modo que compôs sozinho quase todas as letras para o que se tornou um álbum duplo e ainda sobrou material para um disco solo. The Wall é um trabalho multimídia: o álbum duplo de estúdio em novembro 1979, uma temporada de concertos para além dos shows usuais — tão bem elaborados e caros que foram poucos —, e um filme de ópera-rock, em julho de 1982.

A obra reúne um tema que ultrapassa a relação artista-público, mas que se origina na Segunda Guerra Mundial, evento histórico universalmente traumático, que atingiu também a família Waters. É em parte uma obra autobiográfica, mas diz mais sobre a observação de experiências, um estudo sociológico e do meio artístico, se assim é possível afirmar. 

Pink Floyd - The Wall

Para a realização do filme, vários grandes nomes foram contratados, sendo os mais destacados para este texto o diretor Alan Parker (de Evita e O Expresso da Meia-Noite), o protagonista Bob Geldof (músico irlandês da banda punk The Boomtown Rats, famoso por seu ativismo político e por organizar o Live Aid em 1985), o ilustrador Gerald Scarfe (da animação Hercules), que trabalhou também nos concertos e álbum.

O filme todo se passa dentro da mente de Pink, que está paralisado, preso tanto nos próprios pensamentos como num quarto de hotel, quase a queimar os dedos com um cigarro aceso. A cena é uma das duas que é dita como referência ao primeiro vocalista do Pink Floyd e amigo de infância de Roger, Syd Barrett. Quando já alterado por questões lisérgicas e psicológicas, cenas como essa assustavam os companheiros de banda. Pink oscila entre lembranças de infância e juventude e fantasia, e no ápice de sua agonia psicológica se porta como um líder autoritário aos moldes do nazifascismo.

Daddy, what'd'ja leave behind for me?!? 

"Daddy's flown across the ocean
Leaving just a memory"

[Papai voou através do oceano
Deixando apenas uma lembrança]

Eric Fletcher Waters participou da Segunda Guerra Mundial e foi dado como morto em fevereiro de 1944. O pai de Roger de um motorista de ambulância de guerra passou a combatente anti-nazifascista após se filiar ao partido comunista. Foi dado como morto em Anzio, Itália, quando Roger tinha apenas cinco meses de idade. Seu corpo nunca foi encontrado.

E é assim que começa o filme: o pai do protagonista Pink Floyd é morto durante a guerra, deixando a viúva com o bebê de colo. O cenário de guerra é recorrente na trama não-linear, deixando claro que é um dos motivos principais para a construção de um muro emocional que impede Pink de ter relacionamentos saudáveis. Junto às animações de Scarfe, o tema da guerra é abordado como crítica aos governos com suas relações bélicas, que não só matam milhares de pessoas mundo afora, como forçam seus cidadãos a lutar, mas não oferecem apoio às famílias desamparadas com as perdas de entes queridos, tratados como números, mera estatística para o mundo político; o velho conhecido jogo de xadrez.

"Bring the boys back home
Don't leave the children on their own, no, no
Bring the boys back home"

[Traga os garotos de volta
Não deixem as crianças desamparadas, não, não
Traga os garotos de volta]
 
Pink cresce sem a presença paterna, superprotegido pela mãe. Tenta encontrar esse afeto perdido, sem sucesso, e isso é visto na cena do parque (em que ele tenta ir embora com o pai de outra criança que lhe deu o mínimo de atenção), no vasculhar das memórias engavetadas que não foram vividas, em Pink se vestindo com a farda do pai, momento em que rouba balas para estourá-las nos trilhos do trem.

"They were all left behind
Most of them dead
The rest of them dying
And that's how the High Command
Took my daddy from me"

[Eles foram todos deixados para trás
A maioria deles mortos
O resto morrendo
E foi assim que o Alto Comando
Tirou meu papai de mim.]

We don’t need no thought control

Artista, Pink escreve poemas. E é ridicularizado por eles, sofrendo bullying na escola pelo próprio professor, figura de autoridade da instituição, que por sua vez é oprimido pela esposa em casa, detalhe que remete àquela ideia de que repetimos aquilo que aprendemos, ou, como diria Paulo Freire sobre a educação não-libertadora, “o sonho do oprimido é ser o opressor”. O professor pega seu caderno (I’ve got a little black book, with my poems in / Eu tenho uma caderneta preta, com meus poemas dentro) e lê para toda a turma a estrofe de um de seus poemas — estrofe da música Money, do disco The Dark Side of the Moon —, rindo, violentando e gritando para que o menino volte à realidade material da aritmética.

