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O ser humano diante da natureza na poesia de Wisława Szymborska


Wisława Szymborska é uma poeta polonesa ganhadora de diversos prêmios, inclusive o Nobel e o Goethe. Sua poesia encanta, diverte e conscientiza através de uma poética vastamente influenciada pelos períodos de guerra que a Polônia enfrentou, principalmente durante a ditadura stalinista, época em que estreou na escrita. Aspectos como a vivência entreguerras e os despotismos que experienciou claramente influenciaram o fazer poético da autora, que, com uma simplicidade invejável, pincela e pinta as mais complicadas conjecturas humanas.

Através de um pessimismo característico do trauma pós-guerra, vemos pelo ponto de vista de uma espectadora de incontáveis violências e do pior que podemos chegar a ser. Mesmo assim, sua poesia sempre apresenta um requinte de humor e sarcasmo, tornando as reflexões quanto à natureza humana algo mais digerível.

A antologia de poesias da autora, Poemas, surpreende-nos com sua imprevisibilidade; é como se ela abrisse de uma vez todo o seu coração, sem delineações ou ajustes. Na poética ‘szymborskiana’ parece predominar uma filosofia existencialista e uma autoconsciência daquilo que destruímos no passado e mantivemos destruído. Há um grande destaque na relação do humano com a natureza - esse olhar sobre o papel exercido pelos homens no sentenciamento de seu próprio lar. Seja de forma crítica ou irônica, a poeta é capaz de tornar evidente a inveja, o fascínio e a pequenez que sentimos ante a grandeza e imortalidade daquilo que já esteve aqui quando chegamos e ainda estará quando nos formos.

Dessa perspectiva partem alguns olhares mais específicos: em Conversa com a pedra, encontramos um diálogo incessante entre alguém que insiste demasiadamente que uma pedra permita sua entrada enquanto bate à sua “porta”. Claro que, se tratando de poesia, tendenciamos o texto ao que parece mais próximo do real, nesse caso, enxerga-se uma intensa necessidade de um humano chegar a conhecer, a tomar consciência, daquela natureza que não é a sua. Talvez por empatia, talvez por ânsia de domínio.

"Bato à porta da pedra.
- Sou eu, me deixa entrar.
Não posso esperar dois mil séculos
para estar sob teu teto."

(Conversa com a pedra, Wisława Szymborska)

De maneira leve, Wisława permite muitas formas de se olhar o que ela diz. Talvez a própria condição de mortalidade faça de nós humanos terrivelmente ansiosos, com o desejo infinito de chegar a conhecer tudo. Por outro lado, talvez a vontade imparável de adentrar aquilo que não é nosso, de compreender o incompreensível, seja puro tédio e egoísmo. Todavia, a pedra em um dos últimos versos, insistindo que não pode deixá-lo entrar, manda-o perguntar ao seu próprio fio de cabelo o motivo, como se o eu lírico, gamado em sua humanidade, houvesse esquecido que somos feitos dos mesmo carbonos. Como se esse endeusamento ou inferioridade de nossa própria figura cravasse um abismo entre nós e eles que, no fundo, não há.

Em um outro poema, Excesso, visualizamos um tom mais debochado para uma situação cotidiana: encontraram uma nova estrela. Wisława utiliza desse artifício para nos passar claramente como pouco damos importância a algo tão magnífico, como tratamos a imensidão de possibilidades, descobertas e vidas como levianas diante de nossas próprias demandas.

"A estrela não tem consequência.
Não influi no clima, na moda, no resultado do jogo,
na mudança de governo, na renda e na crise de valores.

Não tem efeito na propaganda nem na indústria pesada.

Não em reflexo no verniz da mesa de conferência.

Excedente em face dos dias contados da vida."

(Excesso, Wisława Szymborska)

Nesse cenário, nossa qualidade efêmera nos distrai da imensidão, e não nos atrai a ela, diferentemente de como aparece em Conversa com a pedra.

Em outra perspectiva, o poema Paisagem com grão de areia reflete sobre as atribuições humanas que transferimos ao inanimado, a respeito da importância que enxergamos em cada coisa e como ela acaba decaindo sobre aquilo que, se pudesse, a rejeitaria. Ao narrar um grão de areia que despenca de um parapeito da janela, a poeta apresenta questões sobre a nossa necessidade de dar nomes e definir o estado das coisas.

Em uma versão alternativa, um poeta sistematicamente romântico poderia narrar de forma melancólica e solidária aquela queda do rejeitado e esquecido grão de areia, mas Wisława é encantadora em sua visão atípica. A poeta demonstra com palavras nem um pouco herméticas, mas duras como concreto em questão de alteridade, como aquele grão de areia dispensa quaisquer atribuições empáticas que poderíamos associar à sua queda e à sua própria existência: ele não sabe que está caindo e muito menos que é um grão de areia. Dispensa nome e dispensa atenção, pois sua inconsciência faz com que nada que consideremos importante de fato importe. Nessa poesia, Szymborska esclarece a simples e libertadora desimportância na imortalidade.

"De nada lhe serve nosso olhar, nosso toque.
Não se sente olhado nem tocado.
E ter caído no parapeito da janela
é uma aventura nossa, não dele."

(Paisagem com grão de areia, Wisława Szymborska)

Contrariando nossas perspectivas anteriores de que os questionamentos e adversidades em nosso convívio com o mundo chegam a ser desnecessárias, o poema Utopia apresenta o contrário. Nele, encontramos uma ilha perfeita, em que “[...] se pode pisar no sólido solo das palavras”, onde as dúvidas se dissiparam, pois encontramos as respostas de tudo facilmente e a subjetividade de nossa linguagem parece não bater de frente com o mundo real; onde para tudo temos resposta. Assim, dispensa-se as reflexões sobre nossa existência e comparações com as de outrem; há satisfação e convicção infinitas na ilha utópica.

No entanto, ao cabo do décimo segundo verso, notamos uma virada de perspectiva, pois ela é inabitada.

"Apesar dos encantos a ilha é deserta
e as pegadas miúdas vistas ao longo das praias
se voltam sem exceção para o mar."

(Utopia, Wisława Szymborska)

O que faria uma ilha perfeita, sem sequer uma dúvida existencial pairando no ar, ser deserta? Talvez justamente essa necessidade que temos de incerteza, capaz de dar significância aos nossos dias, de fazer elevarmos o espírito usando as reflexões como escada. As pegadas na areia que se dirigem ao mar são a comprovação clara de nossa rejeição ao certo, uma vez que não têm graça.

"Como se daqui só se saísse
e sem voltar se submergisse nas profundezas.

Na vida imponderável."

(Utopia, Wisława Szymborska)

Em Poemas, muitos são os assuntos em que essa escritora multifacetada escolhe passear seu dom poético, mas a arbitrariedade das relações entre nós e a natureza exige um olhar mais atento, tanto por suas escolhas exóticas de perspectiva quanto pelas reflexões que emergem das infinitas visões apresentadas. Fechamos o livro, enfim, com uma sensação de completude e compreensão que nos faz refletir de forma imparável.


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