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As virgens suicidas e o perigo do male gaze


Em um subúrbio estadunidense durante a década de 1970, uma família comum composta por um professor de álgebra, sua esposa religiosa e as cinco filhas adolescentes do casal sofre uma tragédia que abala a cidade: em um intervalo de apenas um ano, as cinco meninas cometem suicídio. Cecília, a mais nova, é a primeira a partir, e é seguida pelas irmãs cerca de um ano depois. Essa é a premissa do romance As virgens suicidas, escrito por Jeffrey Eugenides e que logo se tornou um cult da cultura underground, especialmente após sua adaptação para as telas pela cineasta Sofia Coppola.

A tragédia das meninas é narrada por um grupo de garotos que passaram boa parte de suas vidas obcecados pelas vizinhas mesmo antes dos suicídios ocorrerem: apaixonados por elas desde a infância, vasculharam seus quartos após suas mortes, afanaram suas roupas íntimas, buscaram substituições delas em suas esposas e namoradas, entrevistaram vizinhos e professores e guardam um acervo completo de fotos e itens que pertenciam às meninas Lisbon, os quais solicitam que os leitores não toquem para que não sejam corrompidos.

“As meninas Lisbon tinham treze (Cecília), catorze (Lux), quinze (Bonnie), dezesseis (Mary) e dezessete (Therese). Eram baixinhas, com nádegas apertadas nas calças de brim e bochechas redondas que lembravam a mesma maciez dorsal. Sempre que conseguíamos dar uma espiadela, seus rostos pareciam uma revelação indecente, como se estivéssemos acostumados a ver apenas mulheres de véu. Ninguém conseguia entender como o sr. e a sra. tinham produzido filhas tão bonitas.”

O interesse deles, no entanto, se deve unicamente pela beleza e inalcançabilidade das meninas, o que se comprova por eles admitirem que nunca conseguiram de fato discerni-las umas das outras. Sendo classificadas como “fruto proibido”, elas acabaram por se tornar - ainda que não por vontade própria - uma espécie de desafio e objeto de desejo para os rapazes da vizinhança. Ao longo da obra os meninos falam diretamente com as Lisbon em apenas pouquíssimas situações, e em todas elas nenhuma das garotas demonstra ser mais que uma simples adolescente. Na visão deles, no entanto, mesmo essas breves interações ajudam a enfeitar o imaginário místico do qual elas são personagens.

Dessa forma, os narradores não se mostram confiáveis por não conseguirem discernir a realidade da vida das meninas das expectativas criadas por eles. Nenhuma das irmãs é vista como um ser individual: elas são tratadas como uma espécie de entidade, uma deidade mística que encanta e seduz os rapazes do bairro e da escola ainda que não façam nada com o intuito de encantar ninguém. A forma sexualizada pela qual os rapazes à sua volta as tratam ajuda a conduzir a trama: um deles, ao entrar escondido na casa dos Lisbon para tentar ver as meninas tomando banho, é quem encontra Cecília após sua primeira tentativa de suicídio; o namorado de Lux, ao abandoná-la sozinha em um campo de futebol após o baile, leva ao encarceramento das irmãs. Mesmo durante o velório de Cecília um dos rapazes comenta que teria arriscado “uma última bolinada”, caso os amigos estivessem lá para ver.

Proibidas de ter qualquer contato romântico com o sexo oposto, elas são criadas em um ambiente que lembra aos observadores um “orfanato religioso”, com uma mãe rígida que não concorda com diagnósticos psiquiatras nem aceita opiniões diversas mesmo quando partem do próprio marido, e que, após Lux passar uma noite fora de casa com o namorado, proíbe que todas elas saiam para qualquer compromisso, inclusive a escola. Trancafiadas em uma casa em deterioração, com pais distantes que estão lidando com o próprio luto pela morte da filha caçula e sem qualquer tipo de ajuda profissional para lidar com o ocorrido (Cecília tenta se matar duas vezes e, quando obtém sucesso na segunda tentativa, é de forma particularmente violenta), a saúde mental das Lisbon se deteriora da mesma forma rápida que ocorre com a casa onde vivem e que chama a atenção de repórteres e da vizinhança.

“Naquela época a escola só estava piorando as coisas. Nenhuma das crianças estava falando com as meninas. Só os garotos, e vocês sabem muito bem o que eles queriam. As meninas precisavam de um tempo para si mesmas. Uma mãe percebe essas coisas. Achei que se ficassem em casa elas melhorariam mais rápido.”

O estigma social pelo qual passam poderia ser explicado pela imaturidade de seus colegas e descaso dos mais velhos, que não sabem exatamente como lidar com uma família abalada por uma morte tão precoce e tão violenta. Com os suicídios que passam a serem noticiados após a morte de Cecília, o estado mental da família Lisbon e a rápida degradação da casa onde vivem é encarada por seus vizinhos e colegas como uma mancha na reputação da vizinhança, uma mácula que deveria ser tratada antes atingir seus filhos ou amigos. De maneira geral, o consenso entre todos os envolvidos é não lidar com o ocorrido com Cecília e tudo que a morte da jovem garota desencadeou na família e, desta forma, esperar que ele não se repita com nenhum de seus filhos.