Essa cena da opressão vivida no ambiente escolar é denunciada no enorme sucesso Another Brink in the Wall Part 2, cantado em diversas ocasiões no mundo inteiro até hoje. Ela é sequência de The happiest day of our lives, cena que mostra Pink nos trilhos dentro de um túnel, se deparando com um trem repleto de crianças com máscaras disformes que representam a descaracterização de sua humanidade, fazendo uma possível referência aos trens em que o exército nazista levava famílias judias inteiras para morrer em campos de concentração, genocídio étnico que foi o holocausto.
 
As crianças depois andam em marcha, como soldadinhos obedientes, e são levados pacientemente por uma esteira, onde caem num grande moedor de carne. Aqui a ideia de esteira e moedor pode remeter ao processo de abate de animais para consumo, tema também abordado em Sheep, no álbum anterior, ambas alusões à alienação das pessoas para uma massificação, padronização da sociedade de modo que beneficie a manutenção do capitalismo.

Cena de crianças marchando em fila. Enquanto os soldados marcham em direção ao passado, elas marcham em direção ao futuro.

As instituições cerceiam e “civilizam” o homem, todas elas hierarquizadas reproduzindo os poderes da sociedade de classes em “mini” sociedades, como é o caso da escola e das relações familiares que conseguem ao mesmo tempo estar presentes e causar solidão.

"Mother do think she's good enough for me
Mother do think she's dangerous to me
Mother will she tear your little boy apart
Oooh aah, mother will she break my heart"

[Mãe, você acha que ela é boa o suficiente pra mim?
Mãe, você acha que ela é perigosa para mim?
Mãe, ela vai me despedaçar?
Oooh, aah, mãe, ela vai partir meu coração?]
 
As mulheres na vida de Pink são representadas em sua cabeça como mais males à sua mente, mais tijolos em seu muro: a mãe superprotetora, a esposa desleal, a groupie sedutora, mas completamente desinteressada na pessoa do Pink. Obviamente falamos aqui de uma mente frágil e impedida de frustração, elemento necessário e saudável na medida certa. Portanto, Pink se desconecta também das mulheres, tendo já desde sempre uma desconexão com a figura paterna e o mau exemplo de homem e de autoridade de seu professor.

Where we used to talk?

Pink cresce e se casa na década de 1970, sendo depois traído pela esposa. O casamento carecia de qualquer tipo de conexão, seja na saudável e essencial comunicação entre um casal, seja no toque físico e atenção no momento a dois. Pink era completamente entorpecido por TV, drogas, ou simplesmente não estava em casa, mas em viagem em turnês. Numa dessas viagens, sua mulher participa de movimentos políticos pacifistas, e se apaixona por um militante de partido, já que ali havia causa, motivo, razão e circunstância para relações humanas: não com a distração de uma tela, alteradores de consciência, ou mesmo ausência total (caso que é impressionantemente atual, só mudaram as ferramentas tecnológicas).

Já em turnê, as famosas groupies. É com uma delas, apenas interessada em sexo e coisas materiais, que Pink sai do seu estado de letargia e quebra todo o quarto de hotel.

"Day after day, the love turns gray
Like the skin of the dying man
And night after night, we pretend it's all right
But I have grown older, and you have grown colder
And nothing is very much fun anymore
And I can feel one of my turns coming on
I feel cold as a razor blade, tight as a tourniquet
Dry as a funeral drum"

[Dia após dia, o amor se torna cinza
Como a pele de um homem morrendo
E noite após noite, fingimos que está tudo bem
Mas eu envelheci, e você esfriou
E nada tem mais tanta graça assim
E eu posso sentir um dos meus momentos surgindo
Me sinto frio como uma lâmina de barbear, apertado como um torniquete
Seco como um tambor fúnebre]
 
Depois de toda a destruição, Pink é visto reorganizando os cacos de vidro, restos de comida, latas vazias, comprimidos soltos, como que tentando reorganizar a mente arruinada. A partir daí ele se isola mais profundamente do contato com o mundo material, mesclando fantasia e lembrança, e faz uma coisa que aqui é a segunda referência explícita a Syd Barrett: ao se barbear, raspa também o peito e as sobrancelhas, mudando completamente de aparência e de atitude. No caso de Barrett, isso aconteceu em meados da década de 1970, quando chegou completamente careca, sem sobrancelhas e acima do peso no estúdio de gravação, e pôs os amigos atônitos depois de não o terem reconhecido, tendo um deles chorado. Depois do episódio, nunca mais se encontraram.

"When I was a child I had a fever
My hands felt just like two balloons
Now I've got that feeling once again
I can't explain you would not understand
This is not how I am
I have become comfortably numb"

[Quando eu era criança, tive uma febre
Minhas mãos pareciam dois balões
Agora tenho essa sensação mais uma vez
Não posso explicar, você não entenderia
Não é assim que eu sou
Me tornei confortavelmente entorpecido]
 
Pink então mergulha na própria mente, completamente entorpecida, enquanto muda os canais de TV de modo automático. Encontra consigo mesmo criança, assim como com as lembranças de figuras traumatizantes aparecendo como pesadelos fantasiosos — os personagens maquiados com o traço de Scarfe demonstram a simbiose completa entre memória de pessoas reais com a fantasia criada por cima delas. O pai com o rato morto, a mãe, o professor, o médico, soldados mortos em guerra. Todas as experiências traumáticas com que Pink não soube lidar e afundou no inconsciente.

Essa é a segunda cena mais icônica da obra, embalada pelo maravilhoso solo de guitarra de Comfortably numb. Pink é encontrado desmaiado pela equipe e empresário, e ao invés de ser hospitalizado, recebe uma injeção de adrenalina, enquanto os homens que fazem dinheiro gritam entre si para “resolver” a situação. O show business, cada dia mais engolido, mastigado e regurgitado pelo capital. Não importa se você está doente, instável, catatônico: o show deve continuar. Roger conta que ele mesmo precisou subir aos palcos extremamente doente porque os organizadores do evento não queriam ter prejuízos. 

The show must go on

Quando Pink é drogado para seguir adiante com seu compromisso, oprimido agora por empresários, publicitários e outros do meio artístico comercial, se renova e completa a metamorfose. Os vermes em seu interior simbolizam sua decadência: é arrastado para fora do quarto de hotel e posto num carro. 

"But it was only fantasy.
The wall was too high,
As you can see.
No matter how he tried,
He could not break free.
And the worms ate into his brain."

[Mas era somente fantasia.
O muro era muito alto,
Como você pode ver.
Não importa o quanto ele tentou,
Ele não pôde se libertar.
E os vermes lhe comeram o cérebro.]
 
Ali, sai de seu casulo como um grande líder autoritário, fazendo analogia ao nazifascismo com os martelos desenhados e eternizados por Gerald Scarfe. Os martelos são símbolos de opressão, de literalmente pregar ideias, não apenas apregoá-las. Simbolizam o bater das botas em marcha, a mente fechada e dura, a intolerância e o totalitarismo.

A ideia era que esses sentimentos fascistas se desenvolvessem a partir do isolamento. Então essa antipatia de In the flesh, e era para ser detestável, é o resultado de tanto isolamento e decadência.

(Roger Waters)
 
No show vemos a adoração da imagem do ditador, que diz o que quer contra as minorias e tem suas palavras ecoadas e repetidas feito balido por uma legião de fãs que não interpretam por si mesmos (e que vêm a vaiar os concertos quase meio século depois!). As cenas com o exército careca de Pink foram filmadas com skinheads reais. Nisso, a violência toma forma, ao ponto de Pink novamente parar em sua loucura e desespero, completamente murado da diversidade e interação social que deve ser acolhida e praticada por todos os povos. 

Have I been guilty all this time?

Aí se dá seu autojulgamento: é julgado por ter sentimentos! Ora, passou a vida privado de poder expressá-los, e todo vulcão um dia entra em atividade.

No julgamento, Pink é réu e as testemunhas que depõem contra ele são o professor, a mãe e a esposa. O juiz dispensa um júri, e sentencia Pink a destruir as muralhas que o protegem do mundo, e de fato isto acontece. O filme termina com a cena esperançosa de crianças nos escombros mexendo curiosas nos tijolos que restaram em ruína, enquanto uma em particular cheira o conteúdo de uma garrafa, faz careta e joga o líquido fora: era coquetel molotov. Como em toda guerra, seja ela interna ou externa, restam os destroços e a esperança do dia que está por vir.

Referências

*. “A História se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa” – Marx complementa a ideia de Hegel em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.



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Helen Araújo
Filha de paraibanos nascida en São Paulo em 1992. Historiadora e artesã com espírito setentista, escreve sobre tudo, especialmente música, símbolos, mitos e migrações. Quando não escreve no Querido Clássico e Um Velho Mundo, fabrica onde escrever: cadernos no Estúdio São Jerônimo.

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