Este plano, é claro, logo se mostra uma falha. Presas em casa pela mãe, que acredita que o contato com outros jovens e, especialmente, com rapazes, apenas prejudicaria as filhas, as jovens passam os dias em casa, transitando entre os cômodos como fantasmas enquanto emagrecem a ponto de ficarem irreconhecíveis, se arriscam fazendo sexo desprotegido com estranhos e, mesmo quando levadas ao hospital, se recusam a conversar com um psiquiatra. Quando o Sr. Lisbon pede demissão da escola onde trabalha, os seis deixam de sair de casa e a depressão que se apodera da família pode ser vista e sentida por todos os vizinhos, mas especialmente pelos narradores.

Ainda assim, não é o suficiente para que tentem intervir. Os rapazes apenas assistem Lux transar com desconhecidos no telhado da casa, vigiam as portas para assistir Bonnie abri-la durante a manhã e interceptam as conversas de Therese sobre o suicídio da irmã mais nova através de um equipamento de radioamador, atentos a qualquer movimento que possam perceber no interior de uma casa onde sabem que não podem entrar. Quando as meninas buscam contato com eles, meses após terem sido isoladas do resto do mundo, trocando mensagens musicais que eles interpretam da maneira errada, pouco tempo passa antes que elas sigam o exemplo da irmã mais nova. Mesmo Mary, que sobrevive ao suicídio coletivo e consegue realizar seu desejo apenas na segunda tentativa, mais de um mês após a morte das irmãs, é observada à distância pelos rapazes e demais vizinhos, sem coragem de intervir ainda que todos esperem que a tragédia caia sobre a casa dos Lisbon pela terceira vez.

Mesmo ao considerar o suicídio de Cecília como catalisador dos suicídios subsequentes, os motivos de Cecília, uma jovem de apenas 13 anos, para concretizar o ato permanecem ao longo da obra como inexplicáveis. Os narradores e a comunidade passam a tratar Cecília como alguém estranha e que “teria dado errado de qualquer forma”. O estigma sobre a morte de Cecília também causa uma sombra sobre a família que ajuda a isolar ainda mais as suas irmãs. Com tentativas recorrentes na família, o encarceramento das meninas em uma casa que rapidamente se deteriora junto às suas saúde física e mental, e a falta de relacionamentos com qualquer pessoa que não fosse uma das quatro irmãs, não é de se admirar que elas tenham entrado em uma depressão profunda que, não tão rapidamente, evoluiu para que seguissem os passos da irmã caçula.

Embora todos os sintomas para o que viria a ocorrer possam parecer tão óbvios quanto uma receita com todos os ingredientes certos para dar errado, a falta de interesse real pelas meninas pela parte dos narradores permanece até o fim da obra, sem que eles entendam os motivos que as levaram a cometer o ato. Elas são vistas pelos narradores apenas como um receptáculo do seu desejo, e eles parecem incapazes de compreender que esse não foi um desejo pelo qual qualquer uma das irmãs ansiou. Chegam até mesmo a acusá-las de atraí-los para os suicídios como forma de punição:

“A essência dos suicídios não consistia em tristeza ou mistério, mas apenas em egoísmo. As meninas tomaram nas próprias mãos decisões que deveriam ser tomadas por Deus. Tornaram-se poderosas demais para viver entre nós, absortas demais em si mesmas, visionárias demais, cegas demais. (...) Elas nos fizeram participar de sua própria loucura, porque não conseguíamos deixar de refazer seus passos, repassar seus pensamentos, e ver que nenhum deles conduzia até nós.”

Os rapazes, por fim, expõem em poucas linhas uma ideia que permeia todo o romance, ainda que não de forma óbvia: Cecília, Lux, Bonnie, Mary e Therese não eram adolescentes lidando com uma delicada situação familiar, mas sim mulheres bonitas que se recusaram a aceitar o amor que de muita boa vontade eles ofereciam. E mesmo anos após a sucessão de tragédias que abalaram a casa dos Lisbon, quando seus narradores já tinham idade suficiente para formar suas próprias famílias e lidar com os próprios problemas, eles ainda parecem incapazes de vê-las como pessoas, e não como um receptáculo de desejo masculino, eternamente como a entidade mística das "meninas Lisbon".

Se a misoginia da obra é proposital, como no caso do famoso romance Lolita, ou se Eugenides de fato quer nos fazer acreditar nas meninas como vilãs de sua própria história e que sua depressão coletiva não passa de um ato egoísta para com meninos que as queriam tanto, isso fica à interpretação dos leitores. Ainda assim, a obra é um ótimo exemplo de como a sociedade não apenas menospreza as causas e consequências da depressão entre jovens e deve ser lida pelo que é: um marco cultural que trouxe uma história disruptiva e que será lida e interpretada de diferentes modos ao longo dos anos.


